Dinâmica Constitucional

Caso Daniel Silveira: a inviolabilidade permite tudo?

Caso Daniel Silveira: a inviolabilidade permite tudo?

22/4/2022

O STF, em um dos julgamentos mais polêmicos dos últimos tempos, formou ampla maioria para condenar o deputado Federal Daniel Silveira pela prática dos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e de coação no curso do processo criminal1.

A pena imposta foi dura: oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, além de multa que, em valores atuais, atinge a cifra de R$ 212 mil2.

Contudo, antes mesmo do início do cumprimento da pena3, visando a tornar sem efeito a condenação, o Presidente da República concedeu indulto individual ao condenado por meio de decreto presidencial4, com base no art. 84, XII da Constituição.

Como se percebe, em que pese o placar da votação ter sido expressivo a favor da tese da condenação do deputado, o assunto está longe de ser considerado encerrado, tamanhas são as perspectivas de análise e polêmicas que o assunto desperta.

Uma delas diz respeito ao âmbito de proteção da inviolabilidade parlamentar, aspecto que costuma ser levantado pelo lado que considera a decisão do STF incompatível com a própria Constituição.

A questão que se coloca é: a inviolabilidade parlamentar, por si só, afasta a possiblidade de condenação do deputado pelos atos que lhe são imputados?

O debate parte da premissa de que o art. 53 da Constituição conferiria ao parlamentar o direito de se expressar da forma que desejar, a partir do momento em que prevê: "Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos."

Para muitos, a expressão "quaisquer" tornaria o congressista imune pelas suas falas, por mais duras que fossem.

Neste ponto, haveria uma espécie de cisão entre o que é dito e as consequências que advêm das respectivas manifestações.

Isso fica claro a partir do instante em que parte considerável das críticas que são dirigidas ao STF não deixa de reconhecer que as falas do deputado foram despropositadas.

Fala-se em exagero de retórica, emprego de termos chulos, impropérios e até mesmo da incapacidade do parlamentar em formular críticas de modo condizente com o decoro que a sua função de representante do povo exige.

Este talvez tenha sido o motivo pelo qual a própria Câmara dos Deputados, no início de 2021, por 364 x 130 votos, decidiu manter a prisão em flagrante e sem fiança do deputado, ordenada pelo relator do inquérito que investiga no STF a prática de desinformação5.

Todavia, esse lado do debate pondera que mesmo uma linguagem inapropriada estaria coberta pela inviolabilidade parlamentar, já que, para o bem ou para o mal, estaria incluída nos termos "quaisquer opiniões ou palavras".

Para essa corrente não se poderia cogitar de crime contra a segurança nacional e o regime democrático, ou por ataque à instituição STF, apenas pelo emprego de linguagem desonrosa e despropositada de um representante eleito.

Nesse ponto, é interessante perceber que o art. 53 da CF foi objeto de atualização a partir da promulgação do texto original, de 19886, pela EC 35/2001.

A redação final se deu apenas no segundo turno de votação na Câmara dos Deputados (PEC 610-D de 1998)7, justamente para acrescentar duas partes que são fundamentais na inovação constitucional.

A primeira, que os deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente; a segunda, que a respectiva imunidade compreende “quaisquer” opiniões, palavras e votos dos congressistas.

Suprimiu-se, ainda, a redação de que a imunidade se dava no exercício do mandato.

Fica claro que o escopo da EC 35/2001 foi ampliar o instituto da inviolabilidade parlamentar.

À época, a preocupação da então consultoria legislativa da Câmara era de que "no jogo dos interesses políticos, o Poder Judiciário pudesse eventualmente servir de posto avançado de pressão contra o desempenho autônomo do mandato parlamentar".8

Em suma, os críticos à condenação do deputado costumam partir do pressuposto de que a inviolabilidade parlamentar prevista na Constituição inviabilizaria, do ponto de vista jurídico, a condenação, mesmo diante de excessos verbais.

Na prática, esse modo de analisar os fatos confere à inviolabilidade parlamentar um caráter quase absoluto.

É justamente neste aspecto que a tese em favor do deputado parece enfraquecer, ao menos no que tange à impossibilidade de ser responsabilizado por suas afirmações.

O principal motivo é que não existem direitos absolutos no ordenamento constitucional, razão pela qual a inviolabilidade parlamentar por opiniões e palavras também deve se sujeitar a condicionantes.

Não se pode negar que a liberdade de expressão dos congressistas representa uma garantia essencial à democracia.

