A politização de temas fundamentais à ordem pública no Brasil tem atingido níveis que beiram o insuportável.
No lugar do bom debate, expressão da dialética pautada por argumentos racionais, colocam-se paixões políticas e ideológicas como motor de discussões intermináveis.
Em diversos temas relevantes a irracionalidade vem assumindo a dianteira, sufocando qualquer tentativa de equilíbrio e moderação.
No ponto diretamente ligado à promoção da saúde, isso fica bem visível. Por atingir a todos, a pandemia deveria ser tratada como um inimigo comum, capaz de agregar a sociedade em busca de soluções.
Todavia, a desinformação deliberada, discursos de ódio e proselitismos da pior espécie vêm proliferando em um cenário que divide cada vez mais o tecido social, ao invés de unificá-lo.
A divisão é tão exacerbada, que não seria exagerado afirmar, na indesejável hipótese de o país ingressar em conflito armado com uma nação estrangeria, que certamente haveria parcela significativa que torceria pelo inimigo.
A busca pelo poder a qualquer custo vem ditando as estratégias. Agregar está longe de ser prioridade. O resultado não poderia ser diferente: o agravamento de sucessivas crises.
Há que se perceber que o melhor antídoto às crises de grandes proporções são instituições fortes, capazes de corrigir rumos, colocando a racionalidade como guia.
Em contrapartida, quanto mais recorrermos a estruturas arcaicas de organização dos poderes públicos, mais nos aproximaremos do colapso.
Um episódio recente dá conta de como é importante apostar na qualidade do arranjo institucional de uma nação.
A imprensa divulgou uma dura manifestação do diretor-presidente da Anvisa, por meio de carta endereçada ao presidente da República, por meio da qual nega a existência de interesses ocultos por trás da aprovação da vacinação de crianças de 5 a 11 anos, dentro da estratégia de combate ao coronavírus.1
Após solicitar a retratação ao presidente Bolsonaro sobre fala relacionada ao assunto, esse negou ter acusado o diretor da Anvisa de corrupção.2
Antes disso, houve registros de tentativas de intimidação de técnicos da Anvisa no assunto relacionado às vacinas infantis.3
Interessa nesses episódios assimilar o seguinte: uma boa arquitetura institucional livra o país de desmandos.
A autonomia e independência das agências reguladoras, como é o caso da Anvisa, são instrumentos de grande valor para um Estado democrático de direito.
Isso porque contribuem para a indispensável separação entre Estado, governo e administração em um país, sem a qual uma democracia fica impossibilitada de adquirir funcionalidade.
Esse binômino é garantido por dois fatores básicos: independência orçamentária e estabilidade de seus diretores por meio de mandatos fixos, o que impede a sua livre destituição por iniciativa do presidente da República, tal como costuma ocorrer nos cargos em comissão, de livre nomeação e exoneração.
A partir do momento em que a direção colegiada das agências está protegida contra o desligamento arbitrário, ela adquire condições para pautar suas decisões guiada por profissionalismo e imparcialidade, ou seja, em estrita observância às normas e requisitos técnicos vigentes.
Afastam-se, assim, as nocivas interferências da política e da ideologia, que contaminam a administração pública como um todo.
Essas interferências são parte dos grandes empecilhos ao desenvolvimento racional e sustentável de um país. Da mesma forma, atuam como um dos motores da corrupção institucional que há muito nos asfixia.
Se por um lado governo e administração são dependentes um do outro no aspecto funcional, por outro, o respeito à Constituição exige que a Administração atue com autonomia, independência e responsabilidade própria diante das forças políticas.4
Falta, em grande parte das lideranças políticas, a noção, há muito percebida por gigantes como Max Weber,5 de que um dos aspectos decisivos para a engenharia constitucional de uma nação passa pela construção de um modelo que prime pela autonomia e imparcialidade da Administração Pública.
