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Reserva estratégica de bitcoin nos EUA, no Brasil e mundo afora

Os EUA estudam criar uma reserva estratégica de bitcoin, visando estabilidade econômica e liderança geopolítica. Outros países, como Brasil e Polônia, exploram ideias similares, mas há desafios e riscos.

6/12/2024

Contexto

Nos Estados Unidos, a senadora norte-americana pelo Estado de Wyoming, Cynthia Lummis, apresentou projeto de lei para estabelecer o que ela chamou de “reserva estratégica de bitcoins”, um programa que instrui o Tesouro dos EUA e o Federal Reserve a comprarem um milhão de bitcoins nos próximos cinco anos para depois mantê-los por pelo menos mais 20 anos1.  

Ao lançar essa proposta legislativa na última Bitcoin Conference em Nashville2, com apoio do então candidato Donald Trump, Lummis sugeriu alavancar o valor de mercado do bitcoin para reduzir significativamente a dívida nacional americana e aumentar a resiliência financeira3.

Após a ideia ser impulsionada com a reeleição de Trump nos EUA, as discussões sobre uma Reserva Estratégica de Bitcoin - SBR (Strategic Bitcoin Reserve em inglês) ganharam peso em vários países, inclusive no Brasil. É isto que exploraremos a fundo no artigo de hoje.

Conceito e motivação política   

A ideia de uma SBR ganhou interesse bipartidário, com figuras como os candidatos à presidência Donald Trump e RFK Jr., bem como a senadora Cynthia Lummis propondo escalas variadas de aquisição de bitcoin para reforçar o caixa do Tesouro americano4.

O conceito é visto como uma forma de reforçar o domínio monetário americano e combater adversários geopolíticos.

O governo dos EUA já detém aproximadamente 212.847 bitcoins - $BTC por meio do confisco de ativos, e há sugestões para interromper a venda desses ativos e aumentar a reserva5.

Consequências

O estabelecimento de uma SBR dos EUA poderia influenciar significativamente as percepções globais do bitcoin de várias maneiras6.

Primeiro, a adoção do bitcoin pelos EUA como um ativo de reserva estratégica poderia levar a uma legitimação do bitcoin como uma reserva digital de valor, semelhante ao ouro, e incentivar o investimento institucional e de varejo.

Segundo, isso poderia transformar o bitcoin de um ativo especulativo em um componente central das economias nacionais, potencialmente levando a uma adoção global mais ampla.

Em terceiro lugar, a adoção do bitcoin como reserva estratégica pelos EUA poderia levar a uma corrida global pelo bitcoin, com outras nações, como China e Rússia, possivelmente seguindo o exemplo para se proteger contra a hegemonia do dólar americano, gerando implicações geopolíticas significativas7 8.

Ainda sob o aspecto geopolítico, uma SBR poderia proporcionar aos EUA uma vantagem estratégica na competição geopolítica, especialmente contra o bloco BRICS, que está explorando moedas digitais alternativas visando a desdolarização9.

Sob o prisma da estratégia econômica, o suprimento finito e a natureza descentralizada da rede blockchain bitcoin são vistos como possíveis proteções contra a inflação e contra a desvalorização das moedas fiduciárias (euro, dolar, rublo, por exemplo), complementando as reservas tradicionais, como o ouro10. Logo, uma reserva de bitcoin poderia aumentar a estabilidade econômica americana11.

Por fim, uma SBR poderia apoiar as metas climáticas dos EUA ao integrar a mineração de bitcoin com energia renovável, estabilizando a rede e incentivando a geração de energia renovável12.

Reações do mercado

A proposta provocou reações mistas, com alguns gerentes de ativos céticos quanto à sua viabilidade e possível impacto sobre o dólar americano13.

No entanto, os proponentes argumentam que a fase de adoção do bitcoin justifica essas preocupações, e uma reserva estratégica serviria como um ativo estratégico, não especulativo.

Uma SBR dos EUA, todavia, poderia levar outros países a considerar reservas semelhantes, marcando uma mudança significativa nas estratégias financeiras globais.

Desenvolvimentos em outros países

Alguns países que já estão planejando ou desenvolvendo uma SBR são:

Butão

O Butão acumulou discretamente mais de US$ 1 bilhão em reservas de bitcoin, posicionando-se como um modelo para nações menores que exploram a adoção de ativos digitais14. A estratégia do Butão envolve o aproveitamento de recursos energéticos para mineração de BTC.

Catar e Emirados Árabes Unidos

Há muita especulação sobre como outros países, como o Catar, os Emirados Árabes Unidos15 e, possivelmente, outros países da região, estão acumulando bitcoin ($BTC) como um ativo de reserva16.

