Nem sempre fica claro para os brasileiros a distinção entre Estado e governo. A dúvida nos coloca em posição de desvantagem em relação às democracias estáveis, pois não se trata de mero formalismo. Pelo contrário, é um dos temas mais relevantes à engenharia constitucional de um país, a partir do qual até mesmo o sucesso institucional de uma nação pode ser medido.
Os últimos acontecimentos políticos abrem espaço para que o assunto seja cada vez mais objeto de reflexão por parte da comunidade jurídica, em particular pelos que lidam na área do Direito Constitucional. Cito, pelo menos, dois.
No dia 30/3/2021, os comandantes das três Forças Armadas1 anunciaram renúncia coletiva, um dia após a exoneração do ministro da Defesa.2 O episódio não obteve a repercussão que merecia, quando se leva em conta que foi a primeira vez, desde 1985, com o término da ditadura militar, que os três comandantes deixaram o cargo, ao mesmo tempo, sem que fosse por ocasião de troca de governo.
Mais recentemente, no dia 23/5/2021, outro episódio, desta vez com maior repercussão, ganhou as manchetes dos jornais: a participação do ex-ministro da Saúde,3 General da ativa do Exército, em ato político promovido pelo presidente da República na cidade do Rio de Janeiro. O ato rendeu ao General um processo disciplinar, pelo fato de que militares da ativa não podem participar de atos políticos, nos termos dos regulamentos militares vigentes.4
Referido processo foi arquivado, por ordem do atual Comandante do Exército.5 Ao se omitir de punir o General, o comando abriu um precedente perigoso. Na prática, tolerou que um militar da ativa participasse de um ato de inegável caráter político, medida que em nada contribui para preservar o necessário distanciamento do Exército da política. A mensagem que fica é que em respeito à vontade do presidente da República, o regulamento militar fica em segundo plano.
Os dois episódios têm algo em comum e, de certa forma, perturbador: a ameaça de politização das Forças Armadas ou, em outras palavras, a mistura de instituições de Estado com as de governo. A carta de demissão do ex-ministro da Defesa bem demonstra essa realidade, quando afirma que as Forças Armadas são instituições de Estado e que, nessa condição, devem ser preservadas.
A história é repleta de péssimos exemplos do que pode acontecer quando o braço militar do Estado acaba por se identificar com governos e suas ideologias. As experiências do Nazismo, Fascismo, Comunismo, Chavismo, entre outras, já deveriam servir de alerta, no sentido de que qualquer tentativa de partidarização das Forças Armadas revela-se totalmente incompatível com o ideal democrático.
E esse risco, infelizmente, nos atinge enquanto nação, por força de um arranjo institucional que em nada contribui para distinguir com clareza as funções de Estado e de governo, de modo que a necessária separação passa a depender da própria sorte.
A questão que se coloca é: por que razão a distinção entre Estado e governo não possui clareza suficiente no Brasil? A resposta pode ser buscada em nossas opções de configuração institucional.
De fato, o país vem optando, há muito, pelo sistema presidencialista de governo, cuja principal característica é a cumulação, em uma única autoridade, das funções de chefia de Estado e de governo. Já nesse aspecto se revela um equívoco fundamental: como uma única autoridade poderá, simultaneamente, exercer a contento funções tão distintas?
O perfil de chefia de Estado necessariamente exige postura suprapartidária e supraideológica, pois o Estado é algo que nos une, acima de diferenças de ordem política ou ideológica. Quando se atua contra o Estado, opera-se uma disrupção no desejável consenso em relação aos objetivos permanentes da República, com o efeito de desagregar a sociedade, impedindo, assim, o normal curso da democracia.
É por essa razão que atuar contra o Estado tende a caracterizar subversão. Já o perfil de chefia de governo é bem distinto. Confunde-se, inegavelmente, com o exercício da liderança de um partido que venceu as eleições, em um procedimento pautado pelas regras vigentes da democracia, portanto, com clara índole ideológica. É fácil perceber que os objetivos de governo, ao contrário dos de Estado, costumam dividir a sociedade, razão pela qual ir contra o governo significa oposição, que quando exercida nos limites da lealdade à Constituição, mostra-se saudável e necessária ao bom andamento da democracia.6
Nesse contexto, na função de chefia de Estado destaca-se um elemento de preservação da unidade estatal. Se é certo que uma única pessoa, em uma democracia, não é capaz de garantir essa unidade, uma mediação levada a cabo por uma autoridade que não se identifica fortemente com um partido ou ideologia, na condição de força neutra, pode, em situações de crise, converter-se em um elemento de agregação nacional,7 o que atualmente não possuímos.
Esta é a razão pela qual a função de chefia de Estado deveria ser separada, a partir da Constituição Federal, das demais forças politicamente atuantes, como a de chefia de governo. Na prática, estamos falando de uma configuração institucional que retira, no sentido de preservar, o Chefe de Estado do processo de condução geral e de configuração política de uma nação.8
A infelicidade é que no sistema de governo vigente, quando se escolhe um Chefe de Estado, ele está automaticamente vinculado a um partido, representante de uma ideologia, que naturalmente irá atrair oposição, já que simultaneamente chefia um governo, de aceitação parcial. Nesse cenário, dificulta-se o desempenho da neutralidade ínsita à representação de Estado, que deve traduzir unidade.
O papel da chefia de Estado adquire relevo a partir do momento em que contribui, com seu distanciamento ideológico e partidário, para a base de um consenso, sem a qual, dentro de uma multiplicidade de opiniões e interesses, a unidade não pode ser alcançada, nem a paz social preservada. Trata-se do posicionamento da própria Constituição no ambiente político.9 Neste sentido, afirma-se a importância de se construir arranjos institucionais marcados pela racionalidade, que projetam o sucesso do pacto constitucional.
Os episódios acima mencionados que revelaram a tensão entre o presidente da República e o alto comando das Forças Armadas nos leva a reconhecer que o desafio é traçar um claro limite entre os órgãos de Estado e de governo, em particular no contexto das Forças Armadas.
Como uma mesma autoridade pode se comportar, simultaneamente, de forma partidária e suprapartidária, ideológica e supraideológica, quando o seu perfil e trajetória se inclinam, fortemente, a um dos lados do espectro político? Esta é a razão pela qual, de modo preventivo, o sistema de governo parlamentarista procura dividir, claramente, estas funções.
A partir do instante em que esta diferença de papéis é assimilada, torna-se fácil perceber, em contrapartida, que o sistema de governo presidencialista aumenta, de modo considerável, o risco de politização das Forças Armadas. Na medida em que o seu comandante supremo atuar mais como chefe de Governo e menos como chefe de Estado, surge uma tendência de politização do braço armado do Estado ou de seu emprego para projetos pessoais ou partidários de poder. Nada pode ser tão ameaçador à democracia.
Os ordenamentos constitucionais democráticos, cientes da sensibilidade do tema, compreendem que a relação das Forças Armadas com a ordem política afirma-se como questão fundamental no Estado de direito. Ao cumular em uma só autoridade perfis tão distintos, o presidencialismo tende a rumar para a disfuncionalidade, em nítida desvantagem para o seu contraponto, que é o parlamentarismo, nas suas diferentes concepções.
Não se pode mais ignorar que a fusão entre Estado e governo prejudica e ameaça a democracia. O excesso de militares em funções de governo e de Administração, muito próximas da política, é mais um claro indicativo dessa disfuncionalidade. Urge que as altas patentes percebam essa situação, o quanto antes.
Cabe ressaltar que a disfuncionalidade da cumulação em uma mesma autoridade das funções de Chefia de Estado e de governo não se revela apenas no tema das Forças Armadas, muito embora seja um dos aspectos mais sensíveis, por aquilo que representam em termos de ação bélica.
A renúncia coletiva apresentada pelos comandantes das Forças Armadas pode ser um importante sinal, de que o alto comando não tolera o emprego dessas instituições de Estado, para fins políticos. Resta, agora, aperfeiçoar a Constituição, para que as Forças Armadas fiquem o mais blindadas possível das ingerências da política, um universo que não é, e jamais deve ser, seu.
Nunca é demais lembrar que as Forças Armadas possuem um relevante papel institucional, aspecto que não resta contestado. O que se coloca é que elas, por sua natureza, não combinam com alternância de poder, aspecto intrínseco da democracia. Basta perceber que governos são transitórios e as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes.
Restringir a participação de militares da ativa em funções de governo e da administração é um bom caminho. Digo restringir e não proibir, pois, eventualmente, a participação pontual de militares em funções-chave pode trazer vantagens ao país, desde que ocorra com parcimônia e não indiscriminadamente e sob critérios claros quanto à conveniência e oportunidade da decisão e o necessário distanciamento da política.
Todavia, mesmo tais critérios rigorosos, se isoladamente observados, revelam-se insuficientes. Vale dizer, o que realmente precisamos – e com urgência - é modificar o nosso sistema de governo, agindo de forma preventiva, para que situações como as que estamos vivendo permaneçam no passado e não voltem a se repetir, pois, caso vire praxe, não se saberá o rumo que tomaremos. Apostar no aprimoramento das instituições é a melhor saída para a crise. É trocar a ameaça de caos pela confiança e estabilidade.
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1 Do Exército, Gen. Edson Pujol, da Marinha, Alm. Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, Brig. Antônio Carlos Moretti Bermudez.
2 Gen. Fernando Azevedo e Silva.
3 Gen. Eduardo Pazuello.
4 Em sua defesa, o referido militar argumentou que o evento questionado não possuía natureza político-partidária pelo fato de que o país não se encontrava em período eleitoral e porque o Presidente da República não estava, por ocasião do ato, filiado a partido político.
5 Gen. Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
6 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 83ss.
7 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 535.
8 SCHEUNER, Ulrich. Bereich der Regierung. In: LISTL, Joseph; RÜFNER, Wolfgang (Hrsg.). Staatstheorie und Staatsrecht: Gesammelte Schriften von Ulrich Scheuner. Berlin: Duncker & Humblot, 1978, p. 481.
9 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 41s.