CPC na prática

STJ definirá se a fundamentação per relationen resulta em nulidade do ato decisório

O professor Daniel Penteado de Castro tece considerações sobre a proposta de afetação da Corte Especial do STJ voltada a definir se a fundamentação per relatione resulta em nulidade do ato decisório

27/3/2025

A pretexto da eficiência, racionalidade de julgamentos e quiçá com vistas a atender ao Princípio Constitucional da Duração Razoável do Processo (CF, art. 5º, LXXVIII), muitas turmas julgadoras, ao decidir determinado recurso, passaram a utilizar a fundamentação per relationen (também conhecida por fundamentação por referência ou fundamentação por remissão).

Em outras palavras, ao decidir o recurso, a turma julgadora ao revés de enfrentar um a um, os fundamentos recursais que ensejaram a impugnação de determinada decisão judicial convidando a sua reforma ou anulação, tornam a repetir os fundamentos da decisão impugnada, para ao final proclamar seu acerto, respectiva manutenção e desnecessidade de qualquer reparo.

Tal prática não prevista no CPC foi objeto de questionamento. Afinal, por vezes o recurso, ao impugnar uma sentença ou decisão interlocutória, pode versar exatamente no inconformismo de não enfrentamento da decisão impugnada de questões fundamentais ou necessárias trazidas em defesa e não examinadas.

Logo, a mera repetição da decisão impugnada ao julgar o recurso pode dar margem a repetição de idêntico error in judicando ou procedendo. A título de exemplo, basta examinar determinada decisão impugnada ausente de fundamentação em precedentes, ao revés de precedentes invocados pela parte sucumbente em sua defesa e em sentido contrário ao decidido, porém ignorados.

A repetição da respectiva decisão impugnada despida de pronunciar-se do porquê os precedentes invocados não devem ser observados ao caso concreto viola a inteligência do art. 489, § 1º, VI, do CPC 1 e compromete a manutenção para evitar manter a jurisprudência íntegra, estável e coerente com decisões no mesmo sentido em casos congêneres.

Deveras, a extensão das hipóteses previstas em aludido parágrafo, aptas a elucidar que tipo de decisão não pode ser considerada fundamentada, inclusive são consideradas como omissão, aptas desafiar o manejo de embargos de declaração (art. 1.022, parágrafo único, II, do CPC 2.

Daí por que em vista das críticas recorrentes a aplicação não prevista no CPC de fundamentação per relationen ao decidir aludido recurso, a Corte Especial do STJ enunciou a seguinte proposta de afetação sob a égide de julgamento de recurso especial repetitivo:

“PROPOSTA DE AFETAÇÃO. SUBMISSÃO DE RECURSO ESPECIAL AO RITO DOS REPETITIVOS. VALIDADE DA FUNDAMENTAÇÃO PER RELATIONEM.

1. Delimitação da controvérsia: "Definir se a fundamentação por referência (per relationem ou por remissão) – na qual são reproduzidas as motivações contidas em decisão judicial anterior como razões de decidir – resulta na nulidade do ato decisório, à luz do disposto nos arts. 489, § 1º, e 1.022, parágrafo único, inciso II, do CPC de 2015".

2. Recurso especial afetado ao rito do art. 1.036 do CPC de 2015.”

(ProAfR no Resp 2148059/MA, Corte Especial, Rel. min. Luis Felipe Salomão, j. 10/12/24).

A decisão de afetação também determinou por unanimidade a suspensão do processamento de todos os recursos especiais e agravos em recurso especial em trâmite nos Tribunais de segundo grau ou no STJ, que versem sobre idêntica questão. O relatório e razões que ensejaram na afetação, rezam, em síntese:

(...) Nas razões do especial, fundado na alínea "a" do permissivo constitucional, a autora aponta violação do art. 489, § 1º, inciso IV, do CPC de 2015. Sustenta, em síntese, a ausência de fundamentação do acórdão estadual, que manteve a decisão monocrática do relator que se limitou a transcrever ipsis litteris a sentença apelada.

Apresentadas contrarrazões ao apelo extremo, que foi admitido na origem como representativo de controvérsia, nos termos do art. 1.036, § 1º, do CPC.

Constatada a relevância da matéria e a multiplicidade de recursos especiais com fundamento em idêntica questão de direito, o atual presidente da Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas (eminente ministro Rogério Schietti Cruz) recomenda a afetação do processo como repetitivo para definir "se a fundamentação por referência ou por remissão per relationem, na qual são utilizadas motivações contidas em decisão judicial anterior como razões de decidir, resulta na nulidade do ato decisório".

É o relatório.

(...)

