CPC na prática

Os embargos de divergência e as ações originárias

Professor Rogerio Mollica analisa o recente julgado da Corte Especial do STJ que decidiu que não servem como paradigmas, para fins de comprovação de dissídio jurisprudencial em embargos de divergência, acórdãos proferidos em sede de ação constitucional.

30/1/2025

Os embargos de divergência possuem a importante função de uniformizar a jurisprudência de nossas Cortes Superiores. De fato, o artigo 926 do CPC prevê que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência mantê-la estável, integra e coerente. Portanto, quanto maior a abrangência do cabimento de tal recurso, melhor para o sistema processual1.

Desse modo, foi aplaudida a redação do § 1º do artigo 1043 do CPC ao prever que “Poderão ser confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária”. Com tal redação o Código procurou superar o entendimento então vigente, sob a égide do CPC/1973, de que não serviriam para demonstração do dissídio pretoriano os arestos proferidos em ações originárias ou em espécies recursais diversas dos recursos especiais e extraordinários, tais como Conflito de Competência, Recurso Ordinário, Mandado de Segurança, Ação Rescisória2.

Esse é o entendimento de Cássio Scarpinella Bueno: "O acórdão paradigmático, ou seja, o acórdão utilizado para demonstrar a dissonância do entendimento jurisprudencial e que enseja a sua uniformização mediante o emprego desse recurso, por sua vez, pode decorrer de julgamentos de recursos e de outros processos de competência originária, tais como mandados de segurança, ações rescisórias e reclamações, no que é expresso o § 1º do art. 1.043."3

Portanto, causou surpresa o recente julgamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça não aceitando como paradigma julgamento de Mandado de Segurança impetrado originariamente no STJ: 

“AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PARADIGMA EM SEDE DE AÇÃO CONSTITUCIONAL. NÃO CABIMENTO. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. Os embargos de divergência têm por finalidade pacificar a jurisprudência no âmbito do Tribunal quanto à interpretação da legislação federal examinada na via do recurso especial.

2. Não servem como paradigmas, para fins de comprovação de dissídio jurisprudencial em embargos de divergência, acórdãos proferidos em sede de ação constitucional, notadamente porque diverso o grau de cognição com relação ao recurso especial.

3. Agravo interno não provido.”

(AgInt nos EAREsp n. 2.143.376/SP, relator Ministro Raul Araújo, relatora para acórdão Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Corte Especial, julgado em 6/11/2024, DJe de 23/12/2024.)

Do voto vencedor faz-se importante a transcrição do seguinte trecho: 

“Com efeito, o CPC/2015, a princípio, possibilitou a interposição de embargos de divergência contra acórdão proferido em processo de competência originária (inciso IV do art. 1.043), porém, esse dispositivo foi revogado pela Lei nº 13.256/2016. Logo, o recurso uniformizador ficou restrito à hipótese de julgamento em sede de apelo especial.

Nesse cenário, tem-se que a função de uniformizar a interpretação da legislação federal se dá na via do recurso especial. E, para tanto, é conveniente que o aresto paradigma tenha sido proferido em julgamento com mesmo grau de cognição.”

O inciso IV revogado previa que é embargável o acórdão de órgão fracionário que “nos processos de competência originária, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal”. Assim, a previsão revogada previa que o acórdão de julgado de competência originária poderia ensejar a oposição de Embargos de Divergência. Já o § 1º prevê que o acórdão das ações originárias poderia servir de paradigma para possibilitar o cabimento dos Embargos de Divergência. Portanto, salvo melhor juízo, o CPC/15 não permite o cabimento de embargos de divergência em face de acórdão que julgou ação originária, mas estes podem servir de paradigma para confrontar julgamentos proferidos por em recursos Extraordinário e Especial.    

Nesse sentido é o entendimento expresso no muito bem fundamentado voto vencido da lavra do Min. Raul de Araújo: 

“(...) seria, logicamente, perfeitamente possível aceitar-se, em embargos de divergência, que a impugnação de acórdão proferido tanto na própria ação rescisória ou em recurso ordinário em mandado de segurança não fora a revogação expressa do inciso IV do art. 1.043 do Novo CPC pela Lei 13.256/2016. Contudo, como houve a revogação, somente é possível utilizar-se o acórdão em ação originária ou em recurso como paradigma, e não como paragonado (CPC, art. 1.043, § 1º).”

Em outro trecho assim previu o voto vencido: 

“Destarte, o regramento do § 1º do art. 1.043 do CPC foi repetido no referido art. 266, § 1º, do RISTJ, reforçando a convicção de que não mais deveria prevalecer a jurisprudência de outrora, de feição mais restritiva, no sentido de que os paradigmas devem se limitar aos acórdãos proferidos em recursos especiais e em seus consectários.

