Acerta quem diz que o processo político democrático, em seu livre jogo, tem criado, com frequência, situações que colocam em perigo a sobrevivência da própria democracia1.
Uma das questões mais importantes para a política é a renovação.
A perpetuação no poder é algo nocivo para a democracia, pois, nos mandatos sucessivos, os defeitos costumam se mostrar mais presentes do que as qualidades.
Isso porque aqueles que se agarram de todas as formas ao poder, fazendo dele a sua única opção de vida, costumam utilizá-lo como meio de satisfação pessoal e não como forma de proporcionar o bem comum.
A questão é que o Brasil foi formado, desde o Império, por um processo no qual as elites se acostumaram a circular por cargos ou postos no âmbito dos três poderes públicos2.
Permanecer no poder, indefinidamente, é uma estratégia que permeia grande parte da classe política nacional, sobretudo no âmbito do Poder Legislativo.
Ocorre que o bem comum, enquanto finalidade precípua da democracia, não encontra compatibilidade com projetos pessoais de poder.
É exatamente neste ponto que se visualiza uma das tantas mazelas do sistema político brasileiro: ele não converge para a alternância no poder, pelo contrário.
Tome-se como exemplo a configuração do Poder Legislativo.
Os que já são deputados federais ou senadores contam com inúmeras vantagens, a começar por uma quantidade expressiva de verbas custeadas pelos pagadores de impostos, destinadas à divulgação dos mandatos, viagens constantes para as bases, dentre outras.
Contudo, é na aplicação das chamadas emendas parlamentares que o desequilíbrio se torna mais evidente3.
Em uma sistemática que subverte a própria lógica da separação dos poderes, cabe ao Poder Legislativo decidir o emprego concreto de verbas em várias situações, como se Poder Executivo fosse.
Anualmente, quantias expressivas são despejadas nos redutos eleitorais, com o efeito de fortalecer a presença dos políticos, potencializando a sua base de apoio local.
A alocação de parcelas do orçamento público pela via das emendas parlamentares costuma ser conduzida mais por aspectos ligados à estratégia eleitoral, do que técnicos.
Esta estratégia faz com que parcela significativa do orçamento seja executada pela perspectiva de interesses setoriais, que não são delineados por uma visão macro das carências estruturais.
É o chamado gasto sem planejamento técnico, que costuma descontentar até mesmo gestores locais, pretensamente beneficiados pelos investimentos, pelo fato de que muitas vezes a alocação dos recursos não é direcionada às reais prioridades.
O cenário é de uma completa degeneração moral, constitucional e administrativa do sistema orçamentário.
O quadro piora, quando se leva em conta o desequilíbrio na disputa política que é gerado pela divisão do fundo eleitoral, considerando que grande parte do seu montante é destinada àqueles que já detêm mandato eletivo.
A questão que se coloca é: como quem vem de fora do sistema pode competir, em igualdade de chances, com outros candidatos que têm à disposição expressivas verbas públicas para potencializar as suas candidaturas?
De fato, não há igualdade de chances, pois o sistema é construído para perpetuar as pessoas no poder.
A prova disso é que se fosse feita no Brasil uma pesquisa com a pergunta, "você está satisfeito com o desempenho dos seus representantes políticos?", a resposta preponderante, certamente, seria um notório "não".
Como se explica, então, que à cada eleição a renovação não atinge elevada parcela dos congressistas?
A resposta está na afirmação anterior: o sistema é feito para perpetuar as pessoas no poder.
Aqueles que mais gastam com a divulgação dos seus mandatos, que mais empregam emendas parlamentares em suas bases eleitorais, são os que mais têm chances de serem reeleitos, eleição após eleição.
Uma democracia funcional não sobrevive a um sistema político dessa natureza.
Mais cedo, mais tarde, a conta chega.
Quanto maior o esforço para se manter no poder, mais os benefícios que daí advêm devem ser compensadores.
A conclusão inevitável é que quanto mais o dinheiro do pagador de impostos fluir nesta estrutura viciada, maior será o rol de oportunistas que desejará ingressar na política ou dela não mais sair.
Há que se ter em mente que para a construção da democracia é essencial, por um lado, que o povo tenha liberdade para tomar as suas decisões.
