Dinâmica Constitucional

Distritão: o que é ruim sempre pode piorar

Distritão: o que é ruim sempre pode piorar.

20/8/2021

As propostas de reforma política discutidas no Congresso Nacional não debatem os pontos-chave, considerados essenciais para a depuração do sistema político. Costumam avançar em questões assessórias, por vezes trazendo inovações positivas, mas, na maioria das vezes, veiculam retrocessos.

Não é exagerado afirmar que o Congresso Nacional não perde oportunidades de propor retrocessos no já combalido sistema eleitoral brasileiro. Como exemplo recente, pode-se citar a aprovação relâmpago, pela Câmara dos Deputados, da PEC 125/2011,1 apelidada de PEC da reforma eleitoral.

Essa PEC aglutinou diversas propostas, algumas positivas, outras péssimas, em um texto que seguirá à apreciação do Senado Federal. Dentre os graves retrocessos aprovados, pode-se citar o retorno das coligações nas eleições proporcionais e a flexibilização das cláusulas de desempenho, que incentivam a proliferação de partidos inexpressivos. Espera-se que o Senado aja para impedir que tais retrocessos avancem.

A boa notícia é que a Câmara dos Deputados rejeitou a introdução do sistema eleitoral conhecido como "distritão", uma espécie de fantasma que, de tempos em tempos, assombra a população. Nesta coluna eu explico o que é o tal distritão, para que se percebam os motivos pelos quais ele não é uma solução para os nossos problemas, pelo contrário.

Os problemas do distritão já começam pelo nome. Ele confunde a população. O tal distritão jamais pode ser confundido com o sistema eleitoral “distrital”, nas variantes puro ou misto. É muito importante que se tenha isso em mente.

O sistema distrital é altamente positivo e se revela como a melhor alternativa possível para depurar o modelo eleitoral brasileiro. Não possui qualquer relação com o distritão, salvo na semelhança dos nomes. No futuro, este espaço se dedicará a debater o sistema distrital. Por ora, voltemos ao pesadelo.

A lógica do distritão é inserir para a eleição de deputados federais, estaduais e vereadores o princípio majoritário, que consiste na eleição dos mais votados, semelhante ao que ocorre para a eleição dos senadores. De forma simples, entre todos os candidatos, seriam eleitos os mais votados.

O Estado inteiro – e não pequenas regiões, como ocorre no sistema distrital – converte-se em um único distrito, daí a origem do nome "distritão".

Por exemplo: o Estado de São Paulo elege 70 Deputados Federais. Se o sistema distritão fosse aprovado, seriam eleitos os 70 deputados mais votados, por ordem decrescente, sem que a votação de um influenciasse a dos demais.

Analisando-se apenas sob essa ótica, o sistema poderia ser visto como positivo, pois simplifica a lógica da eleição e impede um efeito danoso do sistema proporcional, que é figura do chamado "puxador de votos", que ficou muito conhecida no célebre caso "Tiririca".2

É por essa razão que, em meados de 2015, o então vice-presidente Michel Temer defendeu o modelo, sob os argumentos de seguir o princípio constitucional de eleger os candidatos mais votados e que só se candidatariam aqueles que, em princípio, soubessem que teriam boas chances de se elegerem, diminuindo, assim, o número de candidaturas.3

O problema é que por trás dessas vantagens, o sistema distritão esconde uma série de gravíssimas desvantagens, em um cenário onde as primeiras são inteiramente sufocadas pelas segundas. É como conversa de vendedor esperto: mostra apenas o lado bom, escondendo o ruim, ainda que predominante.

Caso vier a ser implementado em algum momento, considerando as idas e vindas do Congresso Nacional no tema, os danos à democracia serão manifestos, em verdadeiro retrocesso.4

Vamos às desvantagens do sistema distritão. Tomo por base a eleição de deputados federais e estaduais para expor o raciocínio.

1. O distritão parte de uma premissa nociva à qualidade da representação política: fomenta o distanciamento do candidato em relação ao eleitor. A partir do instante em que os mais votados em um Estado da federação são eleitos, o sistema obriga o candidato a disputar votos em todas as regiões desse Estado.

