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Decifremos Trump e o levemos a sério

"Decifremos Trump e o levemos a sério." Para o autor, o nacionalismo do novo presidente é risco para a economia.

24/1/2017

"Quanto mais eu refletia sobre o assunto mais crescia em mim a convicção de que justamente de um tal movimento pequeno é que algum dia poderia ser preparado o reerguimento da nação, e nunca dos partidos políticos parlamentares, presos a velhos preconceitos ou mesmo dependentes dos proveitos do novo regime."

"A destruição da economia nacional, em benefício do capital internacional, é um fim que foi atingido graças à tolice e à boa fé de um lado e a uma covardia inominável do outro."

"Nós não aceitaremos mais os políticos que são todos conversa e nenhuma ação - constantemente reclamando, mas nunca fazendo nada sobre isso. A conversa acabou."

"Todas as decisões sobre comércio, impostos, imigração e assuntos externos serão feitas para beneficiar os trabalhadores americanos e as famílias americanas. Devemos proteger nossas fronteiras dos estragos de outros países que fabricam nossos produtos, roubam nossas empresas e destroem nossos empregos. Proteção levará a grande prosperidade e força."

"Por muitas décadas, enriquecemos a indústria estrangeira à custa da indústria americana; Subsidiaram os exércitos de outros países, ao mesmo tempo em que permitiam o triste esgotamento de nossas forças armadas; Defendemos as fronteiras de outras nações, ao mesmo tempo em que nos recusamos a defender as nossas; E gastou trilhões de dólares no exterior, enquanto a infraestrutura da América caiu em condições precárias e decadência."

As citações acima têm raízes comuns e conhecidas. Destacamos, dentre outras: (i) o nacionalismo, (ii) o desprezo pela classe política, (iii) a visão redentora da própria visão sobre a política e a economia, (iv) o estímulo meramente ideológico ao aguçamento das diferenças sociais e (v) a perspectiva de que haja “segurança” em um “novo regime”.

Pois bem: as duas primeiras frases foram extraídas do livro Mein Kampft (Minha Luta), de Adolf Hitler. As três últimas foram coletadas do discurso de Donald Trump na sua posse na última sexta-feira, dia 20/1/17.

Creio que já está na hora de deixarmos, das conversas informais às ações políticas, de subestimar o novo senhor da América. Até agora, ele é tratado como “surpresa”. Poucos se debruçaram sobre a tarefa de o decifrar e mostrar as suas entranhas perigosamente autoritárias. Noto inclusive certo acanhamento na mídia norte-americana que apostou fichas e fichas na candidata democrata Hilary Clinton e depois não teve como se justificar perante o público.

No seu discurso inaugural, Trump citou apenas uma vez a palavra “liberdade”. Barack Obama citou-a cinco vezes. Ronald Reagan, o mais notório republicano do século passado, citou-a 13 vezes (“liberty” e “freedom”).

O que mais me impressionou em Donald Trump, desde o seu surgimento político em meados do ano passado, foi a sua capacidade de criar uma realidade virtual que simplesmente não existe, mas que meticulosamente lhe serve, sem que as contestações lhe desmoralizem. Nem mesmo a fiscalização promovida pela (antes) poderosa mídia norte-americana e, ainda, o bom senso do "cidadão comum" conseguiu pôr à prova a incongruência entre a criação virtual do novo presidente e o fato concreto.

Por meio dessa estratégia que combina o “virtual” com o “desejado pelo público”, houve sistemático despertar do silencioso sentimento de frustração dos americanos com o desenvolvimento do capitalismo na América nesses tempos de globalização. A exclusão social, o aumento gritante das diferenças entre as classes, a decepção constante dos cidadãos com o sistema de representação política, a forma “plutocrática” que as campanhas políticas assumiram, a falta de funcionalidade do sistema financeiro, o desemprego seletivo nas regiões operárias mais longínquas, dentre muitos outros aspectos, são causas para a ascensão deste “bufão da América”.
Ademais, viu-se os tributos sendo utilizados para salvar não apenas os bancos, mas também os banqueiros que fizeram falcatruas e pilantragens. A superação da crise de 2008 fez-se com a utilização em certo momento (2012) de cerca de USD 1,2 trilhão de dinheiro público. Enquanto isso, boa parte das classes média e pobre perderam as suas casas em função do desemprego que culminou com a perda da propriedade para os garantidores das dívidas do sistema de financiamento de imóveis. Agora, Trump quer retirar a universalidade do sistema de saúde.

