A gratuidade da justiça prevista nos arts. 98 e seguintes do CPC e na lei 10.060/50 visa proporcionar o acesso à justiça aos necessitados, considerados, "(...) para os fins legais todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família."1
A extensão do benefício contempla não só as custas judiciárias, quando cabíveis, mas todo o custo financeiro destinado a prática do ato processual, à exemplo de honorários dos peritos (art. 3º da lei 1.060/50 e art. 98, § 1º, I a IX do CPC).
O conceito jurídico indeterminado "insuficiência de recursos" (art. 98, caput, do CPC) ou "situação econômica não lhe permita pagar" é tema de recorrente indagação na doutrina e definição de constante intepretação pela jurisprudência.
Recentemente a segunda turma do STJ decidiu que o enquadramento na faixa de isenção do imposto de renda não é critério hábil a autorizar o deferimento da assistência judiciária gratuita:
"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. HONORÁRIOS. ART. 99, § 5º, DO CPC/2015. ADVOGADO NÃO BENEFICIÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA. INTIMAÇÃO. RECOLHIMENTO EM DOBRO. ART. 1.007, § 4º, DO CPC/2015. PREPARO. AUSÊNCIA. DESERÇÃO CONFIGURADA. SÚMULA 187/STJ.
1. A jurisprudência do STJ, em conformidade com o art. 99, § 5º, do CPC/2015, firmou o entendimento de que, tratando-se de recurso que versa exclusivamente sobre o valor dos honorários de sucumbência fixados em favor do advogado da parte que formulou pedido de gratuidade da justiça, como no presente caso, tal recurso estará sujeito a preparo, ressalvada a hipótese em que o próprio advogado demonstrar que tem direito à assistência judiciária gratuita.
2. Desse modo, o benefício da gratuidade de justiça concedido à parte autora do processo principal não se estende ao seu procurador, que, nos autos, executa apenas os honorários advocatícios, salvo se comprovada por este a necessidade pessoal para auferir tal benefício, o que não ocorreu na espécie.
3. Outrossim, cumpre esclarecer que o STJ também vem rejeitando a adoção do critério de enquadramento na faixa de isenção de Imposto de Renda como critério para o deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita
4. Ademais, eventual deferimento de tal pedido após a interposição do Recurso Especial não teria efeito retroativo, não isentando a parte do recolhimento do respectivo preparo quando da interposição do apelo. Isto é, ainda que o pedido de justiça gratuita formulado no reclamo fosse deferido, o deferimento não teria o condão de afastar a deserção do recurso, o qual continuaria não sendo conhecido.
5. Nesse panorama, verifica-se que o Recurso Especial não foi oportunamente preparado e que, embora regularmente intimado para realizar recolhimento em dobro das custas processuais, a parte não o fez. Incide, no caso, o disposto na Súmula 187/STJ.
6. Agravo Interno não provido."
(STJ, AGInt. no AResp. n. 2441809/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, v.u., j. 8/04/2024, grifou-se)
O voto condutor bem elucida:
(...) Outrossim, cumpre esclarecer que o STJ também vem rejeitando a adoção do critério de enquadramento na faixa de isenção de Imposto de Renda como critério para o deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita Ademais, eventual deferimento de tal pedido após a interposição do Recurso Especial não teria efeito retroativo, não isentando a parte do recolhimento do respectivo preparo quando da interposição do apelo. Isto é, ainda que o pedido de justiça gratuita formulado no reclamo fosse deferido, o deferimento não teria o condão de afastar a deserção do recurso, o qual continuaria não sendo conhecido.
A propósito:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO RECOLHIMENTO DO PREPARO NO MOMENTO DA INTERPOSIÇÃO DO RECURSO. DESERÇÃO CARACTERIZADA.
GRATUIDADE DE JUSTIÇA. DEFERIMENTO TÁCITO. IMPOSSIBILIDADE.
EFEITOS EX NUNC. DECISÃO MANTIDA.
1. Ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos materiais e morais.
2. Segundo entendimento desta Corte Superior, a parte recorrente deve comprovar, no momento da interposição do recurso especial, o recolhimento das custas e do porte de remessa e retorno devidos à União, bem como dos valores locais, estipulados pelo Tribunal de origem. Precedentes.
3. A ausência de comprovação de recolhimento do preparo no ato da interposição do Recurso Especial implica sua deserção. Incidência da Súmula 187 desta Corte.
4. O benefício da gratuidade judiciária não tem efeito retroativo, de modo que a sua concessão posterior à interposição do recurso não tem o condão de isentar a parte do recolhimento do respectivo preparo. Desse modo, nem mesmo eventual deferimento da benesse nesta fase processual, descaracterizaria a deserção do recurso especial.
Precedentes.
5. Agravo interno não provido.
(AgInt no AREsp n. 2.380.943/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi,
Terceira Turma, julgado em 16/10/2023, DJe de 18/10/2023.)
Nesse panorama, verifica-se que o Recurso Especial não foi oportunamente preparado e que, embora regularmente intimado para realizar recolhimento em dobro das custas processuais, a parte não o fez. Incide, no caso, o disposto na Súmula 187/STJ.
Ausente a comprovação da necessidade de retificação a ser promovida na decisão agravada, proferida com fundamentos suficientes e em consonância com entendimento pacífico deste Tribunal, não há prover o Agravo Interno que contra ela se insurge.
Por tudo isso, nego provimento ao Agravo Interno.
É como voto.
(...)”
Deveras, o entendimento supra citado (i) não só defende que o enquadramento na faixa de isenção de imposto de renda não é elemento suficiente a autorizar a concessão da gratuidade, (ii) mas também fundamenta, ao menos no que tange a interposição do recurso especial, que eventual gratuidade postulada no ato de interposição de recurso somente terá efeitos após o respectivo deferimento, não tendo este, todavia, o condão de retroagir ao ato processual quando da interposição de recurso. Em outras palavras, embora formulado o pedido de gratuidade da justiça quando interposto o recurso, eventual deferimento não contemplará o preparo recursal.
Respeitado entendimento em sentido contrário o julgado acima soa parcialmente equivocado. No tocante ao entendimento de que a faixa de isenção de imposto de renda não implica deferimento automático da gratuidade da justiça, tal pensar soa razoável, porquanto outros elementos de prova poderão ser cotejados com vistas a aferir a real necessidade do benefício (a exemplo de extrato de conta corrente e faturas de cartão de crédito, comummente exigido por alguns magistrados).
Todavia, entender que a gratuidade da justiça uma vez deferida, não retroagirá ao ato processual quando de seu requerimento reflete negar o próprio benefício. O CPC é claro em autorizar a concessão da gratuidade limitada a prática de “(...) algum ou a todos os atos processuais.” (art. 98, § 5º), o que significa dizer que por vezes a parte não terá capacidade financeira para a prática de um único ato processual, a exemplo do recolhimento de custas de preparo em dado recurso.
Logo, se por vezes a parte não dispõe de capacidade financeira para recolher o preparo necessário ao conhecimento do recurso a ser interposto e formula aludido pleito quando de sua tempestiva interposição, soa contraditório acolher o entendimento de que, malgrado a gratuidade venha a ser deferida, esta terá efeito após o seu deferimento, a ponto da benesse não poder ser estendida ao próprio fato gerador do pleito de gratuidade formulado, qual seja, o recolhimento das custas de preparo recursal.
Acolher tal entendimento, com a venia de sempre, significa obrigar a parte a a) formular o pleito de gratuidade antes da interposição do recurso e b) correr para sua apreciação com urgência, c) em tempo hábil para que a benesse seja examinada e deferida antes da interposição, e, desta feita, ficará segura quanto a não aplicação da pena de deserção.
__________
1 Parágrafo único do art. 2º da lei 1.060/50.