O Marco Legal das Startups (MLS), instituído pela Lei Complementar 182/21, inaugurou uma nova modalidade de contratação pública denominada "Contrato Público para Solução Inovadora" (CPSI). Um ano após a vigência do marco legal, é de interesse acadêmico investigar como a Administração Pública e a iniciativa privada reagiram à novidade.
De início, cumpre pontuar que o MLS nasceu com a ousada proposta de desburocratizar o procedimento de contratação de práticas tecnológicas pelo Poder Público e de fomentar o empreendedorismo inovador. Há a reafirmação do laço de cooperação entre o público e o privado, direcionado ao incentivo do estímulo à inovação nas empresas e à modernização tecnológica do Estado a partir de seu poder de compra (art. 12, II). Por meio do CPSI, busca-se o "fomento à inovação e as potenciais oportunidades de economicidade, de benefício e de solução de problemas públicos com soluções inovadoras" (art. 3º, VIII).
Em termos normativos, a edição do MLS não trouxe muitas novidades para a seara do direito administrativo licitatório, visto que, de certa forma, as práticas ali delineadas já eram consideradas possíveis a partir da combinação de outros diplomas legais1 (em especial: lei 10.973/2004 - Lei de Inovação - e sua consequente alteração pela lei 13.243/2016; lei 14.133/2021 - Nova Lei de Licitações; e lei 13.303/2016 - Lei das Estatais).
Não se discute, contudo, que houve a inauguração de práticas modernas e convenientes com o cenário empresarial atual, sobretudo ao se considerar que as startups - protagonistas da norma - são tidas como os grandes berços da inovação tecnológica. Com isso, buscou-se aproximar a Administração Pública de boas técnicas resolutivas, de modo que constituem finalidades do CPSI "resolver demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia"; e "promover a inovação no setor produtivo por meio do uso do poder de compra do Estado" (art. 12, caput).
A edição do MLS vincula todo o Poder Público ao novo regime de compras, até mesmo a Administração Pública direta, autárquica e fundacional, inclusive no âmbito estadual, distrital e municipal2 (art. 12, § 1º), com possibilidade de adoção também pelas empresas públicas e sociedades de economia mista3, no que couber, observadas disposições específicas em regulamento interno (art. 12, § 2º).
Para estudar o CPSI, inaugurado pelo MLS, optou-se por analisar editais públicos lançados ao longo do último ano e em diversos níveis da Administração Pública.
No âmbito do Programa ImpulsiONar, parceria do Instituto Lemann com vários municípios brasileiros, foram lançados diversos editais baseados no MLS com o objetivo de construir práticas inovadoras voltadas à construção de tecnologias para o combate da defasagem nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática entre os estudantes do 6º ao 9º ano da rede pública de ensino4.
Todos os editais foram elaborados com a finalidade de atrair edtechs - startups focadas no desenvolvimento de soluções tecnológicas em educação - para encontrar caminhos inovadores de combate à defasagem escolar a partir de um problema social específico: o déficit nas disciplinas básicas durante as fases finais do ensino fundamental.
Para atrair competitividade e fomentar a participação da maior quantidade possível de soluções, os editais delimitam o escopo da licitação com proposituras abrangentes e fazem constar especificamente os resultados que são esperados com a contratação pública, nos moldes do que autoriza o art. 13, § 1º, do MLS. No âmbito do programa ImpulsiONar, muitos são os desafios encontrados pelos gestores em educação no Brasil, de modo que a possibilidade de aliar tecnologia com práticas pedagógicas a partir da contratação pública abre novas portas para soluções criativas.
Contribui para a abertura de novos caminhos a possibilidade de delimitação aberta do objeto do contrato, a partir da indicação do problema a ser resolvido e dos resultados esperados pela Administração Pública, o que permite que as startups proponham práticas tecnológicas modernas e personalizadas para a resolução da necessidade específica. Há uma integração entre a demanda e a oferta, de sorte que essa última passa a ter que se adequar ao problema a ser solucionado não mais de forma abstrata, mas para atender às necessidades específicas do ente público.
Para a seleção da proposta, dispõe o art. 13, § 4º, do MLS que os critérios de julgamento, sem prejuízos de outros constantes do edital de licitação, devem considerar: o potencial de resolução do problema a partir da solução proposta; a potencial economia para a administração pública; o grau de desenvolvimento da solução; a viabilidade e a maturidade do modelo de negócio da solução; a viabilidade econômica da proposta, considerando os recursos financeiros disponíveis; e a demonstração comparativa de custo e benefício da proposta em relação às demais.
Há, ainda, a possibilidade de contratação de mais de uma proposta, cujo quantitativo deve ser exposto no edital (art. 13, § 6º), inclusive em modalidade de consórcio (art. 13, caput). Com isso, o legislador tentou aproximar startups concorrentes para a resolução conjunta de problemas específicos, o que cria cooperação para o cumprimento do interesse público - além de alocação mais eficiente dos recursos.
Nos editais do Programa ImpulsiONar há vedação específica da contratação de consórcio, diferentemente do que ocorre no Edital CPSI - Licitação n. 2857625219 - lançado pela Petrobrás S.A em 2021. Neste caso, a opção pela possibilidade de formação de consórcios para a proposta de soluções tecnológicas conjuntas aos desafios da Empresa foi o de atrair a maior quantidade possível de players do mercado nacional e internacional para dirimir questões técnicas inerentes às áreas finalísticas.
