Decifra$

Dever de informar e diligência na lei das S.A. e o IFRS

Análise de alguns aspectos relacionados ao dever de diligência na lei das S.A. e o IFRS.

30/9/2014

A introdução no âmbito da normatização nacional do IFRS (International Financial Reporting Standards) como padrão contábil brasileiro teve consequências substantivas no âmbito do Direito Societário brasileiro que hão de repercutir ao longo dos próximos anos. Seus efeitos ainda não foram completamente entendidos e entendidos pelos administradores das companhias, especialmente aquelas cujos valores mobiliários são negociados no mercado. As demonstrações financeiras serão espelhos mais fiéis da qualidade da administração e as informações prestadas estarão ainda mais vinculadas ao princípio geral de responsabilidade, previsto no Direito brasileiro, bem como às previsões específicas da Lei das Sociedades Anônimas. O objetivo deste artigo é analisar com brevidade alguns destes aspectos, notadamente no que se refere ao dever de diligência e ao dever de informar dos administradores das companhias.

A adesão do Brasil a este novo padrão contábil se deu pela alteração da Lei da Sociedade Anônima (6.404/76) pelas leis 11.638/07 e 11.941/09 que incorporou o novo padrão internacional. Todavia, são os "Pronunciamentos Contábeis", emanados do Comitê de Pronunciamento Contábeis, liderado pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC) e composto por diversas entidades ligadas ao mercado de capitais, aos profissionais de auditoria, às sociedades anônimas, aos analistas de investimento, aos profissionais de relações com os investidores, etc., que emitem normas que balizam a confecção das demonstrações financeiras das empresas. Trata-se do "estado da arte" da prestação de informações na medida em que privilegia-se "a essência econômica das transações sobre a sua forma legal" com o objetivo de se evitar que os ativos, passivos e as contas de resultados das empresas sejam "mascarados" por uma aparência que não reflita o seu significado econômico efetivo.

Embora o tema da "essência sobre a forma" mereça muitos reparos de ordem técnica, seja teórica, seja prática, o certo é que o IFRS impõe uma imensa responsabilidade em termos de disclosure aos administradores das companhias, sobretudo às de capital aberto. Intrinsecamente, adiciona-se novas formas e novos ingredientes aos artigos da Seção IV da lei 6.404/76, a Lei das Sociedades Anônimas. Trata-se da seção que trata dos deveres e responsabilidades dos administradores, notadamente, o dever de diligência, o dever de lealdade e o dever de informar.

O dever de diligência dos administradores é extremamente difícil de ser conceituado e só pode ser observado diante de casos concretos, factuais. Trata, de fato, da forma pela qual um administrador conduz o negócio de uma empresa. A probidade e a prudência são observáveis e aferidas a partir da análise dos atos que o administrador incorre diante de um determinado fato da vida corporativa. O resultado econômico da empresa é um deles, mas não é o único e, neste caso, não é o mais importante, pois está a se verificar o comportamento do administrador para alcançar tal resultado. Assim, um resultado excepcional obtido por meio de operações altamente arriscadas pode ser considerado com uma infringência ao dever de prudência. No caso, não importa o lucro volumoso.

O dever de diligência também relaciona-se com o dever que o administrador tem de estar informado. Logo, a confiabilidade das informações, bem como os seus efeitos sobre a situação patrimonial da empresa têm correspondência com o sistema contábil adotado. Sendo o IFRS um sistema contábil que privilegia a essência sobre a forma, a avaliação dos riscos e de seus correspondentes efeitos serão objetos não somente de uma análise gerencial, mas engendrarão um dever de informar. Logo, a diligência requer, ao mesmo tempo, a necessidade de o administrador ser informado por e para outros administradores, bem como saber o que informar para terceiros (por exemplo, os acionistas). Além disso, a confiabilidade das informações deve ser verificada, mesmo que não totalmente, por cada administrador, no limite das suas atribuições. Cabe lembrar que o IFRS não é apenas um padrão contábil, trata-se também de uma forma de "gestão contábil", ou seja, a forma pela qual os administradores refletem nas demonstrações financeiras as suas visões sobre as operações sociais. Isso vale tanto para o corpo interno da companhia (os outros administradores) como para os outros stakeholders (acionistas, credores, funcionários, etc.).

