Na coluna passada descrevi uma série de aspectos positivos na Constituição Federal de 1988, que completou 33 anos.1
Entretanto, não são poucos os críticos da Constituição em vigor. Parte das observações em tom negativo repousa na natureza analítica do texto, que para muitos desvirtua o próprio caráter educativo da Constituição.
O argumento que é normalmente empregado aponta para a noção de que as Constituições escritas deveriam ser breves, para que tenham valor educativo, devendo se limitar a fixar o que é considerado essencial, deixando a cargo do legislador ordinário as tarefas de complemento e detalhamento.2
É o que se costuma denominar de crítica às chamadas Constituições analíticas, prolixas ou inchadas. O bom debate passa pela pré-compreensão do que configura, em verdade, uma Constituição analítica?
Paulo Bonavides descrevia esse tipo de Constituição como aquela que traz em seu bojo matéria que, por sua natureza, é alheia ao Direito Constitucional propriamente dito.
Percebe-se que não é uma tarefa fácil encontrar o limite onde uma Constituição deixa de ser sintética para se tornar analítica. Isso porque não existe um critério minimamente uniforme, apto a delimitar o que pertence ao âmbito do Direito Constitucional e o que não pertence.
Todavia, ele se aclara a partir do instante em que se analisa, em contraposição, o conceito de Constituição concisa ou sintética: aquela que abrange apenas princípios gerais ou enuncia regras básicas de organização e funcionamento do sistema jurídico, deixando a parte de pormenores à atuação do legislador ordinário.3
Aqui se está diante de uma regra que é útil para explicar conceitos com elevado grau de abstração: é muito difícil dizer o que são, mas é relativamente mais simples dizer o que não são, quando se analisa um objeto ou realidade concretos, a partir de uma boa noção das coisas.
Isso significa que ainda que se tenha dificuldade em delimitar o que é uma Constituição concisa, parece fácil perceber que esse não é o caso da Constituição Federal de 1988, já que não se limitou a veicular um conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado, o que integra o típico conceito de Constituição na visão da doutrina clássica.4
Com 250 artigos, centenas de incisos, alíneas e parágrafos, além de 111 Emendas Constitucionais (contando até o final de outubro de 2021), somadas às 6 Emendas de revisão e a um longo ato de disposições constitucionais transitórias, uma conclusão diversa não se mostra possível.
Se poderia discutir o que é essencial, dentro da tradição histórica e cultura de cada nação. Certamente, o que é essencial na realidade norte-americana, maior exemplo em termos de Constituição sintética, não é impreterivelmente o mesmo que no Brasil, um dos maiores exemplos contrapostos de Constituição analítica.
Contudo, isso não afasta a circunstância de que a Constituição de 1988 exagerou. De fato, o texto consagra inúmeras passagens que, a despeito de sua relevância para o mundo jurídico, não possuem o status de normas constitucionais do ponto de vista material.
O grande equívoco que se costuma praticar é associar, obrigatoriamente, a relevância de um assunto jurídico com a natureza de norma constitucional.
Isso porque nem todo assunto relevante para a ordem jurídica é, necessariamente, um assunto constitucional. Entendimento contrário levaria a crer que quase a totalidade dos dispositivos do Código Civil, por exemplo, por terem relevância jurídica, deveriam ser abrigados no texto da Constituição, o que se mostra, logicamente, inviável.
Por vezes, pode ocorrer que uma norma infraconstitucional também detenha natureza constitucional, mas que por decisão dos legisladores constituintes, optou-se por lhe agregar status infraconstitucional, opção que se se mostra perfeitamente válida na ordem constitucional vigente.
É o caso, por exemplo, de grande parte das normas de Direito Eleitoral, que a despeito de cuidarem de tema inerente à organização estatal, portanto, materialmente constitucionais, estão disciplinadas fora da Constituição.5
A realidade é clara. Um número considerável de normas estampadas na atual Constituição possui somente aparência constitucional, já que lá estão apenas por vontade do legislador constituinte, que pretendeu dotar os respectivos preceitos de maior estabilidade, por força de conveniências do momento.
Por certo, não fariam falta se estivessem disciplinadas ao longo da legislação infraconstitucional.
O quadro indica que a Assembleia Nacional Constituinte se afastou da lição de Carlos Maximiliano, que recomendava que a Constituição deveria, ao lado de condensar normas asseguradoras do progresso, da liberdade e da ordem, evitar casuística minuciosidade, a fim de se não tornar demasiadamente rígida, permanecendo, assim, dúctil, flexível e adaptável a épocas e circunstâncias diversas, de modo a garantir a sua longevidade.6
A pressão das corporações, aliada a interesses eleitorais que se fizeram presentes por força da opção por uma Assembleia Nacional Constituinte não exclusiva, explicam, em grande parte, o que temos hoje em termos de Constituição.
