Luís Napoleão Bonaparte foi primeiro presidente da Segunda República Francesa em 1848 e, posteriormente, via golpe de Estado (dezembro de 1851), tornou-se o imperador Napoleão III (em 1852). Foi uma figura histórica recheada de contradições pessoais e políticas que despertou vigor analítico em vários intelectuais, incluso o "velho barbudo" Karl Marx, a refletir sobre o seu papel num momento de emergentes transformações na França e na Europa. Defensor de ideias contraditórias (e.g. liberdade política versus imperialismo), Luís Napoleão tentou captar o zeitgeist ("o espírito do tempo", intelectualmente engendrado por Goethe) da França e navegou desde o nacionalismo até um mal concebido "socialismo", além de ter se tornado imperador depois de aceitar a República. Criou uma tal de "Sociedade 10 de Dezembro" (dia de sua eleição presidencial em 1848), formada por uma gama de amigos, cuja maior e melhor atividade era a utilização do Erário como fonte de seu próprio enriquecimento. Foi com base nessa "estrutura política" que Luís Napoleão juntou-se aos militares para forjar com sucesso o coup d'État que permitiu a estranha conversão do presidente Bonaparte para o imperador Napoleão III.
Dilma Rousseff é a sexta presidente (nono mandato presidencial, sendo o oitavo pelo voto direto do povo) da "Nova República", fundação manca da fase pós-regime militar (1964-1985). Trata-se de uma presidente eivada de contradições: (i) não há evidências de enriquecimento ilícito a partir do exercício do poder, mas convive desde o seu primeiro mandato com denúncias cada vez mais graves de corrupção que a enfraqueceram, mesmo perante figuras políticas altamente suspeitas; (ii) introduziu uma nova política econômica, denominada de "nova matriz macroeconômica", durante o primeiro mandato, que conteve juros, câmbio e tarifas, concomitante com uma considerável e insustentável expansão fiscal; (iii) quis alicerçar seu primeiro mandato em uma base política mais "límpida" e acabou fechando acordos com os minúsculos e maiúsculos demônios da política brasileira para se reeleger; (iv) quis promover uma política externa mais independente, aproveitando-se da imagem "emergente" do país, mas sequer consegue liderar os seus parceiros latino-americanos da velha esquerda e, para finalizar estas ilustrativas contradições, (v) combateu as políticas de seus adversários e acabou cedendo a quase todas elas.
Em meio ao sôfrego início da segunda administração da presidente Dilma, agora ressurge o onipresente regente Lula da Silva. Tal como Luís Napoleão trouxe a bordo de sua comitiva a sua Sociedade 10 de Dezembro, no caso, os políticos do PMDB, aqueles que estavam sendo seduzidos pela oposição para participar do impeachment da sua súdita Dilma Rousseff. Neste contexto, completou-se o golpe pelo qual a presidente eleita e fragilizada por uma crise política sem precedentes sucumbe a "política como ela é". Formou-se assim um estranho Estado Napoleônico Brasileiro que mudou de fato a natureza e a fonte de poder político, cujo resultado final deve ser o de um governo sustentado formalmente pelos políticos profissionais e um país cujas possibilidades de desenvolvimento social e econômico estão cada vez mais minimizadas.
No caso de Luís Napoleão, a sua conversão de presidente em imperador deu-se com o objetivo de não limitar os seus poderes por força da tutela militar e a realização da administração por seu grupo de apaniguados que assaltava o Estado. Dilma Rousseff deverá assistir ao assédio criminoso do Estado pelas forças políticas carreadas pelo regente Lula da Silva sem que isso implique em nenhum aumento de seu poder político e pessoal. Se Marx refletia sobre a luta de classes na sua obra sobre os fatos que cercaram Napoleão III, o famoso 18 de Brumário de Luís Bonaparte, hoje podemos refletir sobre os 7 do PMDB no Brumário de Dilma. Trata-se da luta sem classe da política brasileira.
Se mudarem os fatos devemos mudar de opinião. A verdade é que, diante da perspectiva real do impeachment, Dilma mudou não apenas de opinião: transformou o seu governo num protetorado lulista que pode fazer com que o país fique à mercê da recessão, da fragilidade fiscal e da vulnerabilidade estrutural até o final da administração da presidente eleita. A lembrança do imortal José Sarney não é mera consequência. Este pode ser o seu e o nosso destino. Fiquemos atentos.
Para a oposição que apostou tudo no jogo de cúpula para tirar a presidente do poder a derrota é dupla: (i) talvez tenha de se conformar até a próxima eleição com o seu papel de mera e barulhenta oposição, pois sem o PMDB não consegue engendrar seus planos, bem como (ii) ficou demonstrado que há pouca intimidade desses partidos, especialmente o PSDB, com o povo e as forças sociais organizadas. Mesmo diante de volumosa irritação e decepção com o governo, a oposição não consegue mobilizar a sociedade. Talvez não tenha projetos para vender, apenas uns garranchos na prancheta da política.
Creio que os planos e ações dos cidadãos, empresas, instituições, associações, bancos, etc. tem de reconhecer que a continuidade deste triste cenário político é um desastre em doses cada vez maiores para o país. Tudo conspira contra o desenvolvimento. Tudo demonstra que a política que construímos no país é incompatível com os verdadeiros interesses relacionados com o bem comum. Brasília é a capital da falta de funcionalidade política para lidar com os destinos desta terra abençoada por Deus e bonita por natureza. E que beleza!
Marx pregou que "a história acontece como tragédia e se repete como farsa". No Brasil podemos afirmar que a farsa é a tragédia de nossa história.