A Constituição Federal promulgada em 1988 foi, sem sombra de dúvidas, um dos maiores avanços políticos na história brasileira. Embora ainda estivéssemos sob a presidência de José Sarney, prócer da ditatura militar, a nova Constituição empurrava o país para um novo período democrático. Muitos criticam o fato de a nova Constituição democrática ser extensa, recheada de novos direitos individuais, sociais, econômicos e políticos. Ocorre que o pacto político que originou a nova Constituição surgiu depois de vinte anos de regime autoritário e ao final de um século com profundas transformações no país. O processo retardado de industrialização, em meio à instabilidades institucionais, foi dos mais rápidos e de maior porte dentre as maiores economias industriais do ocidente. O Brasil, do início do século até 1988, cresceu a uma média ligeiramente superior a 5% ao ano e em cerca de quarenta anos transformou-se em uma sociedade urbana a partir de um ruralismo pós-escravocrata, oligárquico e de monocultura, quando não apenas extrativista. Este processo de profunda transformação econômica, não foi acompanhado pela correspondente evolução dos direitos sociais e políticos. Ao contrário, as ditaduras e instabilidades institucionais foram como um contrapeso das classes superiores para que não se desenvolvesse a dinâmica capitalista clássica, marcada pela formação de classes salariais que se apropriam de parcelas relevantes da renda e a expansão expressiva das denominadas classes médias, urbanas e cujo acesso se deve fundamentalmente à educação. De fato, a concentração de renda – a maior entre os vinte países mais industrializados - foi uma das cicatrizes mais aparentes que se podia verificar quando do nascimento da nova Constituição de 1988.
Os direitos sociais declarados na referida Constituição se tornaram na maior parte das vezes encargos adicionais para o Estado. O setor privado acabou sendo onerado a posteriori com a paulatina e substantiva expansão do número de tributos e da tributação – em 1988 representava algo como 22% do PIB e dez anos depois, em meio a seguidas crises de balanço de pagamentos, atingia marcas ao redor de 37% do PIB.
Foi no contexto acima descrito que houve a distribuição das obrigações sociais entre os entes federativos, entre os quais os municípios passaram a integrá-los. De outro lado, no capítulo da Ordem Econômica, a Constituição de 1988, persistiu com a tendência secular por um sistema tributário centralizado, tendo a União a prevalência regulatória e em termos de volume de recursos no sistema de arrecadação e de distribuição dos tributos. Os Estados e municípios, especialmente estes últimos, não receberam parcelas de recursos congruentes aos ônus. Vale lembrar que em 1988, os Estados ainda tinham à disposição um sistema financeiro próprio que poderia servir à atração de recursos financeiros privados para as necessidades de financiamento de despesas e investimentos, bem como a capacidade de endividamento dos tesouros com títulos estaduais e municipais. Afora os evidentes problemas de gestão, dentre os quais destaca-se a corrupção, tais instituições financeiras acabaram se tornando caudatárias do elevado endividamento dos Estados e municípios e, assim, apenas rolavam a dívida junto ao sistema privado, perdendo a sua função de organização de recursos para os projetos de Estados e municípios.
A consolidação do endividamento público brasileiro ocorreu em meados dos anos 1990 em meio à necessidade da União reduzir as tensões criadas junto aos investidores internacionais em função do elevado endividamento de Estados e municípios, bem como, para atender as demandas do sistema financeiro doméstico que, apesar de ter ofertado crédito de forma duvidosa para os entes federativos, pressionavam para nada perder no processo de conversão de dívidas estaduais e municipais em títulos Federais, mais seguros e, geralmente, mais rentáveis. Neste contexto, dois efeitos relevantes foram engendrados no sistema federativo brasileiro: (i) os Estados e municípios consolidaram as suas dívidas e passaram a ter um custo fixo, eventualmente mais alto, ora mais baixo, que o custo do dinheiro no mercado (balizado pela autoridade monetária central, o BC) e (ii) comprometeu-se a título de "principal item" do orçamento os gastos de rolagem da dívida, seja para a União, seja para os demais entes federativos. O sistema financeiro doméstico e internacional foi inteiramente preservado neste processo de consolidação ao contrário do que ocorreu no período de renegociação da dívida externa entre 1990 e 1995 quando encontrou-se uma fórmula que combinou uma "saída de mercado" (reduzindo o valor presente da dívida) com a sustentação do balanço de pagamentos.
