No dia 7 de julho de 2021, o Presidente Jair Bolsonaro anunciou publicamente a indicação de André Mendonça, para ocupar a cadeira que até então era de titularidade do Ministro Marco Aurélio Mello no STF, que se afastou do tribunal pela aposentadoria compulsória.1
Conforme reza a Constituição Federal, a nomeação do indicado para o STF se constitui na forma de um ato administrativo complexo, já que a sua consumação depende da manifestação de dois órgãos distintos: a indicação do chefe do Poder Executivo e a aprovação do Senado Federal, por meio de sabatina dirigida ao indicado.
Ocorre que, até o presente momento, meses após a indicação, não foi designada, pelo Presidente da Comissão de Constituição de Justiça do Senado (CCJ), a referida sabatina, o que impede a Casa Legislativa de apreciar a indicação. A questão foi, inclusive, submetida ao STF por parte de Senadores contrários à omissão,2 cujo pronunciamento final se aguarda.3
Frente à tal conduta de natureza omissiva, cabe questionar: a atitude do Presidente da CCJ do Senado encontra amparo na Constituição?
Os que defendem que a designação da sabatina se insere na margem de discricionariedade política do Presidente da CCJ do Senado, inclinam-se a responder à questão de modo afirmativo. É uma visão que se aproxima dos chamados atos internos do Legislativo ou interna corporis, como se costuma dizer na linguagem jurídica.
Esse entendimento tem uma consequência prática relevante, que é a de dificultar, se não afastar por completo, em alguns casos, a possibilidade de controle judicial desses atos, com base no princípio da separação dos poderes. Em outras palavras, a questão ligada à omissão deveria ser resolvida exclusivamente no âmbito da arena política, vale dizer, do Poder Legislativo, sendo vedada a sua apreciação pelo STF.
Já os que sustentam que uma omissão dessa natureza tem o efeito de interferir na atuação de outro Poder, não aceitam, com tranquilidade, a tese de que elementos de discricionariedade política são capazes de congelar a realização da sabatina de uma pessoa indicada para ocupar um cargo tão importante, como o de Ministro do STF. Essa é, justamente, a posição que defendo.
Antes de expor os motivos, deve ficar claro que a questão deve ser analisada, como recomenda o Direito Constitucional, de forma técnica, independentemente das qualidades ou defeitos do indicado. Essas, de fato, são apreciações que tocam exclusivamente aos Senadores da República, no momento de acatarem, ou não, a respectiva indicação.
O aspecto que denota abuso de prerrogativa parlamentar por parte do Presidente da CCJ do Senado é que a sua deliberada omissão acaba por interferir, frontal e inequivocadamente, no funcionamento do Poder Judiciário.
A partir do instante em que o STF é obrigado a funcionar com apenas 10 Ministros, no lugar de 11, fica claro que vários problemas acabam surgindo. O primeiro deles é que se impede a composição plena, o que favorece a ocorrência de empates nas votações. Com isso, acaba-se por retardar a conclusão dos julgamentos, prejudicando a celeridade processual.
Esse é um dos pontos mais relevantes na discussão. O STF é um dos tribunais constitucionais com a pauta mais alargada no mundo. Julga milhares de processos por ano. É fácil perceber que cada mês de trabalho, com a composição desfalcada, implica represamento no fluxo normal dos processos, tanto os que serão distribuídos quanto os que aguardam julgamento.
Nesse ponto, não é exagerado falar que a omissão na realização da sabatina compromete, ainda mais, os já combalidos direitos fundamentais de acesso à justiça e da razoável duração do processo.
Se a omissão fosse de responsabilidade do Presidente da República (caso se abstivesse de indicar um nome para o STF, o que não é o caso), estaríamos diante de inegável configuração de crime de responsabilidade, previsto no art. 85, II, da Constituição, pelo fato de a omissão atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário.
Ocorre que a omissão decorre, exclusivamente, do Presidente da CCJ, nos termos do regimento interno do Senado, perante o qual não se projeta a figura do crime de responsabilidade.
Registrado o problema e a tomada de posição, cumpre avançar para duas questões tormentosas: por que isso ocorre e como resolver?
A primeira questão deriva de uma disfuncionalidade gritante: o excesso do poder de obstrução dos Presidentes das Casas Legislativas que compõem o Congresso Nacional e das respectivas comissões relevantes, como a CCJ.
A disfuncionalidade caracteriza-se pelo elevadíssimo grau de discricionariedade política por parte dos seus respectivos Presidentes, que por meio de omissões e chicanas deliberadas conseguem sufocar, querendo, a vontade – inclusive da maioria – da representação política nacional.
Esse excesso de poder fica claro já nas eleições para as presidências das Casas Legislativas, disputadas com grande intensidade por parte dos interessados, que só obtêm a vitória por meio de complexas costuras políticas, que envolvem promessas e compromissos das mais variadas espécies.