Consequentemente, impede-se a criação de um vínculo de proximidade entre os candidatos e o eleitor, já que aqueles que concorrem deverão estar presentes em um maior número de regiões para viabilizarem as suas chances. Levando-se em conta que a eleição de deputados é para representantes do povo, esse tipo de candidato passa a não representar ninguém, mas apenas a si próprio.

2. No momento em que centenas, por vezes milhares, de candidatos se apresentam para disputar o voto de todos os eleitores do Estado, fica praticamente impossível saber o que cada um deles pensa a respeito dos temas importantes para as nossas vidas. Esse, aliás, é um problema também presente no atual sistema proporcional, mas que se potencializa no distritão.

3. Como o número de votos necessários à eleição se torna muito alto – já que somente os mais votados em todo o Estado são eleitos – as despesas das campanhas sobem, significativamente.

Na prática, como o distrito eleitoral é toda a área do Estado, o custo das eleições para deputados estaduais e federais tende a alcançar valores semelhantes às de senadores e governadores, pois os candidatos para esses cargos teriam uma tarefa em comum: disputar os votos em todas as regiões do Estado – o distritão.

4. A reboque, quando se aumentam os custos das campanhas, inúmeros problemas são potencializados. A começar pelo fato de que a eleição se torna refém do poder econômico. Crescem, assim, as chances de corrupção, pois sem financiamentos expressivos as candidaturas, por regra, acabam não se viabilizando.

5. Nesse sistema, cresce o apetite dos partidos por financiamentos públicos. O uso de dinheiro do contribuinte para abastecer os cofres das agremiações tende a crescer, os chamados "fundões eleitorais"5 inclinam-se, igualmente, a aumentar, já que os custos das campanhas se tornam exorbitantes.

6. Como o poder econômico passa a ditar a viabilidade de grande parte das candidaturas, dificulta-se, consideravelmente, a renovação na arena política. O motivo é claro: novas lideranças não conseguem viabilizar suas campanhas por falta de recursos, que costumam ser destinados aos caciques dos partidos ou para reeleger aqueles que já estão inseridos no sistema.

7. O alto custo das campanhas fomenta a prática desse "caciquismo" partidário, marcado pelo exercício arbitrário de poder pelas lideranças das siglas, que usam a sua influência para canalizar em seu favor e de aliados próximos as verbas arrecadadas.

Quem domina a máquina partidária acaba se reelegendo, pleito após pleito. Cria-se um terreno fértil para a manutenção do que há de pior na política, que é a permanência no poder a qualquer custo.

8. A dificuldade de renovação nesse sistema emerge também por outro aspecto. Como a quantidade de votos para eleger alguém se torna expressiva, o distritão converge para eleição preferencial das chamadas celebridades ou subcelebridades.

Pessoas com ampla exposição midiática têm inquestionáveis vantagens no pleito, independentemente do seu conteúdo ou da qualidade das suas propostas. Como disputam votos em todos os cantos, quanto mais conhecidas forem, mais favorecidas serão.

É o que se costuma denominar de apelo ao personalismo, que empobrece o debate político. No distritão o foco volta-se para a aparência externa do candidato e não para as suas ideias.

É inegável, portanto, que o distritão ergue enormes barreiras para a renovação política, já que os próprios partidos tendem a apostar em nomes mais conhecidos da população em geral, por considerá-los mais competitivos, deixando, assim, de investir em novas lideranças, em novos talentos.

Em verdade, o distritão é um sistema feito, como uma luva, para favorecer aqueles que já detêm cargos eletivos, que se aproveitam de sua exposição na mídia e do acesso à divulgação da atuação parlamentar, custeada com recursos públicos.

9. Outro efeito contagiante é o favorecimento da eleição de perfis radicais, em todos os extremos da política. Os chamados haters[6] também se fortalecem neste sistema. O motivo é simples: se um candidato escolhe um grupo como alvo, todos os radicais, pulverizados nas mais diversas regiões do Estado, tendem a se identificar com o seu “influenciador”.