Entretanto, há que se perceber que a inviolabilidade parlamentar é uma prerrogativa que é estabelecida pela Constituição mais a favor da instituição parlamentar e menos em favor do congressista em si, de forma a garantir a independência do Poder Legislativo frente aos demais poderes constitucionais9.

Isso reforça a noção de que quanto mais as afirmações desastrosas se distanciarem do exercício do mandato, maiores serão as chances de não estarem cobertas pela inviolabilidade parlamentar.

Se por um lado é inegável que a inviolabilidade representa uma conquista civilizatória, no instante em que valoriza a democracia representativa, por outro, o ideal que lhe agrega fundamento não pode transformá-la em escudo para negar os valores que a própria Constituição busca assegurar.

Nesta linha há que se perceber que o recurso aos fins supremos do ordenamento não pode, em nenhum momento, servir de meio para ludibriar a Constituição10, o que implica aceitar a ideia de que não se pode recorrer a uma garantia fundamental – como a inviolabilidade parlamentar - para acabar com a própria Constituição.

Assim, no curso de um conflito entre liberdade de expressão e a manutenção da democracia, fica claro que não se pode admitir que a Constituição conceda uma liberdade cujo uso poderia significar a própria negação dos seus valores, dentre eles, instituir um Estado Democrático, como se percebe desde o preâmbulo.

Entendimento contrário seria não só ludibriar, como igualmente subverter a própria Constituição.

A análise das afirmações proferidas pelo deputado deixa claro que visavam não apenas a criticar o funcionamento da instituição STF e seus respectivos membros. Iam mais além, contendo ameaças, invocações ao AI-5, dentre outras questões graves.

Se poderia até debater se o conjunto de impropérios consistiu, na prática, ameaça ou lesão efetiva à soberania nacional e ao regime democrático ou, ainda, crime contra a segurança nacional.

O que não parece razoável é colocar na conta da inviolabilidade parlamentar toda e qualquer manifestação despropositada, pois não é isso que ela visa a garantir.

A partir daí, ingressa-se no interessante tema da democracia militante (Militant Democracy ou streibare Demokratie)11, que alerta que a ordem democrática deve ser capaz de se defender dos inimigos da liberdade, levando-se em conta que a experiência mostra que a própria democracia e a tolerância que lhe é peculiar não raro são empregadas para a sua própria destruição, assunto que fica para outra oportunidade.

O cerne dessa reflexão é que não se deve afirmar que a inviolabilidade parlamentar seria uma garantia que, por si só, afastaria a possiblidade de condenação do deputado pelos atos que lhe são imputados.

No entanto, isso não significa que outros elementos não devam ser considerados na análise do caso.

Em particular, as garantias do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa, dever de proporcionalidade na dosimetria da pena, bem como a questão de existir uma complicada mistura entre julgadores e vítimas, algo que em um Estado democrático de direito não costuma soar de bom tom.

Isto faz com que o caso Daniel Silveira tenha que ser analisado a partir de diversas perspectivas, inclusive com ênfase nas garantias que não podem ser deslocadas de um processo criminal.

Se a inviolabilidade não permite tudo, também é correto afirmar que não é dado ao tribunal recorrer a qualquer expediente para se proteger dos ataques que sofre.

Afinal de contas, devido processo legal não se confunde com vingança.

O grande risco é que eventuais excessos por parte do STF induzam a uma espécie de censura relativa às críticas públicas, que qualquer instituição, em uma democracia, tem que tolerar.

A questão, como sempre, são os limites que a democracia deve suportar, análise que somente poderá ser feita a contento à luz de casos concretos, nunca em abstrato.

Onde acaba a crítica possível, ainda que injusta ou impiedosa, e começa o excesso, que corrompe a própria ordem democrática?

É exatamente esse o ponto que o caso em tela nos levará a debater, por vários anos.

__________

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Art. 53 CF/88 (redação original). "Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos".

7 Disponível aqui. Vide, em particular, p. 264, onde constam às supressões e inclusão à mão.

8 Disponível aqui, p. 314 (com anotação original de "confidencial").

9 SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 539.

10 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller Verlag, 1999, Rdn. 33.

11 LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights I, The American Political Science Review, v. 23, n. 3, p. 423ss.

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Colunista

Marcelo Schenk Duque é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha. Foi pesquisador convidado junto ao Europa Institut da Universidade de Saarland, Alemanha. Professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGS (mestrado e doutorado); Pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul - ESMAFE/RS, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional; Professor de diversos cursos de Pós-graduação lato sensu. Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Membro da Associação Luso-alemã de Juristas: DLJV. Presidente da Comissão Especial de Reforma Política da OAB/RS (CERP). Segunda formação superior: engenharia química. Instagram: @marschenkduque