Até que ponto uma autoridade que exerce a chefia de governo de um país deve manter um dever de neutralidade na política?
Esta é uma questão complexa, que envolve não apenas uma compreensão do funcionamento dos sistemas de governo, como também da própria natureza da função de chefia de governo.
No dia 15 de junho de 2022, o Tribunal Constitucional Federal alemão proferiu uma decisão que reacende o interessante debate ligado aos limites da função executiva1.
De forma um tanto quanto inesperada, o tribunal julgou procedente um litígio constitucional entre órgãos federais ajuizado pelo partido de extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha), contra o governo federal, relativo a um fato ocorrido em fevereiro de 2020.
Por maioria de 5x3 votos, o tribunal entendeu que a então Chanceler Federal, Angela Merkel, ao proferir comentários contra o partido AfD, violou o seu dever de agir de forma politicamente neutra no exercício da função de chefe de governo2.
Um rápido resumo do episódio3.
A Alemanha possui um sistema de governo parlamentarista, tanto em nível federal quanto estadual.
Significa que os chefes dos executivos são eleitos pela maioria dos membros dos respectivos parlamentos, sendo relevante, para tanto, a realização de coalizões entre os partidos.
Por ocasião das eleições no estado da Turíngia, o então governador, que representava um partido de esquerda, buscava a reeleição, sem obter sucesso nos dois primeiros turnos de votação.
Por força de arranjos políticos locais, estabeleceu-se uma coalizão entre diferentes partidos, que levou à vitória de um candidato do partido liberal (FDP) para o cargo de governador.
A vitória só foi possível pelo fato de diferentes partidos terem apoiado o candidato liberal, dentre eles, o próprio partido de Angela Merkel (CDU) e o polêmico AfD.
O episódio chamou atenção pelo fato de ter sido a primeira vez, desde a sua criação, que o partido AfD ingressou em uma coalizão com os partidos tradicionais, para ajudar a eleger o governador de um estado alemão.
Isso porque, até então, os principais partidos alemães vinham se recusando a ingressar em coalizões com o AfD, pelo fato de a legenda defender posturas consideradas xenófobas e extremistas, mesmo em estados como a Turíngia (leste da Alemanha), em que a agremiação costuma ter maior força.
A questão gerou grande repercussão na Alemanha, provocando uma onda de manifestações contrárias à coalizão.
Eis que surgiu o fato controverso.
À época, em missão oficial na África do Sul, Angela Merkel afirmou que considerava “imperdoável” (unverzeihlich) o fato de um político do partido liberal ter aceitado votos de membros do partido Fada, para se eleger governador do estado da Turíngia.
A então Chanceler ainda afirmou que aquele era um “dia ruim para a democracia”, marcado pelo rompimento dos valores e convicções do seu partido, solicitando, assim, que o resultado da eleição, em que pese ser um caso único, fosse revertido4.
A pressão política foi tamanha, que o governador eleito com o apoio do AfD acabou renunciando três dias após a sua eleição, devolvendo o governo estadual ao representante da esquerda.
Este conjunto de fatos levou o partido AfD a ajuizar uma medida contra o governo federal junto ao Tribunal Constitucional, por considerar que as palavras da Chanceler representavam um “ataque direto” à legenda.
A tese era que duras manifestações contrárias a um partido político, por ocasião de uma visita oficial da chefe de governo alemã a um estado estrangeiro, seriam inconstitucionais.
Ao acatar a tese do partido AfD, o Tribunal Constitucional entendeu que a manifestação de Angela Merkel, na condição de chefe de governo (Primeira Ministra), acabou por violar o direito da legenda a uma competição política justa.
Constatou, na prática, que ao proferir manifestações contrárias a um partido, Merkel violou o direito à igualdade de chances do processo eleitoral, bem como sua obrigação de agir de forma neutra enquanto no exercício da função de chefe de governo.
Portanto, o aspecto que orientou a decisão não foi o mero teor da manifestação contrária ao AfD, mas o contexto em que foi proferida.
A decisão ressaltou, contudo, que a situação teria sido diferente, caso as declarações fossem proferidas por ocasião de um evento eleitoral, hipótese em que a governante atuaria como política, e não como chefe de governo.
