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Stablecoins algorítmas na mira do Senado americano

Lummis-Gillibrand Payment Stablecoin Act estabelece estrutura regulatória às stablecoins de pagamento nos EUA. Críticos, no entanto, apontam que a proibição stablecoins algorítmicos atinge o código de software, o que violaria a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.

10/5/2024

Stablecoins no Brasil e no cenário mundial

O atual presidente do Banco Central do Brasil declarou durante evento da Legend Capital, em São Paulo,  que o uso de stablecoins vem ganhando destaque no Brasil. Ele ressaltou que ainda existe pouca aceitação e compreensão sobre esses ativos.

Além disso, relatório da Receita Federal do Brasil revela uma mudança significativa no perfil das transações envolvendo criptomoedas nos últimos anos. O volume de negociação de bitcoin e outras criptomoedas foi amplamente superado pela movimentação de stablecoins, como o Tether.

De outro lado, Cuy Sheffield, Head de Cripto da Visa, destacou que, em apenas seis anos, as stablecoins passaram de um volume quase nulo para alcançar a mesma escala de transações da Visa.

No momento que este artigo foi escrito, o valor total de mercado das stablecoins era de 158,2 bilhões de dólares. As stablecoins apoiadas em dólares, como a Tether e a Circle, lideram o grupo com uma quota de 90% do mercado, enquanto as stablecoins algorítmicas e as recém-chegadas, como a Ethena [2,36 bilhões de dólares], representam uma pequena parte, cerca de 3%.

Tendo em conta sua crescente importância, hoje, analisaremos o Lummis-Gillibrand Payment Stablecoin Act, projeto de lei recém introduzido nos EUA que busca estabelecer uma estrutura regulatória às stablecoins de pagamento.

Mas antes de mergulharmos no assunto central deste artigo, é importante dar um passo atrás para compreender alguns conceitos.

Stablecoins segundo os principais organismos internacionais

BCE - Banco Central Europeu enxerga stablecoins como "unidades digitais de valor que se diferem das formas existentes de moedas (por exemplo, depósitos, dinheiro eletrônico, etc.) e contam com um conjunto de ferramentas de estabilização, para minimizar as flutuações em seus preços em relação uma moeda, ou cesta dela." O BCE, contudo, considera o termo stablecoin, usado para descrever essa inovação de pagamento digital, confuso e até impróprio. 

GAFI - Grupo de Ação Financeira Internacional – mais conhecido no exterior como FAFT – considera que "a palavra stablecoin  não é uma categoria legal ou técnica muito clara, sendo principalmente um termo de marketing usado pelos promotores de criptoativos." Já comentamos sobre o GAFI nesta coluna.1

Já o BIS - Bank for International Settlements – considerado o Banco Central dos Bancos Centrais por sua missão de auxiliá-los na busca da estabilidade financeira e monetária –, ao avaliar os riscos, potencial e regulação das stablecoins cita que "As stablecoins são baseadas em tokens; a sua validade é verificada com base no próprio token, e não na identidade da contraparte, como é o caso dos pagamentos baseados em contas” (KAHN, C. (2016). “How are payment accounts special? Payments Innovation Symposium, Federal Reserve Bank of Chicago.)".

Segundo a OCDE, as stablecoins pertencem à categoria dos "ativos digitais baseados em utilidade", ao lado dos CBDCs que, por sua vez, são representativos da responsabilidade institucional. 

Para o propósito deste artigo, utilizaremos o termo stablecoins principalmente como ativos monetários ao portador, projetados para imitar o preço das moedas fiduciárias, utilizando um mecanismo de estabilização.

Stablecoins lastreadas, sintéticas e algoritmas

Existem atualmente três categorias principais de stablecoin: As lastreadas, as sintéticas e as algorítmicas. 

Ou seja, as garantidas por moedas fiduciárias [lastreadas], garantidas por criptoativos ou por uma cesta de stablecoins [sintéticas] e, por fim, as não garantidas [algorítmicas ou algos]. 

As stablecoins garantidas ou lastreadas são emitidas por um terceiro centralizado e lastreadas por uma moeda fiduciária [ou, alternativamente, títulos do tesouro de curto prazo] ou ainda, por uma cesta de várias moedas fiduciárias. 

A grande maioria das stablecoins com garantia fiduciária tem o respaldo de 1 para 1 em dólares americanos. Uma unidade de uma stablecoin lastreada em dólares americanos pode ser resgatada em dólares americanos.

O dólar subjacente [a garantia] é mantido em contas bancárias e pode ser resgatado a qualquer momento pelos distribuidores ou, em alguns casos, pelos clientes de varejo diretamente. 

As reservas bancárias devem ser sempre iguais ao valor do fornecimento emitido de cada moeda-estável. 