Por outro, também é fundamental que o processo de tomada de decisão deva ocorrer do povo para os órgãos do Estado e não ao contrário, dos órgãos do Estado para o povo4.
Ou seja, se os próprios órgãos de Estado, pela configuração institucional vigente, dificultam a renovação na política, pouco se avançará em termos democráticos.
Urge, portanto, a implementação de reformas políticas estruturantes, que tornem a política uma atividade mais atrativa aos bem-intencionados e menos atrativa aos oportunistas.
Não há como desconsiderar que a desigualdade de tratamento no processo eleitoral acaba inibindo o surgimento de novas lideranças, de novas ideias ou propostas, abafando a real renovação.
Real, pois a renovação não pode ser feita apenas sob a perspectiva de rostos. A verdadeira renovação envolve também uma nítida mudança de mentalidade.
Enquanto a mentalidade permanecer intimamente ligada à lógica econômica das eleições, pouco se avançará.
É nessa linha que algumas medidas podem ser pensadas, visando a promover a renovação na política.
A primeira passaria pela adoção de um sistema eleitoral distrital, que ao substituir o proporcional, permitiria a realização de campanhas mais baratas, já que as candidaturas passariam a ocorrer apenas no interior dos distritos eleitorais nos quais os candidatos estão eleitoralmente alistados.
A proximidade dos candidatos com seus eleitores é benéfica em vários sentidos.
A segunda passaria pelo fim das emendas parlamentares. A alocação concreta das verbas orçamentárias aprovadas pelo Legislativo deve passar pelo Executivo, sobe pena de usurpação funcional de competências.
A terceira passaria pela impossibilidade de se abandonar os mandatos, para concorrer a outros cargos.
A hipótese de não conclusão dos mandatos, salvo motivo de força maior, deveria conduzir à inelegibilidade, pois, de certa forma, abandonar o cargo pelo qual foi eleito, para concorrer a outro, significa uma traição ao eleitor.
Tanto é verdade, que não se vê nenhum candidato, no curso de sua campanha, advertir seus eleitores de que irá abandonar o mandato no meio do caminho, caso eleito, para disputar outro cargo.
Enquanto não se chega lá, se poderia pensar, ao menos, na ampliação das hipóteses de desincompatibilização.
Pela regra atual (art. 14, § 6º CF), exige-se apenas dos chefes do Poder Executivo que renunciem aos seus respectivos mandatos, seis meses antes da eleição, caso desejem concorrer a outros cargos.
Todos aqueles que detêm mandato eletivo no âmbito do Legislativo deveriam ter que se desincompatibilizar dos seus respectivos cargos, ou seja, renunciar, caso desejassem concorrer a outras funções.
Assumiriam, assim, o risco. Isso vale sobretudo para os Senadores que detêm mandato de oito anos e costumam se atirar em aventuras eleitorais diversas, sem qualquer receito de perderem seus cargos.
Vale, da mesma forma, para os deputados que concorrem aos cargos de Prefeitos, em cidades de maior envergadura.
A quarta medida, e a mais ambiciosa delas, seria limitar a possibilidade de reeleições no âmbito do poder legislativo.
Isto impediria as chamadas dinastias na política, que se perpetuam anos e anos no poder.
Todas essas propostas, em comum, tendem a contribuir para melhorar a igualdade de chances, em favor de novas lideranças que pretendem contribuir na política.
Elas se mostram como verdadeiras ações afirmativas para a democracia, sem prejuízo das que já estão vigentes.
Elas esbarram, todavia, em uma barreira que é, sem dúvida, a mais difícil de se transpor: como convencer os que já estão no poder a aprovar mudanças, cujo efeito será diminuir a sua chance de reeleição?
As soluções existem, o problema é colocá-las em prática.
Eis o verdadeiro dilema, que somente a cidadania ativa pode resolver, desde que transponha as atitudes de apatia e alienação, tão comuns entre nós.
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1 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 30.
2 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. A elite política imperial. Tetro de sombras. A política imperial. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 121.
3 Disponível aqui.
4 GRZESZICK, Bernd. Grundgesetz Kommentar (Art. 20 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 95 EL. Juli 2021, Rdn. 17.