Toda essa cena do teatro político atingirá o navio da política econômica.
Todos os processos intestinos da política nacional, nesse momento, já estavam delineados desde a eleição de 2018. Conforme escrevi no meu artigo anterior ("O vírus ataca instituições frágeis") "o líder supremo desse estranho movimento político parece ter necessidade imperiosa de um 'inimigo invisível' para, assim, poder se relacionar com a realidade objetiva". No caso concreto do que ocorreu na semana passada, o "inimigo invisível" assumiu a forma do ex-ministro Sergio Moro. Aí o processo parece ter ganhado contornos bem mais complexos, mesmo que mais precisos.
Não me parece necessário aprofundar os fatos em torno da demissão de Sergio Moro para poder desembocar na conclusão de que o presidente quebrou não somente as normas institucionais na ânsia de mudar o diretor-Geral da Polícia Federal. De fato, as mínimas "reservas institucionais", aquelas regras não-escritas que fazem parte dos pesos e contrapesos do Estado e do governo, foram quebradas. Refiro-me, para encurtar o argumento, a três destas reservas: (i) o respeito pela organização interna do Poder Executivo, no caso em relação à Polícia Federal, (ii) a moderação no tratamento do Poder Judiciário que investiga os palacianos de agora e (iii) a tentativa de interferir nas investigações policiais e judiciais que, eventualmente, possam atingir o presidente e sua família.
Do ponto de vista das infrações normativas propriamente dita, as possibilidades de que o presidente da República tenha cometido crimes saiu da unidade para a dezena. A polêmica sobre quais seriam esses ilícitos é tarefa menor frente à conclusão de que o impeachment entrou definitivamente na agenda do país. Mais uma vez poderemos assistir que no pedaço de tempo entre a vigência da Constituição 1988 e o momento de agora, um presidente poderá não terminar o seu mandato. Grave e evidente sinal do fracasso de nossa organização política.
No caso do atual "líder supremo" o cenário é devastador. Estamos diante de um político profissional (28 anos de Câmara dos Deputados), conhecido pelo radicalismo e pela grosseria de seus embates, que alçou a presidência da República, a partir de seu próprio obscurantismo, porque o centro político, do PT ao PSDB, jogou o país na desesperança com a política. A corrupção e a ausência de um projeto verdadeiramente centrista e reformista desanimaram a Nação a tal ponto que os votos desembocaram no deputado eleito pelo Rio de Janeiro. O caminho do capitão foi célere e inesperado, do obscurantismo para o "mito".
Agora, estamos a coletar o resultado da eleição de 2018 na sua forma mais trágica: enquanto muitos morrem sob o covid-19, o presidente faz um espetáculo dantesco em Brasília. No entanto, não é certo acreditar que o ex-capitão não tenha método. Isso ele tem. Método de coragem travestida de ignorância política e absoluta.
O presidente jamais quis ter uma base política, apregoando que "não se vendia". Para ele a dissociação entre a figura presidencial e o Congresso era uma necessidade. Nesse caso, as reformas econômicas e sociais, deveriam ser feitas à luz da Nêmesis que estas representavam. Nesse sentido, o presidente assistia ao processo político como se fosse qualquer um de nós, afinal ele não era parte disso. Era apenas o "mito" que propunha a redenção. De resto, os políticos, de cabo a rabo, mereciam a desconfiança: "vermelhos", "corruptos", "vendidos" e por aí vai. Quando o líder supremo, por esses dias, subiu no carro para estimular um grupo radical a esculhambar as instituições, não há em verdade surpresa: é a cena natural do presidente que não quer fazer política. Quer apenas mandar.
Sejamos claros: há uma parcela não desprezível da população brasileira que aceitaria a ditadura, se essa fosse implementada. A ampliação dessa parcela pode ser feita por meio do populismo que permite ao líder navegar acima das instituições. Esse método messiânico faz parte do método do atual presidente. Para ele, a crise não é eventual – esta é permanente para que fique evidente de é ele quem tem o poder e esse poder é redentor perante os seus pares da política.
Nesse sentido, para o presidente o episódio espetacular com Sergio Moro é um "acidente", "um tropeço", "uma turbulência". Obviamente, aqui o presidente errou de alvo. Sergio Moro, imageticamente marcado pela Lava Jato, também representa o antagonismo ao establishment. A sua obra anticorrupção não é somente relevante do ponto de vista do combate ao crime, mas também encarnou a denúncia de como funciona de fato o nosso sistema político.
A mente narcisista do líder supremo tropeçou no fato de que Sergio Moro não depende da imagem do presidente. Tem luz própria. Mais importante: de saída do Ministério da Justiça, Moro não levou apenas suas coisas do gabinete. Levou também parte do eleitorado do presidente. É o mesmo.
O efeito desse acontecimento é que o cenário político agora está completo. O presidente nunca foi funcional para os seus próprios objetivos ou os de seu governo. Agora isso está escancarado em meio à pandemia mais nefasta em um século que deve se agravar nas próximas semanas, segundo muitos e respeitados especialistas. Até a elite que apoiou o "messias" vê-se boquiaberta. Essa ausência de funcionalidade política deve se agravar em meio às ondas de investigações e debates sobre os malfeitos presidenciais revelados na sexta-feira, 24 de abril de 2020. Provavelmente, os erros presidenciais serão mais constantes e, quiçá mais graves - seus conselheiros mais próximos são seus próprios e despreparados herdeiros. De outro lado, surge na cena, sorrateiro e cauteloso, o vice-presidente. Com ele a entourage nacionalista e desenvolvimentista do militarismo brasileiro. De seu lado, Sergio Moro ganhou asas, mas pode não voar – não esqueçamos o exemplo do ex-ministro do STF Joaquim Barbosa.
Em breve, toda essa cena do teatro político atingirá o navio da política econômica. Não se sabe ainda se para o bem ou para o mal. Nem se sabe se com os mesmos atores. O cenário positivo de outrora, tornou-se ironicamente positivista, se bem me entendem.