Stablecoins lastreadas permanecem estáveis, desde que as pessoas tenham confiança de que o emissor do stablecoin realmente tem todas as reservas necessárias em sua conta bancária e que terceiros podem resgatá-las.

No tocante à parte tecnológica das stablecoins lastreadas, há um emissor, uma empresa que cria um token, e hoje a maior parte delas usa o padrão ERC-20 no blockchain ethereum. E elas emitem um token a medida em que realmente entra um token na conta corrente da empresa que está lastreando aquela stablecoin. 

Este é o sistema usado pelo USDT - USDollar Tether, bem como pelo true_US Dollar, Gemini US Dólar e USD Coin.

Stablecoins sintéticas ou "cripto-lastreadas" são emitidos por "linhas de crédito descentralizadas", que permitem aos usuários tomarem empréstimos vinculados. A stablecoin sintética serve essencialmente como uma "dívida tokenizada".

Os usuários que desejam criar a stablecoin sintética precisam bloquear mais de 100% dos criptoativos que serão "sobrecolateralizados" em um contrato inteligente como garantia. A maioria dos usuários que criam stablecoins dessa maneira estão essencialmente assumindo uma posição de longo prazo, alavancada sobre o colateral subjacente. 

Os empréstimos podem ser liquidados se não houver garantias suficientes no sistema para garantir o valor de todas as stablecoins em aberto. 

Cada empréstimo deve manter um rate de garantia mínimo e se o valor da caução for inferior a esse rate, a posição é automaticamente liquidada. 

A garantia é então leiloada ou vendida para cobrir o valor garantido de todas as stablecoins em circulação. 

Assim, a maioria dos usuários mantém uma proporção que é significativamente maior do que sua taxa de liquidação.

A paridade dessas Stablecoins sintéticas é mantida por meio da combinação de arbitragem e política monetária (por meio de taxas de juros). 

As stablecoins algorítmicas, às vezes também chamados de não colateralizadas ou não lastreadas, não possuem garantia, pois possuem um protocolo responsável por ajustar a oferta dessa stablecoin (oferta flexível), como a stablecoin Maker Dai e a Base Coin.

O mecanismo de estabilização geralmente depende de um design de "token duplo" e do mercado secundário.

Portanto, as "algos" possuem uma oferta flexível, governada por um algoritmo e contratos inteligentes que incentivam os participantes do mercado a comprar ou vender determinado token para manter a estabilidade de preços pretendida.

O conceito de stablecoins sem garantia (algo) foi originalmente proposto por Robert Sams em 2014, no seu trabalho "A Nota sobre Estabilização de Criptomoeda". 

Esclarecidos os tipos de stablecoins e, em especial as "algos", vejamos o novo PL das senadores americanas Kirsten Gillibrand e Cynthia Lummis, que pretende regular as stablecoins de pagamento, em resposta aos riscos das stablecoins.

O escândalo Terra Luna e o risco das stablecoins algorítmas

Como um "dólar americano" pode chegar abaixo de 30 centavos em um dia?

As stablecoins têm agregado valor, especialmente aos mercados emergentes onde as pessoas não têm acesso ao dólar e a moeda nacional é volátil. 

Normalmente, quem "investe" em stablecoins são fortes adeptos das criptomoedas, mas desejam alguma estabilidade. 

Contudo, a regra de ouro da estabilidade das stablecoins foi violada em maio de 2022, quando o preço da stablecoin algoritma UST - TerraUSD – que deveria se manter a US$ 1 peg – , despencou para menos de 35 centavos de dólar no que ficou conhecido como "escândalo Terra Luna". Em paralelo, seu token parceiro, LUNA – criado para estabilizar o preço da UST –, caiu de US$ 80 dólares para alguns centavos de dólar em 12/5/22. Para se ter uma ideia da dimensão do escândalo Terra Luna, confira abaixo sua linha do tempo:

Até hoje, há desdobramentos fáticos e jurídicos do episódio Terra Luna.

Não à toa, reguladores por todo o mundo estão acelerando novas legislações sobre stablecoins algorítmas – o Reino Unido planeja publicar nova lei em seis meses, e os EUA, cujo Congresso já debate o assunto desde dezembro de 2020, parece ter declarado guerra às algos.

Lummis-Gillibrand Payment Stablecoin Act

O S.4155 - Lummis-Gillibrand Payment Stablecoin Act é um PL de 179 páginas, criado em resposta ao escândalo Terra-Luna, que busca estabelecer uma estrutura regulatória às stablecoins de pagamento nos EUA.

Para senadora Gillibrand, "A aprovação de uma estrutura regulatória para stablecoins é absolutamente crítica para manter o domínio do dólar americano, promover a inovação responsável, proteger os consumidores e reprimir a lavagem de dinheiro e as finanças ilícitas".

