Dados Públicos

ANPD: Agência reguladora ou autoridade reguladora independente?

Mas, à toda evidência, quis o Governo federal o que se vê: a ANPD é, afinal, uma autoridade reguladora independente.

7/7/2022

A Medida Provisória 1.124, editada em 13/6/2022, promoveu mudanças substanciais na natureza jurídica da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão "responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento" da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) "em todo o território nacional" (art. 5º, inc. XIX, LGPD).

A proposição atende à expectativa declaradamente prevista no art. 55-A, § 1º, da lei de dados, que estabelecia ser a natureza jurídica do órgão transitória, abrindo-se espaço para uma possível transformação em "entidade da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República".

Mas não corresponde, historicamente, ao anseio original do Congresso Nacional. É bem verdade que a necessidade de um órgão regulador e de fiscalização sempre foi consenso entre os Poderes Executivo e Legislativo e a própria sociedade. Tanto assim que o Congresso, ao final do processo legislativo dos projetos de lei aprovados e sancionados na forma da LGPD, propôs, por emenda parlamentar, sua criação.

Porém, em sua primeira proposta, vetada pelo Presidente da República, a ANPD teria sido órgão "integrante da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério da Justiça", ao qual se aplicaria a lei 9.986, de 18 de julho de 2000, que "dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências".

Tanto a medida provisória 869, de 2018, como a legislação dela convertida, a lei 13.853, de 2019, já propuseram ora um órgão integrante da administração pública federal, ora integrante da Presidência da República, ou seja, sem a natureza jurídica de autarquia especial, tal como era o desejo parlamentar.

Nessa toada, o Parlamento negociou com o Governo federal um meio-termo, que é precisamente a declaração de transitoriedade, contida no art. 55-A, § 1º, fruto de emenda do relator da matéria, materializada na forma de um projeto de lei de conversão: dois anos após a entrada em vigor da estrutura regimental da ANPD, foi estabelecido que poderia haver sua transformação em autarquia especial.

Obviamente, essa cláusula não possuía força normativa vinculante alguma, mas meramente sugestiva.

Em primeiro lugar, porque o legislador presente não pode vincular a atuação do legislador futuro, de modo que eventual lei posterior que fosse incompatível com esse mandamento iria simplesmente revogá-lo.

Em segundo lugar, porque é reservado constitucionalmente ao Presidente da República a iniciativa de projetos de lei que proponham a criação de órgãos da administração pública (art. 61, § 1º, inc. II, al. “e”, CF). Entendimento diverso, no sentido de se tratar de uma obrigação imposta pelo Legislativo ao Executivo, seria entendida inconstitucional, por violar a reserva de iniciativa legislativa e a reserva de Administração do Presidente da República, afetando ainda o princípio da separação dos Poderes. Ademais, deve ser registrado que foram necessários estudos técnicos e administrativos que sustentassem a proposta, além, claro, do juízo de oportunidade, que compete exclusivamente a quem detém a competência privativa constitucional para assim agir.

Eis que, não obstante inexistir obrigação legal que lhe impusesse promover a transformação da ANPD, o Presidente da República assim o fez, editando a MP 1.124, de 2022. Porém, a natureza jurídica proposta pela medida excepcional não foi a de agência reguladora, tal como era o desejo original do Parlamento, mas a de autarquia federal de natureza especial.

A bem da verdade, o Poder Executivo jamais manifestou oficialmente qualquer interesse em criar uma agência reguladora de proteção de dados: desde as primeiras propostas, mais especificamente aquela constante da MP 869, de 2018, o intuito sempre foi o que hoje se constata na MP 1.124.

Note-se que a MP 869, de 2018, tramitou concomitantemente com os projetos de lei do novo marco regulatório das agências reguladoras (Lei nº 13.848, de 25.06.2019): vale dizer, houvesse algum interesse em alinhar as proposições e organizar a administração pública federal, poderia tê-lo feito quando da sanção do projeto de lei de conversão na lei 13.853, de 08.07.2019 – menos de duas semanas os separam.