O edital contempla diversos desafios que visam munir a Petrobras S.A de soluções tecnológicas nas áreas de robótica, tecnologias digitais e saúde. Os desafios são divididos em Fast Track - de seleção única e simplificada - e Inception - cuja seleção é feita em duas etapas. No primeiro caso, as propostas foram submetidas a uma comissão de licitação composta por especialistas responsáveis por avaliar os critérios de julgamento do edital. Já quanto aos desafios mais complexos (Inception), as propostas foram indicadas pela Autoridade Superior e apresentadas pela Comissão de Licitação ao Comitê Técnico composto por especialistas na área de cada desafio, com o objetivo de dirimir dúvidas específicas.
Cabe pontuar que o MLS dispõe que as propostas devem ser julgadas e avaliadas por comissão especial integrada por, no mínimo, três pessoas de reputação ilibada e notório conhecimento técnico, obrigatoriamente sendo: um servidor público integrante do órgão contratante; e um professor de instituição pública de ensino superior na área relacionada ao tema objeto do contrato (art. 13, § 3º, I e II).
Nesse ponto, as críticas especializadas apontam um engessamento no processo de tomada de decisão e de escolha da melhor proposta, já que a designação de comissão especial, de acordo com a doutrina administrativista, não é capaz de assegurar completamente a tecnicidade e a impessoalidade5. Isso porque, sobretudo no campo de tecnologia e inovação, há uma específica proximidade entre os atores e os técnicos-julgadores que costumam ser conhecidos, direta ou indiretamente, o que pode impor na influência de critérios subjetivos na tomada de decisão6.
Uma vantagem é que os editais ora analisados se aproveitaram da possibilidade de análise posterior da documentação relativa aos requisitos de habilitação (art. 13, § 7º), o que traz maior celeridade ao procedimento. Agora, a administração pública somente avança para analisar o dossiê daquelas propostas que passaram pelo crivo prévio de adequação.
Ainda, há a possibilidade de dispensa motivada da documentação de habilitação ou da prestação de garantia para a contratação (art. 13, § 8º, I e II), cuja permissividade legal objetiva também oportunizar a participação de startups que não tenham experiência prévia em processos licitatórios e que buscam no poder público oportunidades de crescimento.
É certo que o MLS e o CPSI trazem vantagens para a Administração Pública e para o setor das startups no Brasil, em especial as govtechs. Sua consolidação depende do desenvolvimento de hábitos jurídicos positivos que serão estruturados com o passar dos anos e a partir do pronunciamento dos órgãos de controle em casos concretos. Sua existência no mundo normativo reforça a concepção de que o avanço social, em questão de direito administrativo, depende do alinhamento com a inovação e tecnologia.
Em matérias de compras públicas, o alinhamento com as melhores soluções em tecnologia e inovação é o diferencial para a construção de políticas públicas de qualidade que façam sentido para o progresso do País. No último ano, houve a mobilização de CPSI para atrair o setor de tecnologia para a administração pública. Viu-se que, a partir do MLS, o Programa ImpulsiONar auxilia na conexão de edtechs com órgãos da administração pública que necessitam de soluções inovadoras para melhorar a qualidade do ensino na rede pública.
A partir de outro contexto, também delineou-se a aplicação do CPSI no âmbito do Estado Empreendedor para garantir maior proximidade com o setor privado na busca de soluções e serviços inovadores na área de petróleo e energia. Ficam claras as vantagens do uso de instrumento de contratação pública tanto para a Administração Pública, quanto para a iniciativa privada.
Logo, muito embora ainda exista muito no que avançar em termos de legislação de compras públicas e inovação, é indubitável que o MLS abriu portas para a aproximação mais eficiente, e com certa segurança jurídica, entre Estado e startups.
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1 Para críticas que se aprofundam nesse ponto, conferir: Schiefler, Gustavo. CPSI no Marco Legal das Startups: o que se vê e o que não se vê. Revista Conjur, 08 de agosto de 2021.
2 Exemplo do Edital n. 003/2021 do Município de Guaramiranga/CE que objetivou a construção de inovação tecnológica para combater a defasagem nas disciplinas Língua Portuguesa e Matemática dentre os estudantes do 6º ao 9º ano da rede pública de ensino.
3 Vide, como exemplo, o Edital Petrobrás de Chamada Pública de Testes de Soluções 2021/1, elaborado com base no MLS e com o objetivo de "selecionar soluções já validadas ou em fase de validação no mercado, com potencial para atender os desafios da Petrobras".
4 Exemplos: Edital n. 003/2021 do Município de Guaramiranga/CE; Edital 001/2022 do Município de Volta Redonda/RJ; Edital 001/2022 do Município de Bonito/PE; Edital n. 001/2021 do Município de Cabrobó/CE; Edital n. 001/2022 do Município de Santa Maria/RS.
5 Ver Di Pietro, Maria Sylvia. Licitações e contratos administrativos. São Paulo: Editora Forense, 2021.
6 Em igual sentido, conferir: Schiefler, Gustavo. CPSI no Marco Legal das Startups: o que se vê e o que não se vê. Revista Conjur, 08 de agosto de 2021.