As instituições estão frágeis e perigosamente desarticuladas.
Só não vê quem não quer.
A paralisação dos caminhoneiros, a elevação da cotação das moedas estrangeiras em relação ao real, as reações dos políticos frente à crise e a maior turbulência dos mercados financeiros e de capitais ao redor do mundo evidenciam que a conjuntura brasileira persiste na sua fase de maior complexidade face à frágil situação da atual administração e ao calendário eleitoral. Em meio a isso está a Copa do Mundo, momento de catarse de estranho nacionalismo e patriotismo, aquela presumida virtude que o poeta e ensaísta inglês Samuel Johnson chamava de "último refúgio do canalha". Toda tragédia tem sua própria ironia.
A política foi a criação humana, mais exatamente dos gregos, para que fosse viável a convivência pacífica, mesmo que antagônica, dos contrários, dos diferentes, dos opostos. É forma de colaboração do todo para que não exista fragmentação social. Para tanto, a política tem de organizar certos "denominadores comuns" entre os agentes, plataformas comuns das ações políticas. Sem isso, a força centralizadora da política toma rumo diverso, separando ainda mais aquilo que já é, por natureza, diferente e dividido.
É desse pressuposto teórico que extraímos o maior risco do Brasil no momento: cada vez mais as forças políticas se desintegram, o cenário está com a agenda mais mitigada e pouco ambiciosa e a incerteza predomina. A crise institucional crônica que estamos a registrar nos últimos anos pode tomar um curso de crise aberta, aguda e imprevisível. Não subestimemos essa possibilidade.
A crise dos caminhoneiros é espécie do gênero de crise institucional. De um lado, temos a racionalidade de determinado processo econômico: preços internos de commodity (o petróleo), quando desalinhados com os preços externos, são arbitrados pelos agentes o que causa lucros e prejuízos anormais. Logo, manter preços consistentes e pari passu no mercado interno e externo é interesse primário, básico e relevante para qualquer empresa. Caso contrário, no âmbito público (o todo) há subsídio ou penalização para o consumidor. De forma simplificada, esse é o caso dos combustíveis.
De outro lado, temos a racionalidade do consumidor: o distinto caminhoneiro vê seu lucro despencar vez que está pressionado pela empresa que o contrata e lhe restringe, face a baixa demanda, a possibilidade de repasse do preço do frete em função da elevação da cotação do petróleo no mercado internacional, bem como da taxa de câmbio. Como tem de pagar as contas em casa e a prestação do financiamento de seu caminhão, resolve paralisar as suas atividades para pressionar pela redução do preço dos combustíveis. Como agente político que é, o caminhoneiro se une a seus pares e vê que consegue parar o país. Foi o que aconteceu.
Diante destes polos distintos, a política deveria servir a ambos, criando o "denominador comum", qual seja, manter a racionalidade econômica ("não haver subsídio") e refluir os danos irreparáveis do caminhoneiro. O que tem à disposição o agente político para criar o tal do "denominador comum"? Ora, 52% do preço final do diesel é composto de tributos (71% no caso da gasolina). Se reduzir os tributos, o agente político repara a crise e vai tratar de cortar o orçamento público, tratando politicamente outras questões e demandas que decorrem de sua decisão, no caso a mais urgente, que era a de evitar um colapso no abastecimento.
De forma simplificada e didática foi essa a natureza do problema que registramos nas semanas anteriores, não é mesmo?
Ocorre, que a tal da política está em frangalhos no Brasil, tomada por traças de corrupção, nepotismo, irresponsabilidade fiscal, federalismo inviável, partidos sem raízes sociais, patrimonialismo, oligarquia, esquerdismo anacrônico, etc. Esse cenário trouxe crescente e justificado preconceito contra a política enquanto fonte necessária de soluções dos problemas sociais e econômicos do Brasil. Portanto, a criação de denominadores comuns entre os agentes políticos fica defeituosa ou inexistente. Ademais, a organização do Estado brasileiro, as denominadas instituições da República, é tão desprovida de capacidade de elaboração e execução de políticas verdadeiramente públicas que as soluções são penosas e, no geral, erradas, dolosa e culposamente.
O que seria a solução óbvia de uma crise ("ajuste dos tributos dos combustíveis") como a dos caminhoneiros virou um verdadeiro caos nacional, perto de um colapso perigoso do funcionamento das cidades e do campo. Essa crise mostrou à sociedade o quão frágil é a nossa República: a racionalidade econômica facilmente é solapada por soluções/discursos populistas ("o problema são os aumentos diários dos combustíveis"), a estrutura social é frágil e desigual ("caminhoneiros com caminhões financiados com juros altos e encalacrados pelas empresas"), o federalismo é um caos tributários ("tributos indiretos em todos os níveis da federação"), os políticos simplesmente não intermediaram a crise e o governo, perdido e sem soluções, ficou capengando para amarrar a solução em qualquer coisa que não permitisse que a administração Federal fosse à lona. Em meio a isso, suspeitas de que ordens militares não foram cumpridas, empresários de certos setores agiram para propagar o pânico e a mídia caçando notícias sem evidenciar o processo por detrás dos fatos.
A crise dos caminhoneiros foi uma espécie de proxy, de amálgama, de exemplo evidente, de que as instituições estão frágeis e perigosamente desarticuladas. Só não vê quem não quer.
Os agentes econômicos, mais organizados e atentos, logo fizeram ou reforçaram suas posições de arbitradores. Observaram o cenário de confusão institucional, somaram à fragilidade da atual administração, deduziram das pré-campanhas eleitorais, discerniram sobre as probabilidades dos candidatos à presidência da República, analisaram às perspectivas de suporte político do próximo presidente e concluíram: vale a pena comprar moeda estrangeira, vender ações e começar a apostar em elevação do juros e aumento de volatilidade dos ativos. O mundo é plano e o mercado é rápido. O Banco Central até que agiu rápido e colocou à disposição dos mais tensos um belo estoque de mais de US$ 20 bilhões de reservas internacionais. Não bastará.
Estamos com sintomas de crise, mas, sem tergiversação e "engenharia sociológica", o certo é que estamos engalfinhados no passado, vivendo um efêmero presente e diante da névoa do futuro. A palidez tomou conta do país e essa crise dos caminhoneiros nos ensinou um pouco sobre os efeitos da crise institucional.
A Copa do Mundo de futebol pode ser erguida pelo escrete nacional após a partida final em meados de julho. Já nas eleições de outubro é quase certo que o Brasil vai perder. Triste mesmo. Merecemos mais, mas não fazemos por merecer.