O superendividamento é problema complexo, que arruína as finanças de um considerável número de pessoas, que não conseguem se livrar de dívidas relacionadas ao consumo.
Ao projetar as dívidas acima da capacidade de pagamento, o superendividamento representa uma efetiva ameaça ao mínimo existencial destes consumidores, que passam a se ver privados do acesso aos itens de primeira necessidade.
Um dos traços marcantes do superendividamento é criar um grupo de devedores cativos, que passam a depender de sucessivos empréstimos, dentro da lógica de se prender, indefinidamente, a um grupo de instituições financeiras.
Eterniza-se um problema, ao tornar o inadimplemento constante na vida de muitas famílias.
Estudos dão conta de que milhões de pessoas no Brasil não conseguem efetivar o pagamento das suas dívidas.
Fala-se que sete em cada dez brasileiros têm renda inferior aos gastos mensais, em um cenário em que cerca de 75% da população apresenta algum tipo de dívida1.
É fato que as famílias brasileiras permanecem altamente endividadas e o quadro de inadimplência não para de crescer2.
É fácil perceber que o superendividamento, além de colocar em risco o mínimo existencial das pessoas, ameaça a própria economia do país.
Isso torna o problema um assunto de direito constitucional, considerando que um dos princípios da ordem econômica (art. 170 CF) é o asseguramento da existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Com base neste complexo quadro, foi publicada, em 1º de julho de 2021, a lei 14.181, conhecida como lei do superendividamento3. A norma atualiza do Código de Defesa do Consumidor, visando a aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor, dispondo sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.
O escopo foi o estabelecimento de um novo regime de prevenção e tratamento do superendividamento no Brasil, baseado em práticas internacionais.
A norma possui a natureza de política pública de fomento à concessão responsável de crédito, educação financeira e de promoção de conciliação por meio de planos de pagamento que permitam o pagamento das dívidas4, de forma racional.
Trata-se de um consenso legislativo em torno da necessidade de se preservar uma reserva de renda voltada ao sustento do consumidor superendividado, assegurando a manutenção da sua dignidade.
De forma equilibrada, a lei protege apenas o consumidor pessoa natural que age de boa-fé, que se vê impossibilitado de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, sem comprometer seu mínimo existencial (art. 54-A, § 1.º CDC).
A questão é que a Lei do Superendividamento deixou a cargo do Poder Executivo a regulamentação do que seria uma quantia mínima, que na negociação das dívidas dos consumidores deveria ser preservada, de modo a não comprometer o sustento e a dignidade dos endividados.
Eis que, no dia 26 de julho de 2022, é publicado o decreto nº 11.150, que, dentre outros pontos problemáticos, fixa um valor irrisório e defasado, como caracterizador do mínimo existencial.
Estabeleceu-se, em seu artigo 3º, que no âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a 25% do salário-mínimo vigente na data de publicação do Decreto5.
Surge, portanto, uma evidente inconstitucionalidade.
Ao fixar um valor irrisório como definidor do que seria a manutenção da garantia do mínimo existencial das pessoas endividadas de boa-fé, o ato regulamentar aparta-se da natureza de norma secundária, subordinada à lei.
Ele esvazia, completamente, o núcleo essencial do dever de proteção estatal em favor dos consumidores superendividados.
São três situações que evidenciam, claramente, a incompatibilidade do decreto 11.150/2022 com a lei do superendividamento, que acabam por gerar uma crise de legalidade e ferir, frontalmente, inúmeros preceitos fundamentais da Constituição Federal.
1. A fixação do mínimo existencial em patamar equivalente a 25% do salário-mínimo, para fim de tratamento do superendividamento, afasta-se da realidade de qualquer família brasileira, mostrando-se, desde a sua edição, completamente defasado, apto a perpetuar inaceitável situação de miserabilidade.
Tomando-se por base o valor do salário-mínimo no ano de 2022 (R$ 1.212,00), o ato regulamentar considera como mínimo existencial, a ser protegido da cobrança de dívidas, a renda mensal do consumidor equivalente a R$ 303,00.