Hong Kong

Johnny Ng, membro do Conselho Legislativo de Hong Kong, anunciou que seriam tomadas medidas para incluir o bitcoin nas reservas financeiras da região. Após destacar a importância da conformidade com as estruturas regulatórias nesse processo, Johnny Ng afirmou que a integração do bitcoin na estrutura financeira de Hong Kong é possível17.

Polônia

O candidato presidencial polonês Slawomir Mentzen anunciou planos para criar uma SBR se for eleito, com o objetivo de transformar a Polônia em um centro cripto com regulamentações de apoio18.

Suíça

Na Suíça, os defensores do bitcoin estão fazendo campanha para um referendo nacional para incluir o bitcoin nas reservas do Banco Nacional Suíço. Essa iniciativa requer 100 mil assinaturas e tem como objetivo alterar a Constituição suíça19.

Venezuela

A líder da oposição venezuelana, María Corina Machado, propôs a adoção do bitcoin como ativo de reserva nacional para combater o colapso econômico e a hiperinflação. Essa proposta é vista como um meio de estabilizar a economia e proteger os ativos nacionais20.

Brasil e bitcoin como reserva estratégica

Deputado apresentou um PL – PL 01/2421 – para o Brasil ter reservas de bitcoin ($BTC), sugerindo uma “aquisição planejada e gradual de  criptomoedas”, limitando a participação do bitcoin a 5% das reservas internacionais. 

Batizada de Reserva Estratégica Soberana de Bitcoins [RESBIt], a estratégia buscaria não só diversificar os ativos financeiros do Tesouro Nacional, mas também proteger as reservas contra flutuações cambiais e riscos geopolíticos, além de fomentar o uso da tecnologia blockchain no setor público e privado, de acordo com o deputado federal Eros Biondini (PL-MG), formulador do PL.

Atualmente, as reservas do Brasil são formadas por uma cesta de moedas estrangeiras que, até 26 de novembro, correspondia a US$ 361,2 bilhões em reservas diversificadas da seguinte maneira: dólar (80%), euro, libra e outras moedas fiduciárias “fortes” (27%) e ouro (3%).

Riscos associados

A implementação de uma SBR por um país envolve riscos em potencial. Apesar do preço do bitcoin se valorizar no longo prazo, muitos analistas financeiros apontam riscos e desafios categorizados em fatores econômicos, regulatórios e geopolíticos.

Quanto aos riscos econômicos, podemos citar a volatilidade e a associação de bitcoin como um ativo de especulação. O bitcoin é conhecido por sua alta volatilidade de preços. Em 2023, a volatilidade anual do bitcoin foi de aproximadamente 53,18%, com preços variando de um mínimo de US$ 35.789,11 a um máximo de US$ 94.178,20, representando uma faixa de preço de 163,15%22. Essa volatilidade pode representar um risco significativo para a estabilidade das reservas de um país dependendo do momento do ciclo do bitcoin.

Outrossim, o bitcoin é frequentemente visto como um ativo especulativo. Daí porque, para alguns analistas, a possibilidade de oscilações significativas de preço pode levar a ganhos ou perdas substanciais, o que pode não ser adequado para as reservas estratégicas de um país que exigem estabilidade e previsibilidade23.

Sob a ótica regulatória, os países enfrentam obstáculos legais e de conformidade ao integrar o bitcoin em seus sistemas financeiros. Por exemplo, há preocupações sobre a conformidade com os padrões internacionais, como as políticas Know-Your-Customer - KYC e Anti-Money-Laundering - AML.

Ademais, muitas vezes há resistência política à adoção do bitcoin como um ativo de reserva. Os players tradicionais podem se opor a essas medidas devido ao possível impacto sobre o sistema financeiro existente.

Além disso, o uso do bitcoin pode ser influenciado por tensões geopolíticas. Por exemplo, países como a Rússia e o Irã usaram o bitcoin para atenuar o impacto das sanções internacionais, o que poderia levar a um maior escrutínio e possíveis sanções de outras nações24.

Por fim, a mudança para as reservas de bitcoin pode alterar a dinâmica financeira global, especialmente em relação ao domínio do dólar americano. Os países que se afastarem do dólar poderão enfrentar repercussões econômicas e políticas25.

Desafios estratégicos e operacionais

O primeiro desafio estratégico e operacional para uma SBR é a implementação de um sistema de Prova de Reservas - PoR para garantir a integridade das reservas de bitcoin. Sem isso, há o risco do que é conhecido como “bitcoin de papel”, o que poderia minar a credibilidade da reserva.

A PoR assegura que o bitcoin é real e está totalmente respaldado - no caso do país não manter o bitcoin em custódia própria.

