CPC na prática

Faixa de isenção de imposto de renda não significa gratuidade da justiça automática - Eventual gratuidade deferida após a interposição do recurso especial não retroage

Professor Daniel Penteado de Castro analisa recente julgado do STJ que determinou que a isenção de IR não é suficiente a autorizar a gratuidade da justiça, assim como a gratuidade, uma vez deferida, não retroagirá a ponto de isentar o preparo recursal.

20/6/2024

A gratuidade da justiça prevista nos arts. 98 e seguintes do CPC e na lei 10.060/50 visa proporcionar o acesso à justiça aos necessitados, considerados, "(...) para os fins legais todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família."1

A extensão do benefício contempla não só as custas judiciárias, quando cabíveis, mas todo o custo financeiro destinado a prática do ato processual, à exemplo de honorários dos peritos (art. 3º da lei 1.060/50 e art. 98, § 1º, I a IX do CPC).

O conceito jurídico indeterminado "insuficiência de recursos" (art. 98, caput, do CPC) ou "situação econômica não lhe permita pagar" é tema de recorrente indagação na doutrina e definição de constante intepretação pela jurisprudência.

Recentemente a segunda turma do STJ decidiu que o enquadramento na faixa de isenção do imposto de renda não é critério hábil a autorizar o deferimento da assistência judiciária gratuita:

"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. HONORÁRIOS. ART. 99, § 5º, DO CPC/2015. ADVOGADO NÃO BENEFICIÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA. INTIMAÇÃO. RECOLHIMENTO EM DOBRO. ART. 1.007, § 4º, DO CPC/2015. PREPARO. AUSÊNCIA. DESERÇÃO CONFIGURADA. SÚMULA 187/STJ.

1. A jurisprudência do STJ, em conformidade com o art. 99, § 5º, do CPC/2015, firmou o entendimento de que, tratando-se de recurso que versa exclusivamente sobre o valor dos honorários de sucumbência fixados em favor do advogado da parte que formulou pedido de gratuidade da justiça, como no presente caso, tal recurso estará sujeito a preparo, ressalvada a hipótese em que o próprio advogado demonstrar que tem direito à assistência judiciária gratuita.

2. Desse modo, o benefício da gratuidade de justiça concedido à parte autora do processo principal não se estende ao seu procurador, que, nos autos, executa apenas os honorários advocatícios, salvo se comprovada por este a necessidade pessoal para auferir tal benefício, o que não ocorreu na espécie.

3. Outrossim, cumpre esclarecer que o STJ também vem rejeitando a adoção do critério de enquadramento na faixa de isenção de Imposto de Renda como critério para o deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita

4. Ademais, eventual deferimento de tal pedido após a interposição do Recurso Especial não teria efeito retroativo, não isentando a parte do recolhimento do respectivo preparo quando da interposição do apelo. Isto é, ainda que o pedido de justiça gratuita formulado no reclamo fosse deferido, o deferimento não teria o condão de afastar a deserção do recurso, o qual continuaria não sendo conhecido.

5. Nesse panorama, verifica-se que o Recurso Especial não foi oportunamente preparado e que, embora regularmente intimado para realizar recolhimento em dobro das custas processuais, a parte não o fez. Incide, no caso, o disposto na Súmula 187/STJ.

6. Agravo Interno não provido."

(STJ, AGInt. no AResp. n. 2441809/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, v.u., j. 8/04/2024, grifou-se) 

O voto condutor bem elucida: 

(...) Outrossim, cumpre esclarecer que o STJ também vem rejeitando a adoção do critério de enquadramento na faixa de isenção de Imposto de Renda como critério para o deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita Ademais, eventual deferimento de tal pedido após a interposição do Recurso Especial não teria efeito retroativo, não isentando a parte do recolhimento do respectivo preparo quando da interposição do apelo. Isto é, ainda que o pedido de justiça gratuita formulado no reclamo fosse deferido, o deferimento não teria o condão de afastar a deserção do recurso, o qual continuaria não sendo conhecido.

A propósito:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO RECOLHIMENTO DO PREPARO NO MOMENTO DA INTERPOSIÇÃO DO RECURSO. DESERÇÃO CARACTERIZADA.

GRATUIDADE DE JUSTIÇA. DEFERIMENTO TÁCITO. IMPOSSIBILIDADE.