Ademais, conforme noticiado pelo presidente da Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas, a questão jurídica "já foi apreciada pelo STJ em outros 661 recursos especiais, oriundos do TJMA, e em pelo menos 25 agravos internos", o que demonstra a repetição da matéria.

4. Desse modo, uma vez evidenciado o caráter multitudinário e relevante da mencionada questão jurídica e o preenchimento dos demais requisitos exigidos pelos arts 1.036, § 6º, do CPC de 2015 e 257-A, § 1º, do RISTJ, considero ser caso  e afetação do presente recurso especial como representativo da controvérsia, conjuntamente com os REsps 2.150.218/MA e 2.148.580/MA, nos termos do § 5º do art. 1.036 do CPC de 2015, para que sejam julgados pela Corte Especial, sob o rito dos repetitivos.

5. Ante o exposto, proponho: (i) a afetação do presente recurso especial e dos REsps 2.150.218/MA e 2.148.580/MA ao rito do art. 1.036 do CPC de 2015; (ii) a delimitação da controvérsia nos seguintes termos: "definir se a fundamentação por referência (per relationem ou por remissão) – na qual são reproduzidas as motivações contidas em decisão judicial anterior como razões de decidir – resulta na nulidade do ato decisório, à luz do disposto nos arts 489, § 1º, e 1.022, parágrafo único, inciso II, do CPC de 2015"; (iii) a suspensão do processamento de todos os recursos especiais e dos agravos em recurso especial, em trâmite nos Tribunais de segundo grau ou no STJ, que versem sobre idêntica questão, observada a orientação prevista no artigo 256-L do RISTJ; (iv) que se proceda à comunicação, com cópia da decisão colegiada de afetação, aos ministros da Corte Especial desta Corte e aos presidentes dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais; (v) que seja dada ciência, facultada a atuação nos autos como amici curiae, ao Instituto Brasileiro de Direito Processual, à Advocacia Geral da União, à Ordem dos Advogados do Brasil, à DPU - Defensoria Pública da União, ao IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor e ao BRASILCON Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor; e (vi) a oportuna vista ao Ministério Público Federal para parecer, nos termos do art. 1.038, III, § 1º, do CPC de 2015.

É como voto.

Se é certo que a luz da celeridade processual por vezes a fundamentação per relationen pode otimizar o tempo gasto para se trazer fundamentação em igual sentido ao se manter os fundamentos de determinada decisão impugnada, também é certo quem nem sempre a fundamentação empregada em determinado recurso destinado a reforma ou anulação da decisão impugnada estará assentado no quanto foi dito em defesa, mercê quando presentes error in procedendo ou uma das inúmeras hipóteses que ocupam o art. 489, § 1º do CPC, forte em explicitar o que não pode ser considerada uma decisão judicial fundamentada.

Confia-se, portanto, que a Corte Especial esteja atenta ao decidir sensível tema que também se harmoniza ao Princípio Processual Constitucional do Contraditório e Ampla Defesa ao viabilizar que os pontos em defesa suscitados sejam de fato e de direito examinados, enfrentados e decididos quando da prestação da tutela jurisdicional, ao revés da mera prática de repetição da decisão impugnada para ao final dizer que está correta e o recurso improvido.


1 “Art. 489. (...)

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

l - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

2 Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para:

(...)

Parágrafo único. Considera-se omissa a decisão que:

I - deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento;

II - incorra em qualquer das condutas descritas no art. 489, § 1º .”

II - suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento;

(...)

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto Pós-doutorados em Direito Processual Civil nas Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa (2015), da Universidade de Coimbra/IGC (2019) e da Universidade de Salamanca (2022). Visiting Scholar no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil, com Pós Doutorado pela Unimar (2023/2024). Pós Doutorado em Direito Processual Civil na Universitá degli Studi di Messina (2024/2026). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial (2012) e Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). MBA em Agronegócio pela USP (2025). MBA em Energia pela PUC/PR (2025). MBA em Economia pela USP (2026). Pós Graduação Executiva em Negociação (2013) e em Mediação (2015) na Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em diversos cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (ex.: EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, USP-AASP e CEU-Law). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Chambers, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2025), tendo sido Vice Presidente nas gestões 2019/2024. Presidente da Comissão de Processo Empresarial do IASP (desde 2025). Presidente da Comissão de Processo Civil da OABSP-Pinheiros (desde 2013). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor de 2013 a 2023. Conselheiro da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb, Camagro e da Amcham. Membro do IBDP e do CBar. Membro honorário da ABEP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do CFOAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021), Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021) e Presidente da Comissão de Direito de Energia do IASP (2013/2024).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).