Observado o início da administração de Michel Temer, podemos afirmar sem medo de errar que esse foi sem surpresas. Não me refiro propriamente aos fatos - uns aqui outros ali com certo grau de imprevisão -, mas ao andamento como um todo do governo, ao processo no qual está inserido em dois sentidos: o econômico e o político, nessa ordem. Vejamos.
Já enunciei nesse espaço, antes do afastamento da presidente Dilma Rousseff, a ideia de que o caráter do governo Temer seria tecnoempresariocrático. Ou seja, armado e alimentado por times de técnicos, especialmente na área econômica, com reconhecimento junto às hostes detentoras do capital com o objetivo de atrair os empresários daqui e de lá de fora para estimular o investimento ausente do Estado alquebrado pelo analfabetismo econômico da presidente anterior. Aqui pode-se reconhecer facilmente o caráter do governo. Henrique Meirelles e sua equipe de assessores mostrou a que veio: propôs um ajuste fiscal duro, em meio à recessão imperante. Será um processo mais longo que o inicialmente esperado. A razão é singela, muito embora não seja tão explorada pelos analistas de plantão e pela mídia que mais reproduz que avalia: o principal desarranjo fiscal vem da queda das receitas em função da baixa atividade econômica que desnuda elevada capacidade ociosa. O que estou a dizer não é propriamente que as contas ex ante o governo Temer estavam ajustadas. Apenas digo que temos de relativizar o efeito dos cortes orçamentários em curso. Esses per se não serão suficientes para sanear o déficit primário e levá-lo para o azul. Somente a retomada do crescimento do consumo e de algum investimento será capaz de trazer os números para um curso positivo.
Já o déficit público total dependerá da taxa de juros real praticada pelo Banco Central do Brasil. Aqui a face tecnocrática também está evidente. Ilan Goldfajn, antes economista-chefe do Itaú, era, há pouco tempo, um dovish (termo do jargão de Wall Street, de dove, pombo). Acreditava que a recessão evitaria o espalhamento da inflação pela economia e, até mesmo, poderia assegurar que, mesmo com juro básico mais baixo, a meta de inflação poderia ser obedecida já em 2017. Agora, sentado naquela cadeira fria do BC, Goldfajn exerce seu papel hawkish (do inglês, águia). Informou o chefe da autoridade monetária por todos os cantos e canais, na semana passada, que perseguirá o cumprimento da meta de inflação por meio da taxa de juros “necessária”. Há, contudo, que se relativizar o que foi dito: aos mostrar os dentes, o presidente do BC quis reverter expectativas de que é possível acomodar-se em patamares de taxa de inflação anual acima de 4,5%. É possível e provável que os juros caiam um pouquinho até o final do ano, mas é muito mais provável que a inflação caia muito mais o que forçará o juro básico real para cima se nada for feito. Nesse contexto, repetiremos em 2016 um déficit total da ordem de 7%-8%. Eis o maior perigo para o país: a trajetória insustentável da dívida pública.
Como se vê, temos uma política econômica bem tradicional, sem merecer maiores reparos vez que não há razão para maiores invencionices ou "competências especiais" dos ocupantes das cadeiras estatais que cuidam da política econômica. Se fôssemos resumir o objetivo da política econômica em um slogan, "recuperar a confiança" seria bastante adequado.
Na toada atual, mesmo com as turbulências vindas da Polícia Federal, de Curitiba e do STF, a economia crescerá consistentemente ao longo dos próximos 18-24 meses. Essa nota positiva sobre a economia não retira outra, mais negativa, que é o fato de que essa recuperação será lenta, gradual e insuficiente para dar ao Brasil uma tração de crescimento do PIB digna de país emergente. Apenas retornaremos ao sereno e incabível leito do crescimento potencial entre 0%-2% ao ano com a inflação comportada, dentro da meta.
Para que se possa alinhavar a política econômica estabilizadora atual com outra, de maior envergadura estratégica para o médio e longo prazo, será preciso que o âmbito tecnocrático do governo Temer possa ser ultrapassado e seja conhecida a extensão da autoridade do governo e do Estado. Somente com mais substância em termos de Poder é que Michel Temer e sua equipe econômica poderão sonhar com passos mais largos para a economia brasileira. Neste último tema as coisas são muito incertas. Avaliemos.
O primeiro passo para que o governo demonstre a extensão de seu poder, será defenestrar definitivamente a presidente afastada Dilma Rousseff. Creio que, apesar da tarefa estar materialmente completa, o excesso de prudência do Palácio do Jaburu esperará pelo desfecho da presidente no cadafalso do Senado Federal. Há que se notar que, mesmo que a presidente petista retornasse, não há mais condições políticas para que ela governe. Nesse sentido estrito, a análise política carece apenas dos fatos, não importa a natureza axiológica dos valores e virtudes implicados ou extirpados nesse estranho processo de impeachment.
Ao ficar cristalino para todos - inclusa a conturbada base política "formal" do presidente interino no Congresso Nacional - que a fonte de Poder se encontra instalada no Jaburu e não no Alvorada, a tarefa se tornará extremamente complexa para Temer. Isso porque há uma mutação da Ordem Política atual, mas não se sabe em que sentido. Ou seja, a sociedade brasileira não crê que possa fluir do Estado e deste governo, políticas que tenham caráter verdadeiramente democrático e que visem ao denominado bem comum. Não à toa, os índices de popularidade de Temer são quase que geometricamente idênticos ao da presidente que se vai. Ambos são tidos como parte da mesma ordem, baseada em partidos políticos envelhecidos e eivados de intenções próprias, tais como o nepotismo, a corrupção, o uso da máquina pública para interesses inconfessáveis e assim por diante.
A dissociação entre a sociedade e o Poder careceria de transformação cósmica do atual governo para que Temer possa se estabelecer como governante forte o suficiente para engendrar avanços estruturais na economia. Nesse particular, o caráter axiológico do governo faz diferença: sem que seja reconhecido como um governo republicano calcado em nova ordem social, não há transformação possível.
Há, ainda, outro aspecto de igual e relevante peso. Trata-se do fato de que o atendimento à nova gênese social em formação confrontará Michel Temer com a realidade formal de sua base política. Se Michel Temer se associar ao "novo espírito" vigente nas ruas, naturalmente se afastará de sua base congressual. Em palavras mais cruas: para conversar com o povo Michel Temer não pode conversar com Renan, Cunha, Lula, Aécio, et caterva. A velha política pode não estar morta e a nova ordem pode não estar pronta, mas é certo que não há conversa entre estas, por enquanto.
Assim sendo, a melhora da economia, no sentido estrutural, estará barrada pelo espírito dual dos tempos atuais: a sociedade quer mudar e se modernizar, mas não construiu instituições políticas e jurídicas à altura das necessidades transformadoras.
Observados os aspectos e as variáveis acima abordadas, ao final do governo Temer possivelmente não diremos que a sua administração, do ponto de vista estrutural, foi "de transição" como no caso do imortal José Sarney (do regime militar para as eleições diretas) e de Itamar Franco (da hiperinflação para a estabilidade monetária). Michel Temer corre o risco de ser reconhecido na história como alguém que retirou um governo maluco do Palácio do Planalto e, ao substituí-lo, não conseguiu fazer muito mais que evitar que a economia se transformasse em sanatório geral.
O limite da tecnoempresariocracia é o grau elevado de oposição entre o Estado e a sociedade civil, ou seja, a crise institucional que não é reconhecida como deveria ser.