CPC na prática

O polêmico julgamento do EAREsp nº 1.883.876 pela Corte Especial do STJ

O texto aborda as reformas processuais civis no Brasil, principalmente as implementadas em 2005 e 2006 e suas incorporações no CPC de 2015.

15/8/2024

As reformas de 2005 e 2006 no Brasil, com flagrante inspiração no princípio da cooperação, previram: (i) a aplicação de multa contra o devedor, e em favor do credor, que não paga voluntaria e tempestivamente o débito reconhecido em titulo executivo judicial (art. 475-J do CPC de 1973); (ii) a aplicação de multa contra o devedor, e em favor do credor, quando o manejo dos embargos à execução for considerado meramente protelatório (art. 740 do CPC de 1973); (iii) o incentivo ao uso da penhora online como meio de facilitar a constrição de dinheiro (art. 655-A do CPC de 1973); (iv) a possibilidade de o credor averbar nos registros públicos a existência do processo de execução em face do devedor (art. 615-A do CPC de 1973); (v) prêmio para o devedor no caso de honrar voluntaria e tempestivamente título executivo extrajudicial (art. 652-A do CPC de 1973); e (vi) a possibilidade de pagamento parcelado do débito (art. 745-A do CPC de 1973). E através dos arts. 600, IV, 601 e 652, parágrafo terceiro, do CPC de 1973, o legislador previu a possibilidade de o devedor ser punido quanto se quedar inerte diante de intimação para que colabore com o Poder Judiciário e apresente a lista de onde estão e quais são os seus bens sujeitos à constrição.

As reformas de 2005 e 2006, com algumas adaptações, estão todas refletidas no CPC de 2015, conforme previsões dos arts. 523, 918, 854, 828, 827, 916 e 774.  

Todos estes exemplos demonstram a preocupação do legislador brasileiro em promover a efetividade da execução, com um claro incentivo ao devedor para que colabore e cumpra espontaneamente a sua obrigação perante o credor; tornando-se a execução mais célere1.

Ademais, o sistema processual brasileiro passou a conviver mais intensamente com a tendência do uso de “medidas de coerção” na execução; a qual, sem prejuízo do princípio da responsabilidade patrimonial, se somou às técnicas tradicionais de penhora para dar um fôlego maior ao Poder Judiciário na busca da máxima eficiência da tutela executiva. São os chamados meios de coerção, os quais em conjunto com as tradicionais técnicas de penhora, buscam conferir maior efetividade à execução.

Para Andrea Proto Pisani são três as famosas escolas de adoção de técnicas de coerção para a satisfação do direito do credor: (i) a francesa, das astreintes, que consiste na aplicação de sanções pecuniárias ao devedor, cujo montante se converte em favor do credor, o qual aumenta em virtude do descumprimento da ordem do juízo pelo devedor; (ii) a germânica-austríaca, que combina a técnica de sanção pecuniária, mas devida ao Estado, com a de prisão do devedor nos casos estipulados em lei; (iii) a anglo-saxônica, fundada no contempt of court, que consiste na aplicação de sanções pecuniárias em favor do credor, e em prisão nos casos de conduta de desobediência ao juízo2.

As técnicas de coerção acima referidas estão presentes no direito brasileiro, podendo ser encontradas, de certo modo, nos arts. 77, 80, 537 e 774  do CPC, além da previsão constitucional de prisão civil para o devedor de prestação alimentícia.

Mas, mais recentemente, doutrina, jurisprudência e a própria legislação deram coro à aplicação de técnicas de coerção mais incisivas na execução por quantia certa contra devedor solvente, tudo de modo a se buscar tutelar de forma mais eficiente o crédito do exequente.

Marcelo Lima Guerra, por exemplo, com leitura mais ampla do parágrafo quinto do art. 461 do CPC de 1973, já defendia a aplicação de multa diária contra o devedor que não paga tempestivamente o débito objeto da execução por quantia certa contra devedor solvente; além de propor que a lista de bens impenhoráveis seja diminuída, tudo na linha de contribuir-se para a obtenção da tutela executiva efetiva3.

As técnicas de coerção apenas demonstram o atual espírito do processo civil, que visa à efetividade da tutela executiva, de modo a que o credor tenha, dentro de um prazo razoável e seguindo os ditames do devido processo legal, a plena realização do seu direito material.

Michele Taruffo observa ser essa uma preocupação uniforme em diversos sistemas processuais, chamando especial atenção para o modelo norte americano, no qual se privilegia o princípio da adequabilidade da execução, “pelo qual todo o direito deve encontrar atuação por meio do instrumento executivo mais idôneo e eficaz em função das específicas necessidades do caso concreto. (...). Ademais, o que parece fora de dúvida é que o sistema dos remédios executivos, devendo ser adequado, tem também de ser completo, isto é, deve assegurar sempre uma tutela executiva eficaz. É significativo, de fato, que o aparecimento de situações substanciais novas não tenha comportado a crise do sistema e a criação de lacunas de tutela executiva e tenha consubstanciado, ao invés, um portente fator de evolução, no sentido da busca e da criação de novos instrumentos executivos ou de adaptação de velhos instrumentos, mas sempre no sentido do princípio pelo qual a tutela jurisdicional deve compreender também uma eficaz tutela executiva”4.

