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Rússia regula mineração de bitcoin e mira 'desdolarização'

A nova legislação da Rússia traz regras para a indústria de mineração de bitcoin e mira desdolarização, ao autorizar empresas selecionadas a realizar liquidações internacionais e negociações de câmbio em moeda digital.

16/8/2024

Panorama geral

A agência de notícias estatal russa noticiou1 no dia 6/8 que a câmara baixa da Assembleia Federal da Rússia, conhecida como Duma Estatal, aprovou dois projetos de lei relacionados à bitcoin e moedas digitais.

A nova legislação russa traz regras para a indústria de mineração de bitcoin e mira desdolarização, ao autorizar empresas selecionadas a realizar liquidações internacionais e negociações de câmbio em moeda digital.

A primeira lei legaliza a mineração de bitcoin a partir de 1º/11/24. 

Já a segunda, permite que o banco central autorize empresas selecionadas a realizar “liquidações transfronteiriças e negociações de câmbio em moeda digital no âmbito de regimes jurídicos experimentais (EPR) a partir de 1º/9/24”.2

A nova regulação introduz3 vários conceitos-chave, incluindo mineração de criptomoedas, pools e operadores de infraestrutura de mineração.4

A nova lei russa para a indústria da mineração

A primeira lei aprovada pela câmara baixa da Assembleia Federal da Rússia - conhecida como Duma Estatal - legaliza totalmente a mineração de criptomoeda no país a partir de 1º/11/24. 

As atividades de mineração agora são reconhecidas pela Rússia como parte do faturamento, em vez da emissão de moeda digital.

A nova legislação também específica que apenas entidades legais russas e empreendedores individuais registrados no governo poderão se envolver na atividade de mineração. 

Pessoas jurídicas e empreendedores individuais registrados no Ministério do Desenvolvimento Digital também podem exercer a atividade de mineração. E os que não possuírem referido registro, poderão minerar, desde que seu consumo de energia permaneça dentro dos limites definidos pelo governo. Note que esses limites são específicos para cada região e estão sujeitos ao tamanho das operações.

Essa regulação veio após o governo russo se apropriar de várias fazendas de mineração gerenciadas por empresas privadas no país.5

Aqui, vale destacar que esse “ingresso” da Rússia na indústria de mineração de bitcoin vem de encontro a recente declaração6 de Donald Trump sobre o assunto. Trump postou7:

A mineração de Bitcoin pode ser nossa última linha de defesa contra uma CBDC". (...) "Queremos que todo o Bitcoin remanescente seja FEITO NOS EUA!!! Isso nos ajudará a ser a ENERGIA DOMINANTE!!!".

No tocante à fiscalização da atividade de mineração, será competência de diferentes instituições, com o Banco Central russo exercendo poderes predominantes.

Com relação aos requisitos legais exigidos dos operadores de infraestrutura de mineração, o gabinete de ministros estabelecerá de forma independente seu escopo. Demais requisitos - como os exigidos dos participantes de pools de mineração -, serão estabelecidos conjuntamente pelo governo e pelo Banco Central da Rússia.

Além disso, mineradores precisarão prestar informações ao órgão autorizado pelo governo sobre a moeda digital obtida como resultado da mineração.

Outrossim, para garantir a estabilidade da política monetária, órgão autorizado e o banco central russo poderão impor proibição ou restrição ao mercado de criptomoedas.

Ainda, fica vedada oferta publica [a um número ilimitado de pessoas], assim como anúncios e propaganda de criptomoedas.

O regime jurídico experimental russo para pagamentos internacionais com moedas digitais

A segunda lei aprovada pela Duma Estatal é um EPR - regime jurídico experimental, que dá ao Banco Central da Rússia poderes para permitir que empresas autorizadas realizem atividades de comércio exterior, liquidações internacionais e negociações de câmbio com criptomoedas e moedas digitais estrangeiras em plataformas DLT8 da Rússia.

Além disso, o programa EPR deve definir os direitos e obrigações dos participantes em tais liquidações, bem como das autoridades e agentes de controle de moeda.

