A natureza do presidente e deste governo é barreira severa
para que uma saída razoável seja possível
Muitos se questionam sobre de que forma sairemos da enrascada na qual o Brasil está. Diante de um governo débil, sem projeto, sem direção, condicionado pelos humores presidenciais e, até mesmo, sem partido, de fato não se pode esperar a potência institucional necessária ao enfrentamento da conjuntura da pandemia e pós-pandemia. Há, adicionalmente, os problemas estruturais que requerem a utilização de uma "engenharia" institucional, política, econômica e social de envergadura multiplicada.
Para refletir sobre esse tema é preciso partirmos de premissas concretas e objetivas. Destaco três.
O fato mais objetivo que temos é que estamos diante da completa falência do sistema político brasileiro.
A representatividade está castigada por agremiações políticas sem ideologia, programas e lideranças descomprometidas com a agenda do país. Os partidos são espécie de franquias, onde pontificam franqueadores na ponta de cima, franqueados regionais e apaniguados na ponta de baixo. Não há vida partidária orgânica, não há debate ou crítica e muito menos disciplina na ação parlamentar. Há recursos do fundo partidário e a lógica financeira dos caciques das siglas.
Por debaixo da crise de representatividade temos governos eleitos com legitimidade formal, mas sem legitimidade concreta. A classe política é imaginada pelos distintos eleitores e cidadãos como algo à parte, sem ligação com a vida socioeconômica. Além do mais, há a percepção, muitas vezes real, de que a corrupção, o nepotismo, o "fisiologismo" e outras mazelas não são ocorrências, mas metas daqueles que são eleitos ou exercem os poderes da República. Soma-se a isso, a demonização da política que decorre da exposição dos malfeitos na Jurisdição: justa ou injustamente, o fato é que a penalização dos políticos veio com a criminalização da política.
Do ponto de vista da governança, o Estado brasileiro vê-se tomado pelo corporativismo que limita as suas ações ao campo burocrático, entendido como o conjunto de procedimentos públicos, na visão weberiana. De outro lado, o Estado perdeu ao longo das últimas décadas a capacidade de planejar, viabilizar e realizar políticas públicas. Mesmo nas típicas atividades estatais - educação, saúde, justiça, segurança nacional e pública, e a diplomacia – vê-se que as deficiências seculares do passado se projetam perigosamente para o futuro. Com isso, o Estado perde efetividade e coercibilidade para agir e mudar as estruturas que escravizam o país no atraso e no subdesenvolvimento em pleno século XXI.
É nesse contexto que a figura do ex-capitão deve ser projetada. Trata-se de figura revestida de legitimidade formal, mas que forja políticas e ações ilegítimas no plano político e civilizatório e não apresenta saídas concretas para mudar estruturalmente o país.
Sendo o maior mandatário e apuradas as evidências de quem ele efetivamente é, pessoal e politicamente, a questão emergente é: é possível continuar com este presidente?
Os eventos antidemocráticos com a participação presidencial, o funcionamento de uma fábrica de fake news desde a campanha eleitoral, os atentados de sua excelência, por enquanto verbais, contra as instituições e o deboche pessoal e governamental em relação à pandemia do coronavírus são apenas fotografias parciais de um desastre de grandes proporções.
Obviamente, as mudanças estruturais não virão somente como fruto de um processo de impeachment ou cassação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral. São necessárias muitas e profundas mudanças a começar em relação àquelas que relacionei nas premissas acima.
Todavia, pergunto: é possível construir uma solução a partir do que resta desse governo?
Nos últimos dias não são poucas as análises nesse sentido. Verifica-se que há articulações de muitas vertentes, mas que se resumem a três, de forma geral: (i) reestruturar o ministério bolsonarista e dar-lhe uma feição operacional e política que possibilite ao governo funcionar; (ii) tornar o governo ainda mais militarista e implementar um projeto nacional-desenvolvimentista, compatível com a gênese castrense; (iii) incluir a classe política no governo e viabilizá-lo perante o Congresso e, assim, possibilitar o projeto liberal de Paulo Guedes.
Obviamente que há muitas variantes e variáveis na análise desse governo, inclusas as futilmente desejadas. Todavia, creio que é em torno desses possíveis cenários que gravitam as tentativas de solução para esse desgoverno.
Na primeira hipótese, seriam necessárias pessoas dispostas a ingressar em um governo desastrado e orgulhoso de seus fracassos. Notáveis têm currículos a zelar e requerem autonomia para articular e agir. Ademais, esperam frutos concretos do ponto de vista político. O presidente já demonstrou que não "gosta de quem lhe faz sombras". Não à toa tem um ministério medíocre.
Na segunda hipótese, haveria uma guinada estrutural onde teriam de conviver, de um lado, o poder real dos militares e, de outro, o poder aparente do ex-capitão. Pode ser um arranjo aceitável para o presidente, mas de elevado risco para os militares, notadamente os da ativa. Associar as Forças Armadas ao governo pode trazer riscos relevantes em caso de fracasso.
Na última hipótese, é certo que se encontra no Congresso Nacional boa colheita de parlamentares dispostos a assumir o governo. O processo, contudo, requereria capacidade elevada de articulação do presidente e seus asseclas palacianos. Sabe-se que por ali, no Planalto, o costume está mais para impor do que dispor. Além disso, uma vez no governo, o presidente teria de harmonizar e dirimir as divergências e apontar direções. Aqui a dificuldade é evidente: o ex-capitão é medíocre, detesta conversar e ama discursar. Seus quase trinta anos de Câmara dos Deputados ensinaram que ele gosta de ser um raivoso lobo solitário.
O que se escreve acima é apenas uma rápida reflexão sobre processos complexos e sujeito às muitas variáveis, como dissemos. Todavia, o que se pretende é demonstrar que a natureza do presidente e deste governo é barreira severa para que uma saída razoável seja possível. Isso tudo em meio à crise estrutural e conjuntural pela qual o país passa.
Mais uma vez, a nação se defronta com um cenário de difíceis escolhas. A porta de saída é estreita e as instituições estão sob estresse. Como escreveu Voltaire: "Tudo depõe aos meus olhos contra o "Tudo está bem". É hora da coragem.