A empresa é um corpo composto por vários órgãos e, destes, fluem, múltiplas e diversificadas informações que no seu conjunto formam um sistema de informações. Tal sistema pode ser gerencial (voltado para as decisões internas da empresa) ou contábeis (para os stakeholders). Tanto a natureza, os critérios e a forma de apresentação destas informações tem se aproximado ao longo das últimas décadas. O IFRS é uma espécie de corolário desta tendência. Do ponto de vista dos administradores, que têm funções específicas nas companhias, mas responsabilidades extensivas perante os seus acionistas, credores, funcionários, etc. a existência de um sistema contábil confiável é essencial. Eventuais informações distorcidas ou inconsistentes de outras áreas da empresa podem ser sinais de que a diligência de cada administrador deva ser reforçada frente ao todo. Muito embora a Lei da S.A. individualize a responsabilidade do administrador por atos ilícitos de outro administrador no artigo 158, § 1º, vale lembrar, que excepcionalmente a responsabilidade pode ser solidária. Esta última hipótese decorre de conivência, negligência na descoberta de atos ilícitos, no descumprimento de deveres que não permitam o funcionamento normal da companhia e a falta de comunicação à assembleia geral sobre atos de outro administrador ou predecessor. Ora, a excepcionalidade da responsabilização tem relação direta com sistemas de informação da empresa, notadamente aqueles relacionados com a contabilidade, dado o seu caráter de informação legal. Portanto, a exceção à regra de responsabilização se reveste de importância substantiva e não pode ser avaliada como mero aspecto secundário.

No que se refere ao dever de informar, gostaria de destacar alguns aspectos relacionados com a divulgação de fato relevante (art. 157, § 4º, da Lei das S.A.). Esta previsão legal tem caráter altamente protetivo aos interesses gerais dos investidores do mercado de capitais. Não se pode permitir que, à vista da existência assimétrica de uma determinada informação relevante, certos investidores possam obter retornos anormais frente a outros. Ou seja, o espírito da lei é o de preservar a eficiência do funcionamento do mercado em função da "matéria-prima" que faz as cotações dos ativos variar, no caso, as informações sobre a companhias. A existência de informação privilegiada por parte de um ou alguns investidores é um dos assuntos que mais desafia os órgãos reguladores, bem como tem sido objeto de extensivos estudos acadêmicos e investigações no mercado internacional. Trata-se, portanto, de assunto revestido de elevada complexidade e cuja determinação de responsabilidades enseja investigações igualmente complexas.

O referido § 4º do art. 157 prevê duas possibilidades "abertas" para que um fato relevante seja divulgado: (a) deliberações das assembleias gerais ou dos órgãos de administração e (b) alteração dos negócios da companhia que possa influir, de modo ponderável, nas decisões das operações de mercado (comprar, vender, manter, emprestar, etc.) dos investidores. Ambas as previsões legais sobre o dever de informar requerem uma análise em relação às informações já prestadas anteriormente. A relevância pode decorrer de um ineditismo absoluto, ou seja, trata-se de um assunto que jamais foi abordado pela administração em informações prestadas anteriormente. Neste caso, cabe a administração informar na medida das possibilidades e no interesse social da companhia e de seus acionistas, informar as variáveis relativas aquele fato, inclusos os decorrentes de seus efeitos segundo os padrões estabelecidos pelo IFRS. Num segundo caso, o fato relevante pode decorrer de uma informação anteriormente já prestada. Neste caso deve-se "comparar" o que já foi informado com aquilo que se constitui em novidade e relevância. A regra é simples, muito embora os seus efeitos possam ser bastante complexos: cabe à administração, especificamente ao diretor de relação com os investidores, ser transparente e informar todos os aspectos relevantes que possam afetar as cotações dos valores mobiliários no mercado. Informações contábeis são mais relevantes no cumprimento do dever de informar (com transparência) quando envolvem operações de incorporação, cisão, fusão, venda de ativos, mudanças de projeções, etc. Todavia, não se restringem a esses casos. Note-se que à prestação de tais informações devem se juntar comparações com informações já prestadas (se for o caso) de sorte os investidores possam entender seus efeitos intertemporais.

Os temas e aspectos acima abordados são apenas alguns que levantamos para enfatizar o novo paradigma que decorre da adoção do novo padrão contábil brasileiro, o IFRS. No sistema anterior, obedecia-se a um critério geral, válido para todas as empresas em qualquer situação. O IFRS impõe uma particularização da análise das informações de cada empresa, valorizando-se o caráter essencial destas, ou seja, a essência econômica prevalecente sobre a forma jurídica. Perde-se, eventualmente, a comparabilidade entre demonstrações financeiras de empresas do mesmo setor econômico, mas ganha-se maior entendimento sobre como os administradores das empresas encaram os negócios ao longo do tempo. Cria-se, à luz das previsões da Lei das S.A., novos contornos aos deveres de informar e de diligência que devem ser repensados pelos administradores e todos os stakeholders das companhias. Trata-se de um tema ainda não totalmente percebido pelos agentes de mercado, mas que ganhará importância crescente nos próximos anos.

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Colunista

Francisco Petros Advogado, especializado em direito societário, compliance e governança corporativa. Também é economista e MBA. No mercado de capitais brasileiro dirigiu instituições financeiras e de administração de recursos. Foi vice-presidente e presidente da seção paulista da ABAMEC – Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais e Presidente do Comitê de Supervisão dos Analistas de Investimento. É membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo e do Corpo de Árbitros da B3, a Bolsa Brasileira, Membro Consultor para a Comissão Especial de Mercado de Capitais da OAB – Nacional. Atua como conselheiro de administração de empresas de capital aberto e fechado.