CPC na prática

Um diálogo necessário entre os temas repetitivos 1.230 e 1.285 do STJ

O texto aborda a crise na execução de processos judiciais no Brasil, com ênfase nos altos índices de congestionamento e nas dificuldades para localizar bens de devedores.

28/11/2024

O relatório Justiça em Números de 2024 aponta que há 83,8 milhões de processos em tramitação, sendo que o percentual de 56,5% corresponde a execuções; e sendo que a maior parte dos processos de execução é composta pelas execuções fiscais, que representam 59% do estoque.

Vale realçar que a taxa média nacional de congestionamento, quanto às execuções, é de 80,6%, o que demonstra, inevitavelmente, que temos uma grave crise na execução brasileira, ocasionada, principalmente, pela ausência de bens dos devedores para solverem os débitos exigidos.

Existe, assim, uma enorme crise na execução no Brasil.

E, em síntese, estudiosos no país lidam com esse cenário da execução de cinco formas: (i) propostas de reformas legislativas; (ii) estudos sobre desjudicialização; (iii) desenhos de requisitos e limites para a aplicação das medidas executivas atípicas do artigo 139, IV, do Código de Processo Civil de 2015 (“CPC/15”); (iv) debates sobre como localizar-se mais rapidamente os bens dos devedores; e (v) relativização da excepcionalidade de algumas medidas executivas, ou mesmo permissão de constrição de alguns bens tidos como impenhoráveis.

Foi nesse último sentido, por exemplo, a posição da Corte Especial do STJ no julgamento dos Embargos de Divergência n. 1.874.222, relativizando-se a impenhorabilidade de salário prevista no artigo 833, IV, do CPC/15: “a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que, em caráter excepcional, é possível relativizar a regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para ele e sua família”.

A questão voltará a ser enfrentada pelo STJ no julgamento dos Recursos Especiais ns. 1.894.973, 2.071.335 e 2.071.382, de relatoria do ministro Raul Araújo, sob o rito dos repetitivos. A questão está cadastrada como Tema 1.230 e vai definir o "alcance da exceção prevista no parágrafo 2º do artigo 833 do Código de Processo Civil (CPC), em relação à regra da impenhorabilidade da verba de natureza salarial tratada no inciso IV do mesmo dispositivo, para efeito de pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a cinquenta (50) salários-mínimos"1.

E existe a possibilidade de a Corte Especial do STJ manter o entendimento – inclusive fixando critérios – de relativizar a regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para ele e sua família; em linha, diga-se, com legislações processuais europeias, tal como se estipula no parágrafo 850-C da ZPO e no artigo 738 do CPC/13.

Caso assim ocorra, e até mesmo por coerência, naturalmente a previsão da impenhorabilidade do montante de 40 salários-mínimos – prevista no artigo 833, X, do CPC/15, precisa ser revisitada; a exemplo, aliás, do que ocorre no parágrafo 850-k da ZPO e no artigo 738, 5, do CPC/13, nos quais a impenhorabilidade de valores em conta bancária acompanha, em sintonia, os parâmetros da proteção à verba salarial.

No Brasil, registre-se, a falta de coerência do CPC/15 já ocorre nas balizas de proteção eleitas para as verbas salariais, em execuções de créditos não alimentares, apontando-se o patamar de 50 salários-mínimos no parágrafo 2º do artigo 833 do código. Por sua vez, o artigo 833, X, do CPC/15, protege a verba monetária de até 40 salários-mínimos, inexistindo uma lógica forte para explicar a razão de previsão díspares nesses dispositivos.

E tal incongruência pode se agravar caso o julgamento do Tema 1.285 não acompanhe a linha de apreciação do Tema 1.230, pelo qual o STJ tende a confirmar a posição já delineada pela Corte Especial no julgamento dos Embargos de Divergência n. 1.874.222, fortalecendo-se um precedente que siga a diretriz da relativização do disposto no parágrafo 2º do artigo 833 do CPC/15.

Vale lembrar que o objeto do citado Tema 1.285 é justamente a interpretação do artigo 833, X, do CPC/15, cabendo ao STJ: "definir se é ou não impenhorável a quantia de até 40 salários-mínimos poupada, seja ela mantida em papel-moeda, em conta corrente, aplicada em caderneta de poupança propriamente dita ou em fundo de investimentos". O assunto será julgado pela Corte Especial do STJ, sob o rito dos repetitivos, apreciando-se os Recursos Especiais n. 2.015.693 e n. 2.020.425, de relatoria da ministra Maria Thereza de Assis Moura.

É certo dizer que a insegurança jurídica deve ser evitada e que a execução deve ser regida pelos pilares da efetividade e da eficiência, muito bem estampados nos artigos 4º e 8º do CPC/15; de tal sorte que a Corte Especial do STJ deve cuidar para que seus precedentes a serem fixados nos Temas 1230 e 1.285 estejam em harmonia, garantindo-se que nos casos de relativização da regra de impenhorabilidade prevista no parágrafo 2º do artigo 833 do CPC/15, também ocorra a relativização da proteção estipulada no artigo 833, X, do CPC/15.

__________

1 Disponível aqui. Acesso em 19.11.2024.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto Pós-doutorados em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015), na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019), na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022) e na Universitá degli Studi di Messina (2024/2025). Visiting Scholar no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional (2023/2024). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). MBA em Agronegócio pela USP (2025). MBA em Energia pela PUC/PR (2025). Pós Graduação Executiva em Negociação (2013) e em Mediação (2015) na Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em diversos cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (ex.: EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb e da Amcham. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Membro honorário da ABEP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).