Ainda que os atributos administrativos da ANPD, na proposta da MP 1.124, de 2022, sejam, em grande medida, equivalentes àqueles previstos no art. 3º, da Lei das Agências Reguladoras (LAR) (ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira, investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos), o que poderia suscitar a discussão se, de fato, a ANPD tornou-se ou não uma agência reguladora (art. 2º, par. único, LAR), a intenção da Presidência da República não foi submeter a ANPD ao regime jurídico da LAR em sua integralidade.

Tanto assim que, alterada a natureza jurídica da ANPD, a MP preservou todos os demais artigos da LGPD, entre os quais alguns que, claramente, confrontariam com os atributos e a estruturação administrativa de uma agência reguladora, como, por exemplo, o prazo do mandato dos diretores: pela LGPD, permanece sendo de 4 anos (art. 6º, decreto 10.474/2020), permitida uma recondução, mas, pela LAR, fosse agência reguladora, seria de 5 anos, vedada a recondução. Ou mesmo os critérios para sua nomeação aos cargos: a LAR possui muitos mais requisitos para indicação de nomes que a LGPD. Ainda, a estrutura e o funcionamento de sua ouvidoria, que difere entre as legislações. Entre outras diferenças relevantes. É claro que, como norma posterior, a MP 1.124 não estava adstrita aos termos da LAR, mas a adoção de critérios distintos, combinados com a ausência de denominação da ANPD como uma “agência reguladora” (um verdadeiro silêncio eloquente), revelam ao intérprete a sua inequívoca intenção: criar uma Autarquia Especial, e não uma Agência Reguladora.

Por fim, não se extrai da Exposição de Motivos que acompanha o envio da medida provisória ao Congresso Nacional nenhuma intenção declarada de a tornar Agência Reguladora. Pelo contrário, o documento expressa a necessidade de se criar uma "autoridade reguladora independente". Daí que a mens legislatoris revela tão somente esse intuito, nada mais.

Fosse de outra forma, inclusive, alterações deveriam ser propostas tanto na LGPD, como na LAR, a fim de buscar harmonizar o ordenamento jurídico vigente. Mas não foi o que ocorreu, em mais um indício do desinteresse governamental em se criar uma agência reguladora de proteção de dados.

Para muito além de um debate meramente teórico, a questão possui repercussões administrativas relevantes e que impactariam inclusive o processo de nomeação dos próximos diretores.

Mas, à toda evidência, quis o Governo federal o que se vê: a ANPD é, afinal, uma autoridade reguladora independente. Ainda que possua atributos e funcionamento similares, ela não pode ser considerada, a partir do texto originário da MP 1.124/2022, como uma agência reguladora, não se aplicando, por isso, o regime jurídico da LAR.

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Alisson Possa Advogado. Mestre em Direito Constitucional. Doutorando em Direito. Professor do IBMEC e IDP. Membro da Comissão de Proteção de Dados da Corregedoria do CNJ.

Fabrício da Mota Alves é advogado, sócio-coordenador em Direito Digital e Proteção de Dados do Serur Advogados. Conselheiro Consultivo da ANPD. Conselheiro e membro fundador da Associação Brasileira de Governança Pública de Dados Pessoais (govDADOS.br). Instagram: @motaalves.fabricio

Rodrigo Borges Valadão é procurador do Estado do Rio de Janeiro. Consultor no Terra Rocha Advogados. Membro do Comitê de Governança em Privacidade e Proteção de Dados do Estado do Rio de Janeiro. Presidente e Membro Fundador da Associação Brasileira de Governança Pública de Dados Pessoais (govDADOS). Mestrando em "Privacy, Cybersecurity, Data Management, and Leadership" pela Universidade de Maastricht (Países Baixos). Especialista em Advocacia Pública pela FGV/RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ. Doutor em Direito Público pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha), em cotutela com a USP. Instagram: @rodrigobvaladao