Portanto, o legislador ordinário, nos embargos de divergência em recurso especial ou recurso extraordinário, expressamente ampliou as hipóteses de cabimento e afastou aquela interpretação restritiva antes adotada na vigência do CPC de 1973, para claramente admitir que o aresto paradigma possa ser exarado em qualquer ação originária ou recurso julgado por órgão do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal (art. 1.043, § 1º).” 

Assim sendo, o entendimento presente no voto vencido parece se coadunar melhor com a expressa previsão legal e com a intenção do legislador. Tendo sido um julgamento com um placar um tanto apertado (8X5) talvez a matéria volte a ser julgada novamente no futuro, mas enquanto isso não ocorrer, paradigmas de ações originárias constitucionais não devem ser utilizados para a demonstração da divergência.

__________

1 Nesse sentido é o entendimento da professora Teresa Arruda Alvim: “Os embargos de divergência foram bastante alterados, principalmente, quanto à sua hipótese de cabimento. Procurou-se dar aos embargos de divergência bastante rendimento, de molde a que cumpram com eficiência a sua função que é, em última análise, a de desestimular recursos para o STJ ou STF. Isso porque o fato de haver tese jurídica sobre a qual haja divergência interna corporis, no Tribunal Superior, é elemento que, obviamente, estimula recursos. O objetivo dos embargos de divergência é exata e precisamente o de uniformizar a jurisprudência dos Tribunais Superiores, internamente. Portanto, quanto mais larga ou abrangente for a hipótese de cabimento dos embargos de divergência, a tendência é a de que menor seja o número de recursos interpostos. Os incisos têm como marca visível a intenção do legislador no sentido de “desmanchar” a jurisprudência que, equivocadamente, restringe indevidamente o cabimento deste recurso, à luz do CPC de 1973.” (Comenta´rios ao Co´digo de Processo Civil / organizadores Lenio Luiz Streck, Dierle Nunes, Leonardo Carneiro da Cunha; coordenador executivo Alexandre Freire. – 2. ed. – São Paulo : Saraiva, 2017, p. 1441).

2 EREsp 50.458/SP, CORTE ESPECIAL, Rel. Min. Demócrito Ribeiro, DJ de 07/08/1995; AgRg nos EREsp 103.701/SP, PRIMEIRA SEÇÃO, Rel. Min. José Delgado, DJe de 06/11/2006; AgRg nos EREsp 190.998/AM, SEGUNDA SEÇÃO, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 13/10/2005; AgRg nos EREsp 793.405/RJ, TERCEIRA SEÇÃO, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 09/05/2011.

3 Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, v. 2, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 757. Esse também é o entendimento de Luiz Dellore: “5. Embargos de divergência no caso de ação originária e outros recursos (§ 1.º). Por ausência de previsão no Código anterior, muito se debateu acerca da possibilidade de apontar a divergência entre um REsp ou RE e uma ação de competência originária do tribunal superior (como ação rescisória, mandado de segurança ou conflito de competência). 5.1. O Código buscou deixar de lado esse debate, ao expressamente afirmar ser isso possível. 5.2. Da mesma forma, o parágrafo aponta o confronto de teses contidos em recursos, o que leva à conclusão de que não somente REsp e RE (mencionados nos incisos), mas também outros recursos (como o ROC) podem ser utilizados como base para o acórdão paradigma. 5.3. Portanto, pela letra da lei, cabe divergência para discutir teses firmadas entre dois recursos, duas ações de competência originária ou entre recurso e ação de competência originária. 5.4. Esta alteração legislativa prestigia a tese decidida, e não o meio processual em que se discutiu a tese. O que é absolutamente lógico, pois o objetivo dos embargos de divergência é afastar a divergência quanto a um determinado entendimento jurisprudencial. 5.5. Contudo, a jurisprudência do STJ não vem admitindo que a divergência decorra de outro recurso que não o próprio REsp (vide jurisprudência selecionada), mantendo o entendimento firmado à luz do Código anterior. Além do viés restritivo, um argumento para isso é a revogação do inciso IV (...)” (Comentários ao código de processo civil / Fernando da Fonseca Gajardoni ... [et al.]. – 5. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 1630).

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto Pós-Doutorados em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015), na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019), na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022) e na Universitá degli Studi di Messina (2024/2026). Visiting Scholar no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional (2023/2024). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). MBA em Agronegócio pela USP (2025). MBA em Energia pela PUC/PR (2025). MBA em Economia pela USP (2026). Pós Graduação Executiva em Negociação (2013) e em Mediação (2015) na Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em diversos cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (ex.: EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, USP-AASP e CEU-Law). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2025), tendo sido Vice Presidente nas gestões 2019/2024. Presidente da Comissão de Processo Empresarial do IASP (desde 2025). Presidente da Comissão de Processo Civil da OABSP-Pinheiros (desde 2013). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor de 2013 a 2023. Conselheiro da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb, Camagro e da Amcham. Membro do IBDP, do CBar e da FALP. Membro honorário da ABEP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do CFOAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021), Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021) e Presidente da Comissão de Direito de Energia do IASP (2013/2024).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).