CPC na prática

Diálogos entre o Código de Processo Civil de 2015 (“CPC/15”) e a Internet

O Direito enfrenta o desafio de se adaptar às mudanças tecnológicas. O CPC/15 já contempla atos processuais digitais, garantindo publicidade e contraditório.

13/6/2024

Eugen Ehrlich sabiamente proclamou que o Direito é um mero lago em um oceano de fatos. Nesse contexto, tanto o processualista como o legislador possuem a difícil missão de sempre adaptar e/ou transformar o sistