A jurisprudência defensiva de nossos Tribunais Superiores já foi objeto de muitas críticas nessa coluna CPC na Prática1. Não se pode conceber um ordenamento que privilegie o apego excessivo à forma em total detrimento ao conteúdo. O processo não pode ser um fim em si mesmo, já que é o instrumento para que o jurisdicionado atinja nossas Cortes e possa haver pacificação social.
Em artigo publicado anteriormente à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 tive oportunidade de criticar o formalismo excessivo, que afetava a segurança jurídica das partes e a própria celeridade processual.2
Entretanto, o presente artigo é para elogiar o recente entendimento da 2ª Seção do STJ, que, de forma unânime, previu a possibilidade de comprovação da indisponibilidade do sistema eletrônico em momento posterior ao ato de interposição do recurso.
Todos os usuários dos muitos sistemas de processos eletrônicos utilizados por nossos Tribunais sabem das dificuldades que muitas vezes são enfrentadas para a consulta do teor dos autos ou mesmo para o protocolo de prazos. Essas instabilidades muitas vezes não são certificadas de imediato e há sempre o risco de termos a decretação de uma intempestividade em virtude de problemas técnicos alheios às partes.
Desse modo, é de se comemorar o referido julgado que está assim ementado:
“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIVERGÊNCIA CONFIGURADA ENTRE JULGADO DA TERCEIRA E DA QUARTA TURMA DO STJ. COMPETÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO. COMPROVAÇÃO. INSTABILIDADE SISTEMA DE ELETRÔNICO. ATO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO. COMPROVAÇÃO POSTERIOR. TEMPESTIVIDADE. PRORROGAÇÃO AUTOMÁTICA DO PRAZO.
- Embargos de divergência em agravo em recurso especial opostos em 21/3/24 e conclusos ao gabinete em 16/4/24.
- O propósito recursal é dirimir suposta divergência em relação à possibilidade de comprovar a indisponibilidade do sistema eletrônico em momento posterior ao da interposição do recurso.
- A lei do processo eletrônico determina, em seu art. 10, que se o sistema do Poder Judiciário se tornar indisponível por motivo técnico, o prazo fica automaticamente prorrogado para o primeiro dia útil seguinte à resolução do problema.
- É entendimento deste STJ que a mera alegação de indisponibilidade do sistema eletrônico do Tribunal, sem a devida comprovação, mediante documentação oficial, não tem o condão de afastar o não conhecimento do recurso, em razão da impossibilidade de aferição da sua tempestividade.
- Um dos documentos idôneos a comprovar a indisponibilidade do sistema é o relatório de interrupções, que deve ser disponibilizado ao público no sítio do Tribunal, conforme disciplina o art. 10, da resolução 185 do CNJ.
- É desarrazoado exigir que, no dia útil seguinte ao último dia de prazo para interposição do recurso, a parte já tenha consigo documentação oficial que comprove a instabilidade de sistema, sendo que não compete a ela produzir nem disponibilizar este registro.
- Este Tribunal da Cidadania não pode admitir que a parte seja impedida de exercer sua ampla defesa em razão de falha técnica imputável somente ao Poder Judiciário, notadamente porque ao menos há fundamentação legal para tanto.
- A regra do art. 1.003, §6º, do CPC, trata somente dos feriados locais, não devendo ser aplicada extensivamente às situações que versem sobre instabilidade do sistema eletrônico, pois é fato novo e inesperado o qual a parte não necessariamente terá como comprovar até o dia útil seguinte.
- A fim de evitar-se uma restrição infundada ao direito da ampla defesa, necessário interpretar o art. 224, §1º do CPC de forma mais favorável à parte recorrente, que é mera vítima de eventual falha técnica no sistema eletrônico de Tribunal.
- Admite-se a comprovação da instabilidade do sistema eletrônico, com a juntada de documento oficial, em momento posterior ao ato de interposição do recurso.
- Embargos de divergência conhecidos e providos para declarar a possibilidade de comprovação da indisponibilidade do sistema eletrônico em momento posterior ao ato de interposição do recurso.” (g.n.)
(EAREsp n. 2.211.940/DF, relatora ministra Nancy Andrighi, 2a Seção, julgado em 12/6/24, DJe de 18/6/24.)
Deve-se alertar que mesmo com esse julgamento unânime, o ideal é que a parte seja precavida e não deixe para obter as cópias ou mesmo protocolizar suas petições nas últimas horas ou dias do prazo fatal, eis que os sistemas eletrônicos ainda apresentam muitas falhas e deve-se evitar dissabores e discussões processuais, que só atrasam a tramitação do feito.
Portanto, é de enaltecer tais decisões que afastam rigores formais para o julgamento do mérito dos recursos. Tais decisões ainda são em pequeno número, mas se espera que cresçam para que o STJ efetivamente exerça o seu papel de responsável por uniformizar a interpretação da lei federal.
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2 "A garantia a um processo sem armadilhas e o Novo Código de Processo Civil", in Revista Brasileira de Direito Processual, n. 90, 2015. Nesse mesmo sentido é o entendimento de Marco Félix Jobim e Fabrício de Farias Carvalho (Revista de Processo: RePro, São Paulo, v. 44, n. 298, dez. 2019): “Todavia, além da contribuição legislativa e doutrinária, que já vem cumprindo seu papel de forma eficiente, é necessária uma abertura dos tribunais ao novo modo de pensar o processo, em especial, sob o prisma da primazia do julgamento de mérito, rechaçando-se posturas jurisprudenciais defensivas e otimizando-se, mediante interpretação adequada ao modelo constitucional de processo, a aplicabilidade das regras aqui tratadas, para que as mesmas não tenham seu alcance tolhido por posições descomprometidas com um processo digno.”