Sem uma PoR, há o risco das corretoras e bolsas operarem como bancos de reservas fracionárias, mantendo menos bitcoin do que devem, o que leva a colapsos graves. Muitas instituições financeiras, como a FTX26 e a Prime Trust, operavam com reservas fracionárias, o que levou ao seu colapso quando os clientes tentaram sacar os fundos de uma só vez. A PoR é, portanto, uma proteção contra essas falhas e o futuro dos sistemas financeiros transparentes.

O segundo desafio é a integração do bitcoin aos sistemas financeiros e de tesouraria existentes em um país, o que exige mudanças e adaptações significativas, que podem ser complexas e exigir muitos recursos27.

Percepção e compreensão do público

A percepção e o entendimento do público sobre o bitcoin influenciam significativamente sua adoção como um ativo de reserva estratégica.

Pesquisas28 indicam que a aquisição de bitcoin pelas pessoas está fortemente correlacionada com o conhecimento sobre o bitcoin e a crença em sua utilidade do que com fatores políticos ou demográficos.

Por isso, campanhas e parcerias educacionais, como a colaboração do Tether com o Fuze, visam aumentar a conscientização e a adoção de ativos digitais29. Na mesma linha, em El Salvador há diversos projetos para educar a população sobre bitcoin, aumentar a alfabetização financeira e a confiança no ativo30.

Entretanto, as reações mistas e o ceticismo de alguns participantes do mercado destacam a necessidade de educação contínua e de estruturas políticas claras para apoiar a função do bitcoin como um ativo estratégico.

Dados quantitativos

Em 20 de novembro de 2024, a oferta circulante de bitcoin era de aproximadamente 19.784.700, com um volume de negociação diário de US$ 30,64 bilhões e uma capitalização de mercado de US$ 1,86 trilhão. A rede tem 486.965 endereços ativos e 810.805 transações bem-sucedidas, indicando atividade e interesse robustos31.

Perspectivas finais

O conceito de uma reserva estratégica de bitcoin está ganhando força nos EUA e no mundo todo, com vários países explorando os possíveis benefícios e implicações de manter o bitcoin como um ativo de reserva.

Essa tendência destaca o papel crescente da primeira cripto nas estratégias financeiras globais e seu potencial para influenciar a dinâmica econômica e geopolítica.

Contudo, embora a criação de uma reserva estratégica de bitcoin possa oferecer possíveis benefícios, como diversificação e proteção contra a desvalorização da moeda fiduciária, ela também apresenta obstáculos políticos, econômicos e operacionais significativos que precisam ser cuidadosamente considerados e gerenciados para que ela se torne realidade.

Neste contexto, varios fatores precisam convergir para que a adoção de uma reserva estratégica de bitcoin pelos países se torne realidade.


1 Disponível aqui

2 Disponível aqui

3 Disponível aqui 

Disponível aqui 

5 Idem Nota 1.

6 Disponível aqui 

7 Idem Nota 1.

8 Disponível aqui 

9 Disponível aqui

10 Disponível aqui

11 Disponível aqui

12 Idem Nota anterior.

13 Disponível aqui

14 Disponível aqui

15 Disponível aqui

16 Disponível aqui

17 Disponível aqui

18 Disponível aqui 

19 Disponível aqui 

20 Disponível aqui 

21 Disponível aqui

22 Disponível aqui

23 Disponível aqui

24 Disponível aqui

25 Idem nota anterior.

26 Disponível aqui

27 Disponível aqui 

28 Disponível aqui

29 Disponível aqui

30 Disponível aqui

31 Dados da Galaxy Capital.

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Colunista

Tatiana Revoredo é representante do "European Law Observatory on New Technologies" no Brasil. Especialista em Direito Digital e Professora de Blockchain para Negócios no Insper. Especialista em aplicações de negócios Blockchain pelo MIT Sloan School of Management, em Inteligência Artificial pelo MIT CSAIL, em estratégia de negócios em Inteligência Artificial pelo MIT Sloan School of Management e em Cyber-Risk Mitigation pela Harvard University. Estrategista Blockchain pela Saïd Business School, University of Oxford. Convidada pelo Parlamento Europeu e pelo Congresso Nacional para palestrar sobre blockchain, criptoativos e legislações correlatas. Membro-fundadora da Oxford Blockchain Foundation. LinkedIn Top Voice em Tecnologia e Inovação. Coautora do livro "Criptomoedas no Cenário Internacional: qual o posicionamento de autoridades, Bancos Centrais e Governos". Autora dos livros "Blockchain: Tudo o que você precisa saber"; e "Bitcoin, CBDC, DeFi e Stablecoins".