A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais que mais desperta inquietações na atualidade.
A revolução trazida pelo mundo digital tornou a liberdade de expressão um assunto por demais complexo, em que consensos mínimos são raros.
A recente polêmica que envolveu a ordem de bloqueio do aplicativo de troca de mensagens Telegram, por decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes,1 posteriormente revogada,2 confirma essa realidade.
A polarização extrema que permeia o debate político no Brasil vem minando a racionalidade do discurso.
Atualmente, grande parte das análises é construída a partir de visões de mundo parciais, que buscam enxergar os fatos somente pelos filtros ideológicos que se mostram convenientes.
O resultado não poderia ser outro: o empobrecimento do debate, a falta de argumentos racionais e o ódio dirigido a quem pensa de maneira diferente.
O episódio Telegram não pode passar despercebido aos olhos do Direito Constitucional, pois coloca em evidência uma série de aspectos que não mais podem ser desconsiderados, ou simplesmente empurrados para o futuro.
De maneira geral, a decisão de bloqueio do aplicativo de troca de mensagens não se mostrou despropositada, ainda que críticas pontuais possam ser apresentadas.
Essas críticas repousam, basicamente, em dois aspectos.
O primeiro é que decisões dessa natureza não deveriam ser tomadas de forma individual (monocraticamente), pelo simples fato de que atingem um número expressivo de pessoas.
No momento em que um aplicativo como o Telegram é bloqueado, não é possível prever a quantidade de atividades lícitas que serão atingidas, aspecto relacionado, inclusive, à livre iniciativa e à ordem econômica, sem falar dos direitos de comunicação.
O ideal seria que decisões dessa magnitude fossem tomadas de maneira colegiada, a fim de que juízos de ponderação mais seguros fossem construídos, levando em conta diferentes visões acerca de um mesmo tema.
O segundo diz respeito à extensão da punição, que previa pesadas multas até mesmo para os usuários (pessoas naturais e jurídicas), que de uma forma ou outra burlassem a ordem de bloqueio, acessando o aplicativo por meio de artifícios tecnológicos eventualmente colocados à disposição dos interessados.
Fora essas questões, os fundamentos sustentadores da decisão parecem corretos.
Isso fica visível a partir do instante em que a análise se direciona para o aspecto principal da controvérsia: o reiterado desprezo à Justiça e a falta total de cooperação do Telegram com os órgãos judiciais brasileiros.
É disso que se trata.
A decisão do ministro Moraes evidencia, cronologicamente, uma sucessão de episódios que caracterizam a total falta de cooperação do aplicativo perante as autoridades nacionais.
Pode-se até argumentar que a decisão foi dura – como de fato foi -, já que atingiu um elevado número de usuários que não praticaram crime algum.
Contudo, não se pode ignorar um fato elementar: toda empresa que pretenda atuar no Brasil tem que se adequar às normas e às determinações das autoridades constituídas.
Em particular, as determinações previstas no Marco Civil da Internet (lei 12.965/14),3 norma que regulamenta o uso da internet no Brasil, que, em situações extremas, permite o bloqueio de aplicativos, como o Telegram.
Destacam-se as previsões do art. 12, III e IV,4 que preveem a suspensão das atividades desses aplicativos, bem como do art. 195, que fixa a possiblidade de responsabilização dos provedores por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem as providências que lhe cabem.
A base legal está posta.
Havendo discordância quanto ao que é exigido, o Estado democrático de direito coloca inúmeros caminhos à disposição, para que eventuais controvérsias possam ser dirimidas em um ambiente de civilidade institucional.
O que não se pode admitir é que uma empresa simplesmente ignore a legislação pátria, assim como a determinação das autoridades.
É interessante notar, aspecto consignado na decisão de bloqueio, que o Telegram tem uma postura recorrente de não se submeter a diretrizes governamentais dos países em que atua.6
Esse aspecto é empregado, inclusive, como chamariz para novos usuários.
Estamos falando, logicamente, de países de tradição democrática e não de ditaduras em que eventuais diretrizes de governos poderiam ser consideradas contrárias aos direitos humanos.
Portanto, a decisão de bloqueio não pode ser vista apenas sob a ótica de uma pesada restrição ao acesso à informação, mas, igualmente, à luz das consequências que devem ser suportadas por empresas que se negam a cumprir as leis vigentes e a colaborar com as autoridades, sob o manto do devido processo legal.
Do ponto de vista do direito constitucional está-se diante de uma hipótese de ponderação de direitos, por meio da qual concorrem, de um lado, a livre iniciativa, o acesso à informação e a liberdade de expressão e, de outro, às prerrogativas indispensáveis à manutenção do Estado democrático de direito.
Portanto, o tema não pode ser analisado apenas sob a perspectiva das liberdades, pois, se assim fosse, eventualmente a decisão se mostraria equivocada.
É exatamente pelo fato de se verificar que o fundamento nuclear da ordem de bloqueio foi uma reiterada postura de desprezo à Justiça e aos órgãos judiciais, que se pode concluir que a conduta do aplicativo colidia com a própria soberania nacional, circunstância, aliás, também verificada em outros países.
Chama atenção o fato de que o Telegram, antes da ordem de bloqueio, sequer disponibilizava uma representação oficial no Brasil, responsável por receber os comunicados das autoridades, muito embora conte com milhões de usuários no país.
Trata-se de postura de quem, de fato, não tinha a menor intenção de se submeter às leis vigentes, que, em um ambiente democrático, devem vincular a todos.
A partir daí, a cronologia dos fatos fala por si só.
Após a ordem de bloqueio, seguiu-se um pedido público de desculpas do Telegram, reconhecendo as falhas da sua atuação.
Um novo prazo foi concedido para adequações e, em seguida, restabelecida a comunicação entre a direção do aplicativo e autoridades, com as medidas exigidas sendo tomadas, o bloqueio foi suspenso.
Essa sucessão de episódios demonstra, claramente, que se não fosse a ordem de bloqueio, com as pesadas repercussões econômicas dela decorrentes, a direção do aplicativo estaria, até hoje, fazendo pouco caso das intimações que lhe eram direcionadas pelas autoridades brasileiras.
Como previamente consignado, é difícil debater livremente este assunto, independentemente das paixões políticas e ideológicas que vêm provocando a erosão do debate público.
Seja como for, é incontestável que foi a reiterada omissão do Telegram que levou à medida extrema.
É verdade que a questão é traumática, mas o aprendizado que dela deflui não pode ser desconsiderado.
O principal é que os provedores de aplicações de internet que armazenam e difundem conteúdos gerados por terceiros não podem se comportar como verdadeiras ilhas, desconectadas da realidade onde incidem e influenciam.
É clara a noção de que regulamentar plataformas de conteúdo virtual é um assunto por demais complicado, precisamente pela falta de clareza quanto aos limites dessa regulação, onde o risco maior é partir de uma censura estatal para outra de caráter privado.
É por isso que uma postura de equilíbrio não pode dispensar mecanismos de cooperação administrativa entre governos e autoridades locais com as respectivas plataformas, de modo a promover canais efetivos de interação.
Essa cooperação é não apenas indispensável, como também fundamental para diminuir o grau de intervenção judicial sobre as respectivas atividades.
Incentivar a eficaz colaboração com os provedores de conteúdo é o marco de um novo direito administrativo no formidável mundo digital.
Ela deve ser levada a efeito, ainda que por uma dinâmica de natureza econômica.
Afinal, foi justamente isso que levou o Telegram a ceder ao que se mostrava correto: o respeito às leis e às decisões judiciais.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Art. 12 da lei 12.965/14. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa: (...) III - suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; (...) IV - proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11.
5 Art. 19 da lei 12.965/14. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
6 A decisão consigna que conforme consta do relatório policial, a postura do Telegram de não se submeter a diretrizes governamentais a partir de princípios que regem a sua Política de Privacidade resultou em sanções impostas por pelo menos 11 países, incluindo a Alemanha e os EUA.