A soma de votos pulverizados em todo distritão por parte de eleitores radicais costuma se depositar em um único ou em um pequeno número de “ícones”, que vêm suas chances de eleição crescer. Funciona mais ou menos assim: se todo radical vota em um radical que os representa, esse pode vir a ser eleito com relativa facilidade.

Note-se que esse é o mesmo raciocínio que favorece a eleição de líderes religiosos, pessoas expostas na mídia, como ex-atletas famosos, apresentadores de TV, artistas em geral etc. Quando número de votos para se eleger é expressivo, a exposição faz a diferença.

10. A mesma lógica fortalece o corporativismo ligado aos representantes de carreiras públicas e privadas, sindicalistas etc. Se uma pessoa representa uma bandeira que é cara a vários destinatários em todo o Estado, a soma deles tende a predominar sobre os votos e interesses pulverizados da população em geral.

Bancadas corporativas são fortes, pois muito organizadas, atuam com base em pautas próprias – espírito de corpo – até mesmo legítimas, mas que muitas vezes não convergem com os interesses dos eleitores em geral. Vale a máxima: uma minoria barulhenta é mais poderosa, pois se organizou melhor.

11. O chamado distritão induz à falta de solidariedade intrapartidária. No momento em que vários candidatos de um mesmo partido disputam voto a voto, sem que a eleição de um, pelo critério da proporcionalidade, influencie na dos companheiros de legenda, o que se tem é que todos são adversários, dentro da mesma agremiação. Isso leva a rachas dentro dos partidos, enfraquecendo as agremiações.

12. Por fim, falando em proporcionalidade, coloca-se a questão relativa à falta de representatividade da população. Todos os votos em nomes que não se elegeram são desconsiderados, para todos os efeitos.

É a chamada crítica do desperdício de votos, normalmente apresentada por parte dos que defendem o sistema proporcional e, em particular, dentro da sua versão mais evoluída que é o sistema distrital misto, de feição alemã. Nesse sistema, metade dos candidatos é eleita pelo princípio majoritário, em distritos locais, pequenos, e a outra metade pelo critério da proporcionalidade dos votos recebidos pelas legendas.

Todos esses pontos, que poderiam ser acrescentados de outros, evidenciam que as desvantagens trazidas pelo distritão superam, e muito, as vantagens, essas consistentes em ser um sistema simplificado, de fácil compreensão pelo eleitor (quem tem mais votos se elege) e que não gera o efeito do puxador de votos.

De fato, o distritão nega todas as vantagens proporcionadas pelo sistema distrital puro, pois é a antítese desse, fazendo com que acreditemos que o sistema proporcional atual, que também é ruim, seja um bom negócio.

Há que diga que o distritão é o pior sistema do mundo,7 outros falam em Frankenstein político.8 O receito é que essa proposta, que volta e meia tenta nos ser empurrada, funcione como uma espécie de mecanismo diversionista.

Ou seja, uma artimanha escolhida a dedo, para desviar a atenção de manobras nada republicanas, como o retorno das coligações nas eleições proporcionais e o enfraquecimento da cláusula de desempenho partidário.

Ou, ainda, para não se discutir o que realmente faria a diferença para valorizar o processo eleitoral, que seria a introdução de um sistema distrital puro ou, eventualmente, misto. A ideia é: se livrarmos vocês do pior, nos deixem em paz: o famoso "bode na sala".

__________

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.

 

8 Disponível aqui.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Marcelo Schenk Duque é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha. Foi pesquisador convidado junto ao Europa Institut da Universidade de Saarland, Alemanha. Professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGS (mestrado e doutorado); Pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul - ESMAFE/RS, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional; Professor de diversos cursos de Pós-graduação lato sensu. Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Membro da Associação Luso-alemã de Juristas: DLJV. Presidente da Comissão Especial de Reforma Política da OAB/RS (CERP). Segunda formação superior: engenharia química. Instagram: @marschenkduque