EFEITOS EX NUNC. DECISÃO MANTIDA.

1. Ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos materiais e morais.

2. Segundo entendimento desta Corte Superior, a parte recorrente deve comprovar, no momento da interposição do recurso especial, o recolhimento das custas e do porte de remessa e retorno devidos à União, bem como dos valores locais, estipulados pelo Tribunal de origem. Precedentes.

3. A ausência de comprovação de recolhimento do preparo no ato da interposição do Recurso Especial implica sua deserção. Incidência da Súmula 187 desta Corte.

4. O benefício da gratuidade judiciária não tem efeito retroativo, de modo que a sua concessão posterior à interposição do recurso não tem o condão de isentar a parte do recolhimento do respectivo preparo. Desse modo, nem mesmo eventual deferimento da benesse nesta fase processual, descaracterizaria a deserção do recurso especial.

Precedentes.

5. Agravo interno não provido.

(AgInt no AREsp n. 2.380.943/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi,

Terceira Turma, julgado em 16/10/2023, DJe de 18/10/2023.)

Nesse panorama, verifica-se que o Recurso Especial não foi oportunamente preparado e que, embora regularmente intimado para realizar recolhimento em dobro das custas processuais, a parte não o fez. Incide, no caso, o disposto na Súmula 187/STJ.

Ausente a comprovação da necessidade de retificação a ser promovida na decisão agravada, proferida com fundamentos suficientes e em consonância com entendimento pacífico deste Tribunal, não há prover o Agravo Interno que contra ela se insurge.

Por tudo isso, nego provimento ao Agravo Interno.

É como voto.

(...)” 

Deveras, o entendimento supra citado (i) não só defende que o enquadramento na faixa de isenção de imposto de renda não é elemento suficiente a autorizar a concessão da gratuidade, (ii) mas também fundamenta, ao menos no que tange a interposição do recurso especial, que eventual gratuidade postulada no ato de interposição de recurso somente terá efeitos após o respectivo deferimento, não tendo este, todavia, o condão de retroagir ao ato processual quando da interposição de recurso. Em outras palavras, embora formulado o pedido de gratuidade da justiça quando interposto o recurso, eventual deferimento não contemplará o preparo recursal.

Respeitado entendimento em sentido contrário o julgado acima soa parcialmente equivocado. No tocante ao entendimento de que a faixa de isenção de imposto de renda não implica deferimento automático da gratuidade da justiça, tal pensar soa razoável, porquanto outros elementos de prova poderão ser cotejados com vistas a aferir a real necessidade do benefício (a exemplo de extrato de conta corrente e faturas de cartão de crédito, comummente exigido por alguns magistrados).

Todavia, entender que a gratuidade da justiça uma vez deferida, não retroagirá ao ato processual quando de seu requerimento reflete negar o próprio benefício. O CPC é claro em autorizar a concessão da gratuidade limitada a prática de “(...) algum ou a todos os atos processuais.” (art. 98, § 5º), o que significa dizer que por vezes a parte não terá capacidade financeira para a prática de um único ato processual, a exemplo do recolhimento de custas de preparo em dado recurso.

Logo, se por vezes a parte não dispõe de capacidade financeira para recolher o preparo necessário ao conhecimento do recurso a ser interposto e formula aludido pleito quando de sua tempestiva interposição, soa contraditório acolher o entendimento de que, malgrado a gratuidade venha a ser deferida, esta terá efeito após o seu deferimento, a ponto da benesse não poder ser estendida ao próprio fato gerador do pleito de gratuidade formulado, qual seja, o recolhimento das custas de preparo recursal.

Acolher tal entendimento, com a venia de sempre, significa obrigar a parte a a) formular o pleito de gratuidade antes da interposição do recurso e b) correr para sua apreciação com urgência, c) em tempo hábil para que a benesse seja examinada e deferida antes da interposição, e, desta feita, ficará segura quanto a não aplicação da pena de deserção.

__________

1 Parágrafo único do art. 2º da lei 1.060/50.

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto tem pós-doutorado em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015). Pós Doutorado em Democracia e Direitos Humanos, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019). Pós Doutorado em Direitos Sociais, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022). Pesquisador visitante no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil (2023). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). Pós Graduação Executiva nos Programas de Negociação (2013) e de Mediação (2015) da Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (destacando-se a EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, UCDB, e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil: Teams. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).