O que uma família pode fazer, no mês, com tão insignificante quantia? Em que medida pode ter assegurada a sua existência digna, considerando o custo de vida mais singelo?
Evidentemente que nada!
2. O Decreto restringe a abrangência da Lei 14.181/2021 e, consequentemente, do próprio Código de Defesa do Consumidor.
Isso ocorre pelo fato de o Decreto estabelecer uma série de situações de inadimplemento, que não deverão ser computadas na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial (art. 4º, § único), sendo que, em nenhum momento, há autorização, pela lei, para que tais exclusões sejam levadas a efeito nas negociações decorrentes da repactuação das dívidas.
3. O decreto, em seu art. 4º, I, "f", afasta o direito do consumidor à nova renegociação por superendividamento, em que pese existir na lei expressa autorização neste sentido, após o decurso do prazo de dois anos da repactuação originária (art. 104-A, § 5º do CDC, com redação dada pela lei 14.181/2021).
Estas três situações, dentre outras, comprovam que o Decreto 11.150/2022 aparta-se da natureza de uma autêntica norma regulamentar, adquirindo as feições de um verdadeiro ato normativo autônomo, situação que justifica o exame de sua constitucionalidade em abstrato, à luz de preceitos fundamentais da Constituição.
Ao limitar a abrangência da norma primária, restringindo desproporcionalmente seu conteúdo, criando situações não previstas pelo legislador, ferindo o conteúdo essencial de inúmeros preceitos fundamentais da Constituição e mitigando deveres estatais de proteção de hierarquia constitucional, estabelece-se uma situação normativa que extrapola a mera questão de legalidade, disposta na relação lei e decreto, para se adentrar na inegável violação da Constituição Federal.
A incontestável incompatibilidade do Decreto 11.150/2022 com a ordem constitucional emerge a partir da violação dos seguintes preceitos fundamentais da Constituição.
- Art. 1º, III, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República;
- Art. 2º, pelo fato de a regulamentação executiva extrapolar os limites definidos pelo legislador;
- Art. 3º, I e III, por se apartar dos objetivos fundamentais da República voltados à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, à erradicação da pobreza, da marginalização e à redução das desigualdades sociais e regionais;
- Art. 5º, XXXII, por esvaziar o dever do Estado de proteger o consumidor;
- Art. 6º, por privar as famílias de seus direitos sociais básicos, consolidando situações de miserabilidade;
- Art. 7º, IV, por promover um recorte defasado e desproporcional no valor do salário-mínimo para efeito de proteção do mínimo existencial, considerado minimamente necessário para suportar as necessidades básicas dos consumidores;
- Art. 84, IV, por caracterizar a extrapolação do poder regulamentar de competência do Chefe do Poder Executivo Federal, ao esvaziar o conteúdo da lei 14.181/2021;
- Art. 170, caput e incisos V e VII, por ignorar que a ordem econômica tem como fundamento assegurar a existência digna, com base na justiça social, fundamentada nos princípios da defesa do consumidor e da redução das desigualdades regionais e sociais.
Ao colocar a garantia do mínimo existencial em patamar totalmente desconectado da realidade, o Decreto 11.150/2022 incorre em flagrante contradição com as disposições constitucionais e legais vigentes, que devem condicionar os limites do poder regulamentar.
A partir do instante em que um decreto desconfigura o espírito de uma lei, opera-se uma cisão normativa incompatível com a ordem constitucional.
Não é dado a Presidente da República, no exercício do poder regulamentar, desconfigurar, pela via de um ato administrativo, uma construção legislativa vigente, sobretudo quando a lei em questão decorre do dever fundamental do Estado de proteger os consumidores.
O fato de uma lei deixar a cargo do Chefe do Poder Executivo um espaço de configuração regulamentar, voltado a proporcionar as melhores condições para a sua execução, não pode significar uma espécie de “carta branca”, apta a descontruir a própria gênese da inovação legislativa.
Ao restringir, desproporcionalmente, o que se considera mínimo existencial, para efeitos de prevenção e de tratamento do superendividamento, o Presidente da República incorre em abuso do exercício do seu poder regulamentar.