Donald Trump, portanto, é fruto da doença atual da democracia norte-americana (e mundial), qual seja, o capitalismo que sempre serviu à ascensão social e ao desenvolvimento econômico vê-se encalacrado no “financismo” que instabiliza o sistema e, por consequência direta, “na cristalização da mobilidade social” dada a concentração de riqueza. Trata-se, com efeito, da perfeita conspiração contra o “sonho americano”. Em tempos em que cerca de 60% dos americanos se informam via “redes sociais” (Pew Research Center) nas quais a notícia se confunde com o boato, senão a criação mais absurda do emitente da informação, Trump cativou o eleitorado e, arrisco dizer, a Nação.

Notável é verificar que mesmo em “momentos oficiais”, Trump constrói o imaginário popular com surpreendente liberdade. Na visita que fez esse fim de semana à CIA (Agência Central de Inteligência), ele inferiorizou os consistentes argumentos que a mídia trouxe sobre a sua visão relativa aos temas de segurança nacional por meio da alegação de que “enfrentava uma guerra com a mídia”. Ninguém prestou mais atenção à ação da mídia investigativa, mas tão somente à reação do novo presidente da América. Um perigo!

Outro fato criado por Trump que merece atenção é o argumento de que o Congresso pode atrapalhar. No exato momento o Grand Old Party (como corriqueiramente é chamado o Partido Republicano) domina ambas as casas, por que Donald Trump se encarrega de citar o Capitol Hill, sede do Congresso dos EUA, como empecilho para o retorno da “Grande América”? Talvez seja porque o novo presidente dos EUA deseje mais poder que o que já lhe está disponível pela Constituição de 1787. Ademais, o respeito do novo primeiro mandatário da América ao seu próprio partido não deve ser elevado, afinal desde os anos 90, o apresentador de O Aprendiz já mudou cinco vezes de partido. (Já imaginou se fosse brasileiro?). Provavelmente, Donald Trump não aprecie a Política como forma civilizada de administração e conciliação de interesses. O fantasma de Putin talvez não seja tão abstrato assim...

Há aqueles que preferem se ancorar na crença de que a democracia norte-americana é sólida, que as instituições funcionam e que nada que atente aos valores da América pode prosperar. Hum...Para estes é preciso registrar que não apareceu ainda nos EUA nenhum presidente com o perfil do bilionário: sem experiência política, sem ter exercido qualquer função pública, sem entender bulhufas de assuntos militares, de não dominar os dados e os aspectos das políticas públicas e de fazer discursos populistas dos quais pode vir a sua própria ruína vez que ele é parte integrante da “elite” a qual tanto despreza em seus discursos. Portanto, esse “conto da carochinha” de que as instituições são sólidas, etc. e tal, não encontra respaldo nos fatos: Trump furou todas as barreiras institucionais que agora lhe apareceram. Também não devemos esquecer que a sociedade norte-americana não parece ter se importado concretamente com os ataques do ex-apresentador de TV às mulheres, aos homossexuais, à mídia, aos mexicanos, aos imigrantes, aos europeus, etc.

Não está claro quais são as forças políticas que neutralizarão o Republicano. Estas devem surgir em algum momento, mas a minha percepção – não é previsão! – é que haverá muita turbulência à frente até que a sociedade norte-americana e o mundo tenham todos os contornos deste intuitivo personagem político que surgiu na Democracia da América.

Os ideólogos, dentre eles o ex-presidente da Câmara dos Representantes Newt Gingrich e o novo “estrategista” da Casa Branca Steve Bannon, têm comparado Donald Trump a Andrew Jackson, o presidente dos EUA que apelou diretamente ao povo para combater as elites que ocupavam as instituições do país e impediam o desenvolvimento econômico. Ocorre que Jackson conquistou o apoio popular de forma inclusiva e depois transformou as instituições em um movimento pró-democracia. Trump sequer conquistou a maioria dos votos, apesar de ter vencido no sistema eleitoral indireto dos EUA. Sua plataforma desrespeita as instituições dos EUA e o seu nacionalismo é risco relevante para a economia, não só a norte-americana, mas a mundial.

O legado de Donald Trump pode ser muito doloroso para o mundo. É hora de combatê-lo e não de subestimá-lo. Perigosamente, diga-se.

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Colunista

Francisco Petros Advogado, especializado em direito societário, compliance e governança corporativa. Também é economista e MBA. No mercado de capitais brasileiro dirigiu instituições financeiras e de administração de recursos. Foi vice-presidente e presidente da seção paulista da ABAMEC – Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais e Presidente do Comitê de Supervisão dos Analistas de Investimento. É membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo e do Corpo de Árbitros da B3, a Bolsa Brasileira, Membro Consultor para a Comissão Especial de Mercado de Capitais da OAB – Nacional. Atua como conselheiro de administração de empresas de capital aberto e fechado.