Quando um país opta por uma má configuração institucional, há sempre um preço a ser pago. E não costuma sair barato.
A polêmica1 que envolve a compatibilidade das despesas decorrentes das emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual com os princípios da transparência e do controle social do dinheiro do contribuinte, dá conta dessa realidade.
Sintetizo o ponto: enquanto os olhos se voltam para uma interminável discussão quanto à possiblidade de o STF interferir, ou não, na execução de despesas discricionárias do relator da lei orçamentária, deixa-se de atentar para o aspecto essencial: até onde se está disposto a ir em busca da governabilidade?
Há muito que as normas que envolvem a questão orçamentária federal são marcadas por inegável complexidade, sendo por vezes de difícil compreensão até mesmo por parte de quem possui contato direto com a temática. Afinal, quanto mais complexo é o sistema, mais difícil de ser controlado.
É o que o próprio STF denomina de um modelo regulatório multinível, com disciplinas jurídicas assimétricas nos âmbitos constitucional, legal e regimental.2 Na prática, esse modelo híbrido de regulamentação das despesas orçamentárias se movimenta por meio de emendas de diferentes espécies,3 mas que se deixam reconduzir a uma base comum.
As semelhanças se evidenciam no fato de que os diversos tipos de emendas permitem a alocação orçamentária de receitas e despesas, com base em um juízo discricionário dos Congressistas, acabando por privilegiar setores específicos, com base em visões periféricas, em detrimento do todo.
Vale dizer, os Deputados Federais e Senadores contam com um juízo de conveniência e oportunidade para decidir o que será gasto, em seu nome, a partir de fatias da verba do orçamento anual.
Embora não se trate de uma discricionariedade absoluta, mas sim regrada, já que limitada por parâmetros constitucionais e infraconstitucionais que vinculam a lei orçamentária, não há dúvida de que no Brasil uma parcela significativa do orçamento público está sujeita a um juízo político-eleitoreiro.
O problema é que, pela sua natureza política, a alocação de parcelas do orçamento público pela via de emendas acaba sendo conduzida muito mais por aspectos de conveniência e estratégia eleitorais, do que técnicos.
Desse modo, por meio de emendas de diversas naturezas, os Congressistas podem decidir, com considerável margem de manobra, quanto e onde investir a parcela do orçamento público anual que lhes cabe.
Na prática, a finalidade não pode ser mascarada. As emendas parlamentares destinam-se a fortalecer a presença dos políticos nas suas bases eleitorais.
As emendas de relator, objeto de tanta polêmica nos últimos tempos, são apenas um dos capítulos em um cenário corrosivo de emprego de verbas públicas.
É verdade que no emaranhado de diversos tipos de emendas orçamentárias, há diferentes níveis de transparência e de atenção aos princípios constitucionais da Administração Pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), situando-se as emendas de relator no último lugar dessa lista.4
Sem embargo, a simples possiblidade de se admitir emendas parlamentares é o retrato de uma disfuncionalidade inerente ao sistema de governo presidencialista,5 cabendo aos analistas, no debate das modalidades existentes, apenas decidir quais pretendem suportar.
A questão é, portanto, muito mais sistêmica, do que ocasional. Isso porque o sistema de governo presidencialista permite a eleição de um Presidente da República, sem que lhe seja assegurada maioria parlamentar mínima no Congresso Nacional, apta a lhe garantir a governabilidade.
Como venho insistindo neste espaço,6 a fragmentação partidária brasileira faz com que, inevitavelmente, os governos eleitos sejam compelidos a cooptar uma base política no Congresso, como condição para obter apoio político majoritário necessário à aprovação dos projetos de seu interesse. É a chamada conversão do presidencialismo de coalizão ao presidencialismo de cooptação.
Um sistema que elege uma autoridade para governar no curso de um mandato fixo, mas que ao mesmo tempo não lhe garante o apoio político para tanto necessário, está fadado ao fracasso. É por essa razão que o próprio sistema constrói contornos, mais ou menos republicanos, visando a construir alternativas para a obtenção da governabilidade.