Para tanto, é fundamental apartar a função administrativa das funções de chefia de Estado e de governo. A finalidade é permitir que os órgãos administrativos tenham condições de guardar autonomia frente aos recortes ideológicos inerentes aos governos eleitos.
A boa doutrina possui ensinamentos valorosos nesta questão fundamental, a seguir sintetizados.6
Na prática, os governos indicam a direção e à administração compete organizar materialmente os meios necessários à realização do interesse público. É justamente aqui que deve cessar a subordinação e iniciar a independência.
No caso que serve de exemplo, cabe ao governo indicar que seus esforços estão voltados à promoção da saúde de todos, tal como ordenado pela Constituição.
À administração, por sua vez, cabe organizar os meios práticos e pô-los em curso para que o objetivo constitucional seja cumprido a contento.
Significa, nitidamente, que quando a administração organiza e executa os serviços públicos, tal como os ligados à saúde, não pode, de forma alguma, preterir seus resultados por força de critérios políticos ou ideológicos, sejam quais forem.
Em outras palavras, não é dado à administração agir de uma forma ou de outra com base em preferências ou antipatias políticas, ou até mesmo distorcer procedimentos apenas para agradar os governos de plantão.
Inegavelmente, quando atua em presença da população, vale dizer, dos direitos constitucionalmente assegurados, a administração deve agir com imparcialidade, tal como uma chefia de Estado deveria ser, de forma suprapartidária e supraideológica, acima de das considerações típicas da atividade política.
Essas questões deviam estar na cabeça de todos aqueles que exercem ou pretendem exercer funções de ordem pública.
É bem verdade que delimitar uma linha de atuação precisa e independente entre governo e administração é uma tarefa difícil. Todavia, não impossível. O caminho é a institucionalidade.
Política, ideologias e proselitismos de qualquer natureza não devem sufocar as características típicas da administração: impessoalidade, imparcialidade, apartidariedade, profissionalismo, continuidade, tecnicidade e eficiência.
Essa é a razão pela qual a independência das agências reguladoras, dentre outros aspectos, é fundamental para o bom funcionamento institucional.
Manter um elevado nível de controle e fiscalização das atividades reguladas, além de primar pela segurança e qualidade dos serviços prestados, é um papel que só pode ser levado a efeito com o fortalecimento da autonomia e independência dessas agências.
Portanto, toda a polêmica que envolve as estratégias de combate à pandemia, em particular de vacinação, deve ser dissolvida da forma mais distante possível da política e das ideologias de ocasião.
Há que se priorizar o apoio ao cumprimento das normas e requisitos técnicos vigentes, deixando de lado meras opiniões que não se balizam em fontes confiáveis.
Quando fundamentado em pesquisas sérias, dentro dos padrões e procedimentos internacionalmente reconhecidos, o debate em torno de estratégias de combate à pandemia é sempre bem-vindo. Fora disso, em nada contribui.
Assim, quanto mais as soluções emergirem à luz de critérios técnicos, mais perto estaremos de vencer esse difícil momento que vivemos.
A independência e autonomia da administração, devidamente fiscalizada por critérios objetivos, capazes de aferir a eficiência da sua atuação, em respeito à ordem constitucional vigente, funcionam como um bom antídoto ao autoritarismo.
Não é por menos que a Constituição, em seu art. 227, afirma que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outros, o direito à vida e à saúde.
Esse dever de proteção estatal impõe que deverá prevalecer, frente a quaisquer outros interesses, aquele que for mais efetivo para as crianças, adolescentes e jovens. Não há como interpretar o termo absoluta prioridade de forma diversa.
Do todo, resta a advertência: se a Administração for absorvida pela política e ideologias passageiras, estará aberto o caminho para o caos.
1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 536s.
5 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 212ss.
6 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. O Tribunal Constitucional como Poder. Uma Nova Teoria da Divisão dos Poderes. São Paulo: Memória Jurídica, 2002, p. 85ss.