A tese vencedora entendeu que comentários de teor partidário são incompatíveis com o dever de neutralidade a ser observado pela chefia de governo, sobretudo por ocasião de missões oficiais no exterior.
A decisão do tribunal constitucional alemão baseou-se nos seguintes aspectos:
1. Por ocasião de uma campanha política aplicam-se para o cargo de Chanceler Federal as mesmas disposições que delimitam a atuação na função oficial e a participação não oficial, que são exigidas dos demais membros do Governo Federal.
2. Da ordem de competências do Governo Federal decorre que, em comparação com os outros membros do gabinete, a Chanceler Federal tem um direito de expressão mais amplo, mas isto não afasta a observância dos princípios de neutralidade e objetividade.
3. Os fundamentos que justificam um tratamento desigual, apto a conferir ao governo federal o poder de interferir na igualdade de oportunidades, devem:
a) ser legitimados pela Constituição;
b) ter um peso que possa equilibrar o princípio da igualdade de oportunidades das partes.
4. A proteção da estabilidade e da capacidade de ação do governo federal, bem como a reputação e a confiabilidade da Alemanha na comunidade internacional, são bens constitucionais que equivalem à igualdade de oportunidades para as partes.
5. A Chanceler Federal possui um amplo espaço de apreciação para decidir que medidas são necessárias para manter a estabilidade e a capacidade de trabalho do governo federal, inclusive no âmbito da política externa.
Entretanto, frente a intervenções no princípio da igualdade de oportunidades, tem que ser possível demonstrar que existem interesses constitucionais que justificam tal ação.
Nesta situação, torna-se necessário interferir no direito à igualdade de oportunidades dos partidos políticos.
Na prática, o Tribunal Constitucional entendeu que as manifestações proferidas pela Chanceler contra o AfD violaram a igualdade de chances da legenda, sem que existissem, no caso concreto, questões ligadas aos interesses legítimos do governo federal.
A preocupação dos juízes foi, portanto, garantir a igualdade de chances na disputa política, por mais que uma das partes seja um partido de atuação muito controversa.
A decisão foi considerada surpreendente nos meios jurídico e político. Além disso, foi proferida por apertada maioria, algo não usual na tradição do Tribunal Constitucional alemão.
Por ora, interessa a seguinte questão: o dever de agir de forma politicamente neutra é inerente ao exercício das funções de chefia de Estado e de governo, ou somente da primeira?
Penso que pertence sobretudo à primeira, não devendo ser exigido demasiadamente da segunda.
No marco da ordem constitucional dos sistemas parlamentaristas, como é o caso da Alemanha, o Chanceler Federal ocupa uma posição especial dominante no sistema estatal, que se caracteriza em termos de ciência política pelo termo "democracia chanceler" (Kanzlerdemokratie), que descreve com precisão a função de liderança do cargo "princípio chanceler" (Kanzlerprinzip).
Neste quadro, o Chanceler Federal, e não o Governo Federal como órgão colegiado, é o chefe do Poder Executivo, dotado dos poderes essenciais de direção estatal, de acordo com as disposições constitucionais vigentes.
A doutrina lembra que o chefe de governo, e somente ele, é o "senhor" (Herr) da formação, composição e da continuidade do governo federal.
Isto baseia-se no fato de que apenas o Chanceler Federal é democraticamente legitimado diretamente pelo parlamento.
Só ele é politicamente responsável por todas as atividades governamentais perante o parlamento.
Simetricamente, somente o parlamento pode removê-lo do cargo por moção de desconfiança5.
Essas considerações servem para lembrar que, na ótica de um sistema parlamentarista, em que pese competir ao chefe de governo determinar as diretrizes da política, não se pode desconsiderar que, muitas vezes, o Chanceler Federal só pode agir em relação à Realpolitik de um governo, dentro dos limites que as respectivas restrições da coalizão lhe impõem6.
Ou seja, se o Chanceler não seguir a linha ideológica que permeia a coligação que o sustenta, não governará.
Por sua vez, no que diz respeito à função de chefia de Estado, o dever de neutralidade torna-se não apenas mais evidente, quanto também mais amplo em relação ao que é exigido do chefe de governo.
É característica dos sistemas parlamentaristas republicanos a falta de um detalhamento constitucional relativo às competências dos seus presidentes.