Na história recente do Brasil esses contornos têm levado, não raro, a um desastre institucional.
Com exemplo, os escândalos multipartidários do Mensalão e do Petrolão, somados à distribuição irracional de cargos na Administração e de emendas parlamentares de diferentes espécies, como condição para a obtenção de um frágil e momentâneo apoio político, que se esvai com a mesma rapidez com que as marés avançam e retraem, bem dão conta dessa realidade.
Não é exagerado concluir que quando empregadas apenas com a finalidade de obtenção de apoio político no Congresso, as emendas parlamentares convertem-se em uma espécie de propina pública.
No caso específico das emendas parlamentares, se pode até debater o seu grau de conformidade à ordem constitucional. Entretanto, a maioria desses instrumentos têm uma natureza, que no fundo é promíscua: permitem o emprego dos recursos públicos conforme interesses eleitorais, visando à reeleição dos Congressistas.
No afã de criarem vínculos com suas bases eleitorais, os autores das emendas, sobretudo as de relator e as individuais, costumam se apartar de critérios técnicos e objetivos. O orçamento passa a se desprender de uma visão macro para atender a interesses setoriais, muitas vezes construídos por vias informais e obscuras, sem que se tenha um estudo acerca da priorização dos gastos.
Afinal, o que está em jogo é a reeleição, sempre ela! Isso explica os motivos pelos quais parte significativa das ações custeadas nos redutos eleitorais, por meio da execução de emendas parlamentares, têm a sua respectiva escolha questionada pela população e até mesmo pelos gestores locais.
As prioridades costumam ceder ao oportunismo, que passa a assumir o lugar da técnica, que em um ambiente de recursos escassos deveria, necessariamente, conduzir as escolhas.
É fácil perceber que a prática, já consolidada na cultura parlamentar, é nociva até mesmo para o ideal democrático de renovação do poder.
O fundamento é manifesto: novas lideranças que pretendam ingressar na política enfrentarão muitas dificuldades para competir com aqueles que, por já estarem inseridos no poder, detêm em suas mãos a caneta das emendas parlamentares.
Isso denota uma parcela do caráter obscuro do nosso sistema de governo. Quanto antes percebermos que sistemas ruins levam as pessoas a se comportar de forma inadequada, sem que se queira absolver ninguém por seus erros, mais perto estaremos de uma conclusão segura em torno das nossas prioridades.
Do contrário, seguiremos nossos dias debatendo em que medida cabe ao STF corrigir os rumos do Congresso Nacional, em uma discussão sem fim.
Enquanto isso, as emendas de relator podem até deixar de existir, em sua conformação atual. Todavia, uma aposta se faz segura: enquanto investirmos no presidencialismo, o sistema encontrará outros meios para a compra da governabilidade, inclusive por meio da alocação de recursos no varejo.
Quem compra apoio político não quer transparência, tampouco está preocupado com favorecimentos. Resta só aguardar a criatividade dos governos de plantão.
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2 Vide o voto divergente do Min. Gilmar Mendes nos autos da ADPF 854. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6199750
3 O Regimento Comum do Congresso Nacional prevê quatro espécies de emendas parlamentares, que se deixam classificar a partir da sua autoria: emendas de comissão, de bancada estadual, individuais e as emendas do relator-geral do projeto de lei orçamentária anual, às quais se atribuiu a rubrica RP-9, objeto da presente controvérsia.
4 Essa é uma das conclusões do julgamento que referendou a medida liminar concedida pela Min. Rosa Weber, na apreciação conjunta das ADPF 850, 851 e 854, que suspendeu execução de emendas do relator e ordenou a publicidade dos documentos que embasaram a liberação de recursos do orçamento. Informações em http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=476385.
5 https://www.migalhas.com.br/coluna/din%C3%A2mica-constitucional/348293/presidencialismo-a-disfuncionalidade-como-padrao
6 https://www.migalhas.com.br/coluna/din%C3%A2mica-constitucional/347620/o-presidencialismo-indutor-de-crises