CPC na prática

O dever de cooperação do juiz no campo da execução

Daniel Penteado de Castro tece comentários sobre o recente julgado do STJ no sentido de afirmar o poder dever do juiz em observar a aplicação do princípio da cooperação.

17/10/2024

O princípio da cooperação, previsto no art. 6 do CPC, estabelece o dever de todos os sujeitos do processo em cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

A dimensão de aludido princípio coube a doutrina e jurisprudência atribuir sua melhor interpretação, a convidar a discussões em torno da melhor leitura acerca de aludido dispositivo.

Recentemente o STJ examinou a matéria, sob o prisma do juiz, como sujeito do processo, também sujeitar-se ao espírito colaborativo com vistas a entrega da tutela jurisdicional mais efetiva:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DEVER DE COOPERAÇÃO. ART. 6º DO CPC. DIFICULDADE DE OBTER INFORMAÇÕES SOBRE A SUCESSÃO DO DE CUJOS. SOLICITAÇÃO DE AUXÍLIO DO JUÍZO. AUSÊNCIA DE PEDIDO DE DILIGÊNCIAS ESPECÍFICAS E IDÔNEAS À FINALIDADE. PARTE QUE NÃO SE DESINCUMBIU DE SEU ÔNUS.

1. Execução de título extrajudicial, ajuizada em 9/6/2008, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 10/4/2024 e concluso ao gabinete em 15/5/2024.

2. O propósito recursal consiste em decidir se o juiz tem o dever de cooperar com a parte na busca de informações sobre a parte contrária quando a primeira enfrenta dificuldades para obtê-las e sendo estas indispensáveis para o exercício de seus ônus, faculdades, poderes e deveres.

3. O dever de colaboração está expresso no art. 6º do CPC, o qual dispõe que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”, bem como presente,

implicitamente, em outros dispositivos processuais, entre os quais se destaca o art. 319, § 1º, do CPC, a prever que, na petição inicial, poderá o autor, caso não disponha, requerer ao juiz diligências necessárias à obtenção de informações acerca de nomes, prenomes, estado civil, existência de união estável, profissão, número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, endereço eletrônico, domicílio e residência do réu.

4. O dever de colaboração processual redesenha, em certa medida, o papel do juiz, o qual, mantendo-se imparcial em relação às partes e ao desfecho do processo, deve com elas colaborar para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

5. De fato, não pode o Juízo – de modo algum – substituir as partes, as quais devem empreender esforços para diligenciar e desempenhar adequadamente as suas atribuições.

6. Por outro lado, quando comprovado o empenho da parte e o insucesso das medidas adotadas, o juiz tem o dever de auxiliá-la a fim de que encontre as informações que, à disposição do Juízo, condicionem o eficaz desempenho de suas atribuições.

7. Acrescente-se que a decisão do juiz deve observar o exame acerca da proporcionalidade das diligências pretendidas pelo requerente, verificando-se a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito das medidas quando confrontados direitos fundamentais.

8. No recurso sob julgamento, não houve violação ao art. 6º do CPC, visto que o recorrente não se desincumbiu de seu ônus, pois se limitou a pleitear diligências genéricas, sem especificá-las, bem como não demonstrou a idoneidade dos pedidos para alcançar a finalidade de identificar os sucessores do de cujos a fim de incluí-los no polo passivo da demanda. 

9. Recurso especial conhecido e desprovido.

(STJ, Resp. 2142350/DF, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 1.10.2024, grifou-se)

O voto condutor bem ponderou:

“12. O art. 6º do CPC estabelece que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão demérito justa e efetiva”.

13. Com nítida inspiração no sistema germânico-europeu, o Código de Processo Civil vigente sedimenta a opção por um modelo colaborativo do processo, por meio do qual se pretende “dividir de maneira equilibrada as posições jurídicas do juiz e das partes no processo civil, estruturando-o como uma verdadeira ‘comunidade de trabalho’ (Arbeitsgemeinschaft)”, expressão atribuída a Leo Rosenberg (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil [livro eletrônico]: Pressupostos Sociais, Lógicos e Éticos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. RB-1.2).

14. Nesse cenário, é importante observar que as atribuições das partes não se confundem, cabendo a cada uma delas os respectivos ônus, poderes e deveres previstos pelo ordenamento jurídico.

15. Entretanto, todas essas atribuições são orientadas pelo dever de colaboração. O juiz, por exemplo, tem seu papel redesenhado, assumindo uma dupla posição: paritário no diálogo e assimétrico na decisão (MITIDIERO. op. cit.).