Não se ignora o livre exercício de competência constitucional, fundamentada na discricionariedade política do Chefe de Governo.
O que se aponta é o total descompasso entre o espírito da lei – que atrai a regulamentação – e a função regulamentar.
A tese da extrapolação do poder regulamentar resta igualmente comprovada à luz da hierarquia jurídico-fundamental dos bens envolvidos.
Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 consagrou um dever de proteção do consumidor (art. 5º, XXXII). Um legítimo direito fundamental, construído na forma de um dever de proteção estatal.
Não se trata de recado ao legislador ou de mera recomendação, mas sim de uma norma dotada de máxima cogência no ordenamento jurídico, considerando que se afirma como pressuposto da garantia de intangibilidade da dignidade humana.
O Decreto 11.150/2022, ao restringir, de forma desproporcional, o patrimônio das famílias brasileiras que deve ser protegido contra o superendividamento, a partir de uma noção absolutamente defasada de mínimo existencial, desconsidera a função de proteção dos direitos fundamentais.
Aceitar um enquadramento do mínimo existencial no patamar de apenas 25% do valor do salário-mínimo, para efeito de proteção contra o superendividamento, significa, na prática, esvaziar todo o esforço constitucional de impor ao Estado o dever de proteger aquele que é o sujeito decisivo para qualquer economia, detentor de sucessivas e marcantes vulnerabilidades: o consumidor.
Importa deixar claro que não se advoga a tese de ausência de discricionariedade política por parte do Chefe do Poder Executivo Federal, no momento de regulamentar as leis.
O que se defende é que esta discricionariedade política não pode ser ilimitada, ao ponto de desconfigurar, totalmente, a essência da lei. Entendimento contrário ignoraria, até mesmo, o princípio da separação dos poderes, pilar indissociável da democracia e da estabilidade das instituições políticas.
O Decreto 11.150/2022, sob a justificativa de proporcionar a regulamentação exigida pela Lei 14.181/2021, esvazia, demasiadamente, a vontade manifesta pelo legislador, em atenção às exigências constitucionais vigentes.
Fere, assim, o conteúdo essencial do direito fundamental de proteção do consumidor em matéria de tratamento e combate ao superendividamento.
O resultado é o comprometimento do mais importante fundamento da República: a intangibilidade da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial.
A lei do superendividamento insere-se totalmente nesta lógica de proteção, que veio a ser deturpada pela regulamentação executiva.
Um longo esforço de natureza política, associativa e jurídica, que lutou contra as mais intensas e diferentes pressões, mas que, ao final, conseguiu ser aprovada por reunir um legítimo consenso parlamentar.
Ao reduzir o tratamento do superendividamento a um patamar meramente formal, defasado e distante da realidade, o decreto presidencial ignora a própria função dos poderes públicos ditada pela Constituição.
No lugar de proteger o consumidor do superendividamento, protege o superendividamento contra o consumidor, em uma lógica, de todo, insustentável.
O que se quer combater, com o rechaço à regulamentação desproporcional, é que um dever de proteção estatal tão relevante, como a proteção do consumidor, deixe de possuir significado prático para a coletividade.
Portanto, a essência da lei 14.181/2021, que atualizou o Código de Defesa do Consumidor, inserindo diretrizes voltadas à prevenção e ao tratamento do superendividamento, não pode ser anulada pela via da regulamentação executiva, que contribui para a manutenção de um estado permanente de miserabilidade.
Do exposto, evidencia-se que a total falta de conexão entre a norma primária e o poder regulamentar extrapola a questão relacionada à chamada crise de legalidade, que advém da falta de sintonia entre a lei e o decreto, passando, também, a gravitar na inegável crise de inconstitucionalidade.
Conclui-se que o decreto 11.150/2022 deve ser retirado do mundo jurídico, dando-se lugar à nova regulamentação, que, desta feita, observe, de fato, o significado do mínimo existencial, sob pena da manutenção de um flagrante estado de inconstitucionalidade.
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1 Disponível aqui.