Isso significa que a questão relativa ao grau de sua influência nos acontecimentos políticos de um país depende, em grande medida, da pessoa que exerce o cargo em questão. Isto é expresso na frase incisiva: “a pessoa dá forma ao cargo” (Die Person prägt das Amt)7.
Na prática, os Presidentes nos sistemas parlamentaristas não se limitam a exercer os poderes que timidamente lhe são conferidos pela Constituição, na acepção, popularmente difundida – e de certa forma equivocada – como uma “Rainha da Inglaterra”.
Isso porque, a partir da sua nomeação, tentam, em conformidade com seus respectivos estilos, influenciar a política e as questões sociais nos discursos. Esta é uma prática estatal que molda mais o cargo na percepção pública, do que os seus poderes8.
Para um brasileiro, acostumado com as disfuncionalidades do sistema presidencialista de governo, estas questões podem parecer secundárias, considerando que no presidencialismo uma única autoridade exerce, simultaneamente, as chefias de Estado e de governo.
O ponto de análise se mostra essencial, pelo fato de que a natureza de ambas as funções é distinta. Este, aliás, é um dos grandes motivos que levam à inadequação do presidencialismo: chefiar o Estado difere muito de chefiar um governo.
A boa doutrina lembra que, ao exercer a chefia de Estado, deve o Presidente da República estar acima dos partidos e das suas competições; já como chefe de governo, deve expressar os interesses do partido ou da aliança de partidos que o elegeu9.
A função de chefia de Estado é suprapartidária e supraideológica, enquanto a de chefia de governo, contrariamente, identifica-se com partidos e ideologias.
A raiz do problema está em que ninguém pode ser, ao mesmo tempo, em diversos temas, partidário e suprapartidário, parcial e imparcial, representante do todo e expressão da parte10.
O Presidente ou atua como chefe de Estado em posição arbitral, ou atua como chefe de governo, claramente identificado, integrado e apoiado por um partido político. O que não conseguirá é levar a bom termo, conjuntamente, as duas funções11.
Assim, o sistema presidencialista, sobretudo em um país como Brasil, exige, para o exercício das funções tão diversificadas, virtudes contraditórias, mutuamente anulantes12.
E se, para fugir ao dilema, tentar exercer apenas parcialmente cada uma das funções, tende a fracassar nas duas posições13.
Nas palavras sempre atuais de Raul Pilla, as funções de chefia de Estado e de governo são muito difíceis de conciliar em uma só autoridade. "É como se, numa partida de futebol, a mesma pessoa fosse o árbitro e o capitão de um dos bandos"14.
Não é à toa que já fomos advertidos que um dos mais flagrantes contrastes da época em que vivemos está no descompasso entre a velocidade com que avança a tecnologia e os desafios e a lentidão com que caminha a evolução das instituições políticas15.
Feitas essas considerações, fica a pergunta: é crível exigir de um chefe de governo, ao qual cabe demarcar posições políticas baseadas em determinadas linhas ideológicas, um dever de neutralidade?
O Tribunal Constitucional alemão entendeu que sim.
Surgem, todavia, muitas dúvidas quanto ao acerto deste achado jurídico.
Na próxima coluna analisarei os votos dissidentes, com a finalidade de incrementar o debate.
Um tema complexo para reflexão.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Essas características do Chanceler Federal alemão estão disponíveis em EPPING, VOLKER. Grundgesetz Kommentar (Art. 62 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 18.
6 PIEPER, Stefan Ulrich. Grundgesetz Kommentar (Art. 51 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 9.
7 PIEPER, Stefan Ulrich. Grundgesetz Kommentar (Art. 51 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 11.
8 PIEPER, Stefan Ulrich. Grundgesetz Kommentar (Art. 51 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 12.
9 PILLA, Raul, Catecismo Parlamentarista. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS, reimpressão, 1992, p. 21.
10 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 95.
11 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 96.
12 LIMA, Antonio Amilcar de Oliveria. O Poder Executivo nos Estados Contemporâneos. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 38s.
13 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 96.
14 PILLA, Raul, Catecismo Parlamentarista. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS, reimpressão, 1992, p. 21s.
15 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A missão do poder executivo no estado contemporâneo. Revista de Direito Administrativo 117. Rio de Janeiro, jul.-set. 1974, p. 29.