O fato é que, uma vez eleitas ou indicadas, essas autoridades entendem que podem, no exercício das suas respectivas competências, decidir se projetos de interesse nacional serão votados ou engavetados, se os processos de impeachment terão prosseguimento, se condutas de parlamentares serão investigadas, se comissões de ética serão instauradas e, no ponto que toca à presente análise, se uma pessoa indicada pelo Presidente da República à vaga de Ministro do STF será sabatinada.
É como se uma só pessoa pudesse decidir se o caminho previsto pela Constituição será seguido ou não. Portanto, não é exagerado falar que essas autoridades acabam por se confundir com o próprio Poder, algo que em um Estado democrático de direito, que faça jus ao nome, é inconcebível.
Ao tratarem o exercício da função pública como ato de mera vontade pessoal, afastam-se de vários princípios constitucionais relevantes, como a legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência.
Da mesma forma, esquecem que as competências que lhe são conferidas pelas normas vigentes inserem-se em um espaço de poder-dever. Significa que não têm apenas o poder de decidir ou não se devem praticar os atos que lhe competem, pois têm, igualmente, o dever de fazê-lo.
Na prática, o sistema jurídico-constitucional não lhes obriga a decidir em um ou outro sentido – e nem poderia fazê-lo. Entretanto, obriga uma tomada de decisão. Se entender que o indicado não faz jus à nomeação, que convença seus pares, por instrumentos republicanos, a rechaçarem a indicação. O que não se pode admitir é privar os membros da CCJ de conduzirem a sabatina e, igualmente, o Plenário do Senado do parecer final.
Atitude contrária configura abuso de poder, fruto de puro arbítrio, incompatível com a ordem de valores da Constituição em um ambiente democrático.
Cumpre, agora, se posicionar quanto à segunda questão: como resolver esse problema? A solução, de difícil costura política, passa por reformas estruturantes, que envolvem a modernização dos regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado e, também, a aprovação de emendas constitucionais de natureza pontual, voltadas a diminuir o poder, quase que "imperial", dos Presidentes das Casas Legislativas e das suas comissões relevantes.
Não se mostra razoável que em uma democracia, onde recursos vultosos – até mesmo incompatíveis com a realidade econômica e social vigente – são investidos para a manutenção de um largo corpo político, a ação de uma única pessoa seja suficiente para estancar a vontade de outros representantes políticos, que, por terem sido eleitos pelo povo, gozam de igual legitimidade na chamada democracia representativa.
Impõe-se perceber que uma verdadeira democracia é incompatível com o excessivo poder de obstrução política conferido às autoridades, isoladamente consideradas. Se por um lado a natureza das funções políticas reclama uma considerável margem de discricionariedade de atuação, por outro lado, não se pode aceitar que essa margem se converta em puro arbítrio, ao ponto de ignorar a natureza colegiada dos órgãos de representação coletiva.
O problema será atenuado a partir do instante em que a Constituição e os regimentos internos passarem a priorizar decisões colegiadas das mesas diretoras, no lugar de decisões monocráticas.
Isso faria com que na hipótese de inércia deliberada, os demais integrantes das mesas, eleitos pelo critério da proporcionalidade entre os partidos, em critério voltado ao pluralismo, pudessem tocar as decisões, dando curso aos respectivos procedimentos.
Se poderia, igualmente, prever a ocorrência de quebra de decoro parlamentar pelo não exercício do poder-dever.
Essas modificações retirariam o peso da responsabilidade das costas de uma única autoridade e o distribuiria a um juízo mais plural, contribuindo para a diminuição de arranjos de natureza arbitrária, valorizando a colegialidade, típica dos órgãos de representação.
O que se vivencia, na prática, é um sistema ávido a ações articuladas, que visam a ignorar o plenário das Casas Legislativas, pela técnica da obstrução. Uma verdadeira chicana, de natureza passiva, que sufoca a opinião do corpo de representantes eleitos pela estratégia política de determinadas autoridades.
Fica claro que a representação do povo e dos Estados-membros da Federação não pode sucumbir aos anseios de pessoas individualmente consideradas, por mais importantes que sejam no quadro da representação dos Poderes e das funções que encabeçam. No mínimo, estamos a manter uma engenharia de baixíssima institucionalidade, que pouco se coaduna com o espírito democrático e republicano.
Enquanto as mudanças não vêm, caberia ao Presidente do Senado avocar a competência de designação da Sabatina para si, de modo a permitir que os seus pares decidam, de fato, se o indicado pelo Presidente da República cumpre os requisitos constitucionais indispensáveis ao exercício da nobre função de Ministro do STF.
Tal atitude, longe de ser arbitrária, corrigiria a injustificada omissão, que viola a Constituição em seus princípios elementares, além da própria dinâmica do processo democrático.
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1 Disponível aqui.