A questão que se coloca é: em que medida a escolha por uma Constituição analítica compromete a efetividade da ordem fundamental jurídica da coletividade? De fato, essa opção traz problemas que não podem ser menosprezados. Cito, pelo menos, quatro.
O primeiro reside no sentimento de banalização. Ao se rechear a Constituição com normas que não dizem respeito aos direitos fundamentais, à organização fundamental do Estado ou seus princípios constitutivos, acaba-se por gerar uma banalização do próprio Direito Constitucional.
Isso porque disposições constitucionais relevantes passam a conviver lado a lado com outras, cuja inobservância pontual não conduz, necessariamente, a uma crise de identidade do próprio Estado.
O efeito é conhecido. Quando se ignora uma disposição lateral da Constituição, o sentimento comum é de que isso não compromete o sistema, o que induz a um comportamento de falta de vontade para a Constituição, que lhe retira força normativa, usando a imortal expressão de Konrad Hesse.7
Dito de outra forma, as Constituições analíticas convivem, em maior grau, com violações do seu texto.
O segundo reside na necessidade de alterações mais frequentes da Constituição. Quanto mais assuntos forem incorporados pelo texto constitucional, maior será a necessidade de adaptação aos novos tempos, considerando que detalhes exigem adaptações mais frequentes que as estruturas perenes.
A minuciosidade do texto constitucional atrai mudanças de modo semelhante a um processo de imantação. O problema é que a aprovação exagerada de emendas constitucionais também conduz a um sentimento de banalização, favorecendo novas e sucessivas intervenções modificativas.
Com isso, acaba-se por se alavancar um processo de erosão do texto original da Constituição, que em certos casos tende a comprometer a sua própria identidade.
Se por um lado as emendas constitucionais são necessárias para deixar a Constituição aberta ao tempo, possibilitando o vencimento de situações presentes e futuras,8 por outro, quando empregadas em demasia, corre-se o risco de se comprometer a própria unidade do texto constitucional. Modificar a Constituição passa a ser praxe e não exceção.
O terceiro diz respeito ao engessamento da dimensão processual da democracia. Quanto maior for a quantidade de normas apenas formalmente constitucionais, maior é o engessamento das decisões por elas reguladas.
Isso porque, uma vez inseridas na Constituição, passam a depender do quórum de maioria qualificada para qualquer alteração, o que retira do debate legislativo ordinário a flexibilidade para aprovação de modificações.
Transferir grande parte das decisões jurídicas para o nível constitucional não se mostra uma decisão acertada. Pelo contrário, muitas vezes é contraproducente.
A dificuldade de se aprovar reformas estruturais no país dá bem conta dessa realidade. Tudo passa a depender de emendas, cujo consenso para aprovação em quórum de maioria qualificada é muito difícil.
O quarto, por fim, diz respeito à sobrecarga da jurisdição constitucional. À medida em que quase todos os assuntos jurídicos adquirem repercussão na Constituição, o resultado é manifesto: quase tudo acaba por desaguar, de um jeito ou outro, no STF.
Isso tem o efeito nocivo de congestionar a pauta da Corte Suprema, já que grande parte da sua atuação passa a se voltar a assuntos que não tem necessariamente relevância constitucional, no sentido da análise de normas materialmente constitucionais.
O resultado é que o STF acaba por se dedicar a temas que poderiam estar bem guardados na tutela das instâncias ordinárias do Poder Judiciário, comprometendo, assim, a sua própria capacidade funcional.
Em suma, parece estreme de dúvidas que o caráter analítico da Constituição passa longe de ser a melhor opção. Isso não significa, obrigatoriamente, que deveríamos convergir para um modelo de Constituição extremamente analítico, a semelhança do que ocorre nos EUA.
Significa, contudo, que um enxugamento considerável das matérias constitucionais traria bons frutos, já que haveria espaço para se ater ao que realmente é essencial.
Quantidade não costuma ser sinônimo de qualidade e com o Direito Constitucional não é diferente.
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1 Disponível aqui.
2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 36 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 38.
3 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 91.
4 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 40.
5 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. In: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 60.
6 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 304.
7 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft der Verfassung. Freiburger Antrittsvorlesung. In: Recht und Staat, Heft 222. Tübingen: Mohr, 1959, p. 8ss.
8 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 37s.