16. Inclusive, densificando o tema, Miguel Teixeira de Souza desdobrou o dever do cooperar dos Tribunais portugueses em quatro deveres essenciais, quais sejam: (i) esclarecimento, que “consiste no dever do tribunal de se esclarecer junto às partes quanto às dúvidas que tenha sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo”; (ii) prevenção, por meio do qual o Juízo deve “prevenir as partes sobre eventuais deficiências ou insuficiências de suas alegações ou pedidos”; (iii) consulta, devendo o tribunal “consultar as partes sempre que pretenda conhecer a matéria de fato ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem”; e (iv) auxílio “na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento de ônus ou deveres processuais”, sempre que uma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz desempenho de sua atribuição (GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Cognição Processual Civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na busca da verdade real. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, 2003, n. 6. p. 50-57).

17. Por oportuno, confira-se os termos do art. 7º do CPC português, que também dispõe expressamente acerca do princípio da cooperação (Lei n.º 41/2013. Diário da República n.º 121/2013, Série I de 2013-06-26), in verbis:

Artigo 7.º

Princípio da cooperação

1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. 2 - O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência. 3 - As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º. 4 - Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo. (grifou-se)

18. Por sua vez, no sistema brasileiro, além da previsão do art. 6º do CPC, há inúmeros dispositivos que impõem, sobretudo em relação à atuação do juiz, o dever de colaborar com as partes. Veja-se, entre outros: art. 9º (“não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”); art. 10 (“o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”); art. 321 (“o juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de quinze dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado”); art. 139, IX (“o juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais”); art. 772, II e III (“o juiz pode, em qualquer momento do processo: II - advertir o executado de que seu procedimento constitui ato atentatório à dignidade da justiça; III - determinar que sujeitos indicados pelo exequente forneçam informações em geral relacionadas ao objeto da execução, tais como documentos e dados que tenham em seu poder, assinando-lhes prazo razoável”); e art. 933 (“se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de cinco dias”).

19. Acrescente-se que a cooperação também pode ser provocada pelas partes, consoante dispõe o art. 319, II e § 1º, do CPC, o qual autoriza o autor, na petição inicial, a requerer ao juiz as diligências necessárias à obtenção de informações que desconheça referentes aos “nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a residência do réu”.

20. De modo bastante similar ao que prevê o código português e ao que estabelece o art. 319, II e § 1º, do código brasileiro, entende-se que a parte pode solicitar a cooperação do Juízo quando demonstrar que não consegue obter informações sem as quais não pode exercer seus poderes, ônus, faculdades e deveres.

21. Não se ignora que as partes devem empreender esforços para diligenciar e desempenhar adequadamente as suas atividades, não podendo – de modo algum – o Juízo as substituir, porquanto a ele incumbe ser imparcial.

22. Por outro lado, quando comprovado o empenho da parte e o insucesso das medidas adotadas, o juiz tem o dever de auxiliá-la a fim de que encontre as informações que, à disposição do Juízo, condicionem o eficaz desempenho de suas atribuições.

23. Veja-se que o Juízo tem deveres de esclarecimento, diálogo, auxílio e prevenção, os quais nada mais são do que meios para que se alcance uma decisão justa, a qual interessa não apenas à parte, mas ao Sistema de Justiça.

24. Acrescente-se, ainda, que a decisão do julgador não pode interferir na sua imparcialidade, bem como deve observar o exame acerca da proporcionalidade das diligências pretendidas pelo requerente, verificando-se a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito das medidas quando confrontados direitos fundamentais.

(...)” 

(STJ, Resp. 2142350/DF, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 1.10.2024, grifou-se)

A despeito do julgado acima haver mantido o conteúdo decisório de indeferimento de diligência postulada pela parte, não se pode perder de vista sua contribuição para melhor delineamento do conteúdo do princípio da cooperação, sua aplicação e observância também por parte do juiz, a resistir a expectativa de que longe de se enxergar aludido princípio como “perfumaria”, venha este ser aplicado em garantia às partes para um processo justo e de resultados.

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Colunistas

André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto Pós-doutorados em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015), na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019), na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022) e na Universitá degli Studi di Messina (2024/2025). Visiting Scholar no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional (2023/2024). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). MBA em Agronegócio pela USP (2025). MBA em Energia pela PUC/PR (2025). Pós Graduação Executiva em Negociação (2013) e em Mediação (2015) na Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em diversos cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (ex.: EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb e da Amcham. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Membro honorário da ABEP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).