Objetivos do Projeto de Lei de Lummis-Gillibrand

  1. Proteger os consumidores, exigindo que os emissores de stablecoin mantenham reservas de um para um e proibindo stablecoins algorítmicos sem garantia.
  2. Prevenir o uso ilícito ou não autorizado de stablecoins por emissores e utilizadores.
  3. Criar regimes regulatórios federais e estaduais para emissores de stablecoin que preservam o sistema bancário duplo.

Se aprovada como está, a legislação:

  1. Proibirá "stablecoins algorítmicas sem lastro" – como resposta ao escândalo da TerraUSD – e exigirá que os emissores mantenham reservas de um para um.
  2. Criará regimes regulatórios federais e estaduais para emissores de stablecoin que preservam o sistema bancário duplo.
  3. Concederá permissão às 'empresas fiduciárias estaduais não depositárias' para emitir "até US $ 10 bilhões" em stablecoins de pagamento;
  4. Concederá permissão às instituições autorizadas para emitir stablecoins "até qualquer valor", sob uma carta estadual de propósito limitado.
  5. Manterá o atual sistema de cartas estaduais e federais e estabelecia regras de custódia para empresas fiduciárias não depositárias.

O projeto de lei de Lummis-Gillibrand, contudo, não é uma unanimidade, e já enfrenta oposição.

Críticas ao Lummis-Gillibrand Payment Stablecoin Act

O grupo de defesa Coin Center expressou preocupações sobre o projeto de lei de Lummis-Gillibrand, apontando que ele seria inconstitucional e uma "má política".

A proibição de stablecoins algorítmicas nos Estados Unidos apresentaria desafios constitucionais, eis que atinge essencialmente o código de software.

Em linhas gerais, embora tenha como objetivo regulamentar as stablecoins como a Terra [UST],  o projeto de lei Lummis-Gillibrand pode asfixiar a inovação e violar os direitos da Primeira Emenda ao proibir todos os modelos algorítmicos.

Dito de outro modo, pode haver "stablecoins algorítmicas" que – ao contrário do Terra – são totalmente descentralizadas, sem emissores ou promotores a fazer quaisquer promessas.

Nesses casos, uma proibição de "stablecoins algorítmicas" é essencialmente uma proibição de publicação de código de software, o que violaria os direitos de liberdade de expressão.

Nos Estados Unidos, inventar e publicar software e algoritmos, mesmo software comercial para fins comerciais e lucrativos, está protegido pela Primeira Emenda. Proibir as pessoas de publicarem código e algoritmos é uma clara restrição prévia ao discurso protegido e é inconstitucional, a menos que o governo possa demonstrar um interesse imperioso e uma adaptação restrita.

Considerações finais

A intenção do PL de Lummis-Gillibrand é boa, e enfrenta questões não abordadas pelos projetos de lei anteriores, como a falta de clareza sobre se o Federal Reserve [Banco Central americano] ou os reguladores estatais, como o NYDFS - Departamento de Serviços Financeiros de Nova Iorque teriam primazia na supervisão.

Resta saber se o PL de Lummis e Gillibrand sobreviverá, diante de abordagens às stablecoins mais brandas – como a sugerida pelo H.R.4766 - Clarity for Payment Stablecoins Act of 2023 que, ao invés de uma proibição total, sugere uma moratória de dois anos às stablecoins algorítmas. O Clarity for Payment Stablecoins Act é um projeto de lei ainda em trâmite, mas que já recebeu a chancela em comissão na Câmara no ano passado.

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1 Disponível aqui.

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Colunista

Tatiana Revoredo é representante do "European Law Observatory on New Technologies" no Brasil. Especialista em Direito Digital e Professora de Blockchain para Negócios no Insper. Especialista em aplicações de negócios Blockchain pelo MIT Sloan School of Management, em Inteligência Artificial pelo MIT CSAIL, em estratégia de negócios em Inteligência Artificial pelo MIT Sloan School of Management e em Cyber-Risk Mitigation pela Harvard University. Estrategista Blockchain pela Saïd Business School, University of Oxford. Convidada pelo Parlamento Europeu e pelo Congresso Nacional para palestrar sobre blockchain, criptoativos e legislações correlatas. Membro-fundadora da Oxford Blockchain Foundation. LinkedIn Top Voice em Tecnologia e Inovação. Coautora do livro "Criptomoedas no Cenário Internacional: qual o posicionamento de autoridades, Bancos Centrais e Governos". Autora dos livros "Blockchain: Tudo o que você precisa saber"; e "Bitcoin, CBDC, DeFi e Stablecoins".