A lei de responsabilidade fiscal (LFR - LC 101) de maio de 2000 surge como um elemento essencial para ordenar as finanças públicas brasileiras. Não há que se duvidar de sua necessidade estrutural, seja para impor transparência à finança do setor público, seja para obrigar que os entes federativos possam estipular planos de curto, médio e longo prazo em relação aos gastos públicos (despesas+investimentos) à luz das possibilidades concretas do setor público amealhar recursos para tanto. Isso tudo criou um sistema de “amarração” de gastos em relação à arrecadação e, assim, criou o “limite físico” entre o recurso disponível (via tributação, endividamento ou repasse de recursos) e o gasto a ser feito. Há que se honrar os méritos desta lei neste aspecto básico da boa gestão da coisa pública. Todavia, isso não é tudo.
Se a LRF é uma espécie de cânone do sistema econômico brasileiro, há também de se reconhecer que esta perenizou uma injustiça federativa pela qual, os Estados e, sobretudo, os municípios tem limitações de arrecadar e se endividar muito embora as demandas pelos serviços públicos (saúde, educação, segurança, etc.) sejam crescentes desde a edição da Constituição de 1988. Ora, se de um lado a LRF tornou "sustentável" o endividamento público brasileiro do ponto de vista de risco (usualmente medido pela relação entre total da dívida pública e o PIB), de outro, esta acabou por tornar impossível a sustentação do aumento de demandas sociais por mais gastos em setores sensíveis, não medido por nenhum "índice". Com efeito: ou se repensa o federalismo brasileiro no campo das receitas (distribuição das tributação entre os entes federativos, endividamento de estados e municípios, etc.) ou se repensa os direitos contidos na Constituição Federal de 1988 (com todos os seus custos políticos) ou, ainda, se repensa ambos.
É comum na mídia e na fala de certos analistas econômicos e do mercado financeiro e de capital a consideração de que o simples debate sobre a LRF seja um atentado às finanças públicas e a segurança dos investidores. Qualquer um que levante o tema é considerado um "heterodoxo", "agente da inflação", "populista" e outras coisas mais. Trata-se do já famoso apelo ideológico que esconde uma questão econômica-política-social-federativa mal resolvida e um considerável risco para o futuro do país. De fato, defende-se o sistema estabelecido, exigindo-se "ajustes" que não são propriamente "difíceis e duros", mas essencialmente impossíveis. Também é causa fundamental para o fraco e insustentável crescimento do Brasil.
Há mais um efeito que merece destaque neste tema. Os Estados e municípios não estão somente perdendo capacidade de investir e implementar programas sociais. Estão perdendo capacidade de planejar. Isso porque a racionalização dos programas governamentais é feita sob um grau de incerteza substantivo em relação ao médio e longo prazo. De fato, a LRF exige que Estados e municípios façam planejamento de mais largo prazo, mas pune, de fato, os resultados considerados "negativos" que são de curto prazo. Ora, sob o peso de penas institucionais (sobretudo, financeiras) e pessoais, os prefeitos e governadores acabam por preferir uma gestão "medrosa" e não propriamente "conservadora" como seria desejável.
Em ano eleitoral este tema deveria ser obrigatório para o questionamento dos candidatos. Provavelmente não será, pois o revestimento ideológico que protege o tema do debate acabará por evitar que se exponha também as mazelas da LRF no contexto do federalismo brasileiro, muito embora ninguém possa olvidar das evidentes virtudes ontológicas da lei. Os candidatos não querem falar nada que perturbe o tal do "mercado" e certos setores de "formadores de opinião". Mesmo que diuturnamente possam ver prefeitos e governadores de "pires na mão" nos corredores das repartições de Brasília, buscando sanar os problemas do federalismo brasileiro, enquanto os cidadãos demandam mais e mais direitos constitucionais legítimos.