Ainda, atribui ao banco central russo as funções de um órgão autorizado e regulador para esse novo EPR, bem como define os casos em que o programa de EPR aprovado pelo BACEN está sujeito à coordenação do Serviço Federal de Segurança e o Ministério das Finanças da Federação Russa.

Dentro da estrutura do EPR, o banco central da Rússia terá a oportunidade de criar uma plataforma eletrônica para transações em moedas digitais com base no NPS - Sistema Nacional de Pagamentos, para determinar as regras de sua operação, bem como os requisitos para as atividades de seu operador.

Segundo relatório9 da Ria Novosti, o Banco da Rússia poderá realizar não apenas um, mas três experimentos a partir de 1º/9 deste ano: Sobre o uso de moedas digitais para liquidações no comércio exterior, sobre a realização de negociações de câmbio em moeda digital e sobre a criação de uma plataforma eletrônica para transações em moeda digital com base no NPS.

Empresas, corretoras e entidades precisarão solicitar ao banco central para se tornarem parte deste regime jurídico experimental, similar ao que já acontece com o DREX.

Qual é a justificativa oficial do governo russo para a adoção deste regime?

Por diversas vezes, Vladimir Putin mostrou interesse no uso das moedas digitais como ferramenta para o desenvolvimento econômico da Rússia, enfatizando a necessidade de regulamentação e infraestrutura adequadas.

Contudo, o cenário geopolítico nos mostra que as reais intenções para Putin ao criar um regime experimental de pagamentos internacionais vão muito além disso.

Desdolarização como um tema crescente e uma possível bifurcação do sistema monetário global

O BRICS é um grupo cada vez maior de economias emergentes que busca cada vez mais diminuir a dependência do dólar americano para o comércio internacional. O grupo, inicialmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, agora é composto por mais seis membros: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Egito, Irã e Etiópia.

Nessa linha, o bloco apresentou a ideia de uma “moeda digital” alternativa ao dólar pela primeira vez, na 11ª Cúpula anual do BRICS em 2019.

Recentemente, o foco no desenvolvimento de uma moeda unificada para o BRICs – que aparentemente parecia esquecido –, voltou a receber destaque.

E isto se deu principalmente depois que os EUA, União Europeia, Canadá e Reino Unido, entre outros concordaram em expulsar10 a Rússia do sistema Swift em resposta à invasão da Ucrânia, e aplicaram sanções econômicas, que podemos resumir em:

1) Proibições específicas aos maiores bancos da Rússia, seu banco central, empresas estatais e fundos de investimento;

2) Exclusão dos principais bancos russos da Swift.

Sanções direcionadas contra funcionários sênior russos, oligarcas e membros de suas famílias:

3) Controles de exportação;

4) Restrições ao comércio e ao investimento em certas regiões da Rússia;

5) Exigência de bloqueio de fundos associados à evasão de sanções russas (inclusive via criptos).

Ora, sem um fim claro à vista, a invasão da Ucrânia pela Rússia acabou acelerando uma ampla reorientação econômica global. Enquanto a Europa está se afastando de sua dependência do petróleo e do gás russos, a Rússia está buscando principalmente nações não alinhadas ao Ocidente para obter mercados comerciais em um futuro próximo.

Não à toa, em 2023, o vice-presidente da Duma, Alexander Babakov, fez comentários no evento do Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo em Nova Délhi, Índia, afirmando11 que a moeda poderia beneficiar a China e outros membros do BRICS, e não o Ocidente. Segundo ele:

"Sua composição deve ser baseada na introdução de novos laços monetários estabelecidos em uma estratégia que não defenda o dólar ou o euro dos EUA, mas que forme uma nova moeda competente para beneficiar nossos objetivos comuns."12

Também em 2023, o ex-economista-chefe do Goldman Sachs, Jim O'Neill, já havia desafiado13 o bloco dos BRICS a se expandir e desafiar o domínio do dólar. Em um artigo publicado na revista Global Policy, ele escreveu que "o dólar americano desempenha um papel dominante demais nas finanças globais".

