O Estado já sem eficiência passou a ter as suas Instituições longe do interesse comum
Não há demonstração mais cabal sobre a ausência de funcionalidade das instituições brasileiras do que os fatos que rodeiam a gravíssima crise do covid-19. De fato, as repetidas intervenções das instituições do Estado, notadamente do Judiciário e Legislativo, evidenciam que as soluções funcionais de cada órgão da administração pública não atendem aos objetivos que devem ser atendidos em prol do interesse público.
Não são poucos os exemplos. Destaco dois: (i) os julgamentos do STF sobre se os entes federativos podem legislar sobre o "direito de ir e vir" e sobre o papel dos sindicatos em relação aos acordos trabalhistas pós-coronavírus e (ii) a ausência completa de discernimento comum entre o Legislativo e o Ministério da Economia sobre o socorro aos estados e municípios. Observados esses dois fatos vê-se que estes demonstram profundo desequilíbrio institucional, desde os temas federativos até a harmonia desejada entre os Poderes do Estado para superar a crise grave como essa que vivemos.
Há ainda a explicitação da tragédia que é o sistema político. O processo eleitoral, em geral, e a forma de eleição do presidente da República, especificamente, permitem que um populista, materialmente "sem partido", fruto de uma oportunidade histórica, sem apoio no Congresso Nacional e com retrospecto deplorável de carreira política chegue ao posto de maior mandatário do país. Há de salientar que a legitimação das urnas de alguém como o que descrevo cria, concretamente, um problema e não uma solução republicana. Não à toa já vivemos dois processos de impeachment desde à redemocratização pós-1964. Quem poderia achar que a política pode ir minimamente bem diante dessa realidade?
Está claro que mesmo sistemas políticos e eleitorais mais funcionais podem produzir animais políticos com características tenebrosas, do populismo ao reacionarismo. De esquerda e de direita, frise-se. Todavia, o caso brasileiro é diferente: a construção constitucional e normativa foi realizada para cumprir o destino certo: falhar e não funcionar. Não se trata de singelo apotegma.
Talvez essa crise possa expor para a sociedade brasileira, inclusive para a sua dita elite, sem maiores fabulações, que sem positiva e profunda reforma do pacto político não há solução. Já estamos patinando por mais de 35 anos e há ainda que defenda a manutenção dessa dantesca cena.
Em tudo isso não há improvisação. Ao longo dessas últimas três décadas os partidos políticos foram sofrendo uma mutação social e política, de forma sistemática, que os converteu em "franquias" de certos caciques políticos e/ou de grupos organizados. Assim, os assuntos internos à organização política se tornaram mais relevantes que o encaminhamento de temas de interesse público. Os efeitos dessa transformação de alma e corpo foram decisivos para a dissociação da agenda pública com as bases eleitorais. Ademais, criou-se número enorme de interesses privados que instigaram a corrupção. É essa a causa mais profunda do que vimos desde Collor até Temer, ou se quiserem, de Paulo César Farias a Wesley Batista. Do ponto de vista da sociedade, sobretudo do poder econômico, a leitura desse quadro não gerou indignação, ao contrário, engendrou a adaptação impressionante pela qual a obtenção dos benefícios privados trouxe ao alcance o uso da coisa pública. Obviamente, tais interesses excluíram do orçamento e das proposições afirmativas do Estado, a educação, a saúde, a tecnologia, ou, de forma geral, o desenvolvimento.
As Instituições, nesse contexto, buscaram mais poder, de forma singular e granular, para participar do concurso ou da corrida de quem "negocia" mais com as estruturas políticas e privadas. Além dos malefícios conhecidos aos interesses públicos, verificou-se a desagregação do Estado que cada vez mais viu-se em dificuldades para elaborar políticas públicas consistentes. Pois que, ao dirimir os interesses de tantos agentes privados agindo sobre o Estado, as políticas públicas se tornaram disfuncionais e com meios e objetivos mitigados. O Estado já sem eficiência passou a ter as suas Instituições Públicas cada vez mais longe daquilo que se denomina de interesse comum.
O quadro institucional, peculiar e com múltiplas colorações, é o terreno mais fértil que poderíamos encontrar para o populismo. Aqui, nesta Terra abaixo do Equador, trata-se do populismo travestido de ideias exóticas (e.g. terraplanismo) e salvacionistas (e.g. "o perigo vermelho"). O líder supremo desse estranho movimento político parece ter necessidade imperiosa de um "inimigo invisível" para, assim, poder se relacionar com a realidade objetiva. Há que se notar que aparenta bisonho que tantos militares, acostumados ao tratamento positivista das ideias e dos processos políticos possam ter aderido a isso tudo. Pretendem a tutela?
Há também que se ressaltar que esse ambiente político, marcado pela fragilidade e ausência de funcionalidade institucional, é essencial e substancialmente diverso de outros populistas como Donald Trump (EUA), Rodrigo Duterte (Filipinas), Narendra Modi (Índia), Recep Erdogan (Turquia), ou mesmo, Boris Johnson (Reino Unido). A operação política de cada um deles obedece a certo ordenamento institucional (mesmo que fraco) e as ideias e estratégias não se somam ao exotismo existente por aqui. Tanto é assim que as manchetes da mídia mundial catapultaram o líder supremo do Brasil para a condição de pior entre os piores na gestão dessa terrível crise pandêmica. Mandetta bem exemplifica o que escrevo.
Finalmente, a atual crise, ao fazer transbordar a insustentabilidade e inconsistência das políticas públicas também desmoraliza a ideia disseminada dentre as elites de que seria possível cultivar "hortas de racionalidade" em meio à floresta de imbecilidades da atual administração. Os tais liberais encastelados na economia e em poderosas posições "tecnoempresariocratas" do Poder Central acabaram por corroborar que, de um lado, têm de aderir ao modelo majoritário do governo e, de outro, serem ameaçados pelo escrutínio virtual de forças ocultas e milicianas que jogam certos grupos sociais na contramão do processo político e, por que não dizer, da construção civilizatória. Um tal de "gabinete do ódio" não é tão distante dos gabinetes frequentados pelos "donos do poder" (no uso da expressão weberiana do saudoso Raymundo Faoro).
Deixemos as nossas ilusões na porta dessa triste e perigosa crise. Não haverá sobrevivência de qualquer projeto nacional que eleve a condição de nosso país ao patamar superior na escala da civilização humana se não formos capazes de enfrentar a crise das Instituições brasileiras. A ideia Constituinte, batida pelos encastelados no status quo atual e pouco debatida pelos que podem mudar o Brasil, talvez seja o gatilho para começar um verdadeiro processo de construção da felicidade nacional. Como disse Ludwig Wittgenstein "nada é tão difícil quanto não nos enganarmos".