O citado professor italiano, neste contexto de busca da plena efetividade processual executiva, destaca que as Rules 53 e 70 da Federal Rules of Civil Procedure dos Estados Unidos da América, por exemplo, preveem a possibilidade de o Poder Judiciário nomear um receiver; o qual, com a função típica de um administrador, tem o poder de gerir a empresa devedora, de modo a garantir que ela cesse determinada atividade nociva ao meio ambiente, bem como promova obras de despoluição e indenize os danos oriundos de sua atividade ofensiva à sociedade5

Este é um bom exemplo de como o moderno processo civil está intensamente preocupado em como garantir que a execução garanta e promova, dentro do prazo razoável, a devida satisfação do direito material por parte do seu legítimo titular.

Por isso, foi com bons olhos que a doutrina nacional recebeu a redação do artigo 537 do CPC, a qual, textualmente, prescreveu que a decisão que fixa a multa diária – astreintes – pode ser objeto de cumprimento provisório, condicionando-se apenas o levantamento do valor constrito após o trânsito em julgado da sentença que for favorável ao credor. 

O texto está bem claro e em plena sintonia com todo o contexto de direcionar a execução civil a um diálogo mais construtivo com os princípios da eficiência e da efetividade, tão bem estampados nas normas fundamentais da legislação processual previstas nos artigos 4º e 8º do CPC.

A técnica do cumprimento provisório da decisão que fixa a multa diária, nos termos do artigo 537 do CPC, é um mecanismo eficiente de coerção, estendendo um grande convite ao devedor para que promova o adimplemento, sob pena de onerar ainda mais sua posição processual.

Vale dizer que o STJ, no julgamento do REsp 1.200.856, em 2014, sob a vigência do Código de Processo Civil de 1973, adotou o entendimento de que a execução provisória das astreintes somente seria possível após a sentença de mérito confirmatória da decisão que fixou a multa em sede de tutela antecipada.

Entretanto, com a redação do artigo 537 do CPC, em plena harmonia com o moderno processo civil que almeja à efetividade e à eficiência da execução, o próprio STJ, no julgamento do REsp 1.958.679, modificou sua posição, passando a permitir o cumprimento provisório da decisão que fixa a multa diária, em prestígio a esse modelo de técnica de coercitiva. Veja-se trecho do julgado a relatoria da ministra Nancy Andrighi: "Portanto, é forçoso reconhecer que, à luz do novo Código de Processo Civil, não se aplica a tese firmada no julgamento do REsp 1.200.856, porquanto o novo Diploma inovou na matéria, permitindo a execução provisória da multa cominatória mesmo antes da prolação de sentença de mérito"; e “Ao permitir a execução provisória da decisão que fixa a multa mesmo antes da sentença de mérito, acentua o seu caráter coercitivo e inibitório, tornando ainda mais oneroso ou arriscado o descumprimento de determinações judiciais".

E é nesse cenário que, com preocupação, a comunidade jurídica, recebe o recente julgamento do EAREsp n. 1.883.876 pela Corte Especial do STJ, o qual, em direção oposta aos avanços até então obtidos na busca de um modelo efetivo e eficiente de execução civil, retorna ao entendimento anterior à vigência do artigo 537 do CPC, prestigiando-se a tese fixada no antigo REsp 1.200.856. O ministro Luis Felipe Salomão, inaugurando o voto divergente – e vencedor – pontuou que: "Inúmeras são as situações que podem ocorrer ao se permitir a eficácia imediata ou a exigibilidade da multa, sendo eu em todas será imposta ao devedor indevido desfalque patrimonial porque a decisão pende de confirmação por provimento final."

Nota-se, assim, que o STJ, em relevante tema envolvendo a técnica coercitiva do artigo 537 do CPC, dialogou de forma dissonante com os princípios estruturantes do CPC, notadamente no que toca à busca de efetividade e eficiência na execução civil.

__________

1 TOMMASEO, Ferruccio. Sull’Attuazione dei Diritti di Credito nell’Esecuzione in Forma Specifica. In: Studi in Onore di Enrico Tullio Liebman. Milano: Giuffrè, 1979. p. 2.462.

2 PISANI, Andrea Proto. Appunti sulla Tutela di Condana. In: Studi in Onore di Enrico Tullio Liebman. Milano: Griuffrè, 1979. p. 1.734-1.737. v. III.

3 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003. p. 150 e 165. No mesmo sentido: BAUMÖHL, Debora Ines Kram. A nova execução. São Paulo: Atlas, 2006. p. 139.

4 TARUFFO, Michele. Processo civil comparado: ensaios. Apresentação, organização e tradução de Daniel Mitidiero. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 95. 

5 TARUFFO, Michele. Processo civil comparado: ensaios. Apresentação, organização e tradução de Daniel Mitidiero. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 91. 

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto Pós-doutorados em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015), na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019), na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022) e na Universitá degli Studi di Messina (2024/2025). Visiting Scholar no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional (2023/2024). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). MBA em Agronegócio pela USP (2025). MBA em Energia pela PUC/PR (2025). Pós Graduação Executiva em Negociação (2013) e em Mediação (2015) na Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em diversos cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (ex.: EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb e da Amcham. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Membro honorário da ABEP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).