Por óbvio, cada vez mais países não estão confortáveis com a dominância de um sistema de pagamento baseado em dólares. Isto porque, enquanto os EUA dominarem os pagamentos, eles serão capazes de aplicar sanções financeiras a um custo muito baixo, enquanto todos os países precisam dar um salto.14

Pois bem, pouco depois das declarações de Babakov, o Banco Central e o governo russo anunciaram planos para criar entidades especiais para usar ativos digitais como um método de liquidação internacional.

Tal proposta, no entanto, precisa enfrentar obstáculos significativos antes de se tornar realidade, incluindo divergências entre os principais estados-membros sobre como uma moeda unificada funcionaria.

Além disso, há dúvidas de que uma moeda unificada do BRICS lastreada em ouro possa destronar o dólar americano.

Sobre o assunto, vale citar a macroeconomista Lyn Alden, que possui uma posição moderada15 em relação ao movimento BRICs e a criação de uma moeda única. Segundo Alden:

Estamos vendo um mundo mais multipolar, estamos vendo a unificação de grupos que se opõem a entidades como a OTAN e o G7. Vendo esses grandes blocos surgirem e acho que será uma tendência de longo prazo, acrescentando grandes produtores de petróleo. E isso certamente aumenta o poder geral dos BRICs. Portanto, isso reforça sua importância geopolítica geral”.16

Para Alden, no entanto, os apelos de uma moeda compartilhada são exagerados, assim como o euro. Um problema que se vê com vários países tentando ter uma moeda compartilhada, especialmente se for um tipo de moeda centralizada17, é que todos eles têm economias muito diferentes e mercados de capital muito diferentes. Portanto, quando os países detêm reservas cambiais, eles não detêm realmente a moeda. Eles possuem um título ou algo do gênero denominado nessa moeda, até mesmo ações. E a profundidade dos mercados de capitais desses países do BRIC não é muito grande em comparação com os EUA ou partes da Europa, como a Alemanha.

Esse é o problema de criar uma moeda atraente de um tipo de bloco monetário que as pessoas queiram realmente usar.

Portanto, em vez disso, o que veremos é cada vez mais acordos bilaterais de moeda ou acordos multilaterais de moeda em que se decide, por exemplo, que este país venderá petróleo à China em ‘yuan digital’. E isso é diferente desse tipo mais amplo de moeda compartilhada.18

Neste contexto, a real causa por trás da adoção do regime jurídico experimental de liquidações internacionais em moeda digital chama-se “desdolarização”.

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1 Disponível aqui.

2 Idem Nota 1

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.

8 Disponível aqui.

9 Idem Nota 1

10 Disponível aqui.

11 Disponível aqui.

12 Idem Nota 11

13 Disponível aqui.

14 Disponível aqui.

15 Disponível aqui.

16 Idem Nota 15

17 Disponível aqui.

18 Idem Nota 15

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Colunista

Tatiana Revoredo é representante do "European Law Observatory on New Technologies" no Brasil. Especialista em Direito Digital e Professora de Blockchain para Negócios no Insper. Especialista em aplicações de negócios Blockchain pelo MIT Sloan School of Management, em Inteligência Artificial pelo MIT CSAIL, em estratégia de negócios em Inteligência Artificial pelo MIT Sloan School of Management e em Cyber-Risk Mitigation pela Harvard University. Estrategista Blockchain pela Saïd Business School, University of Oxford. Convidada pelo Parlamento Europeu e pelo Congresso Nacional para palestrar sobre blockchain, criptoativos e legislações correlatas. Membro-fundadora da Oxford Blockchain Foundation. LinkedIn Top Voice em Tecnologia e Inovação. Coautora do livro "Criptomoedas no Cenário Internacional: qual o posicionamento de autoridades, Bancos Centrais e Governos". Autora dos livros "Blockchain: Tudo o que você precisa saber"; e "Bitcoin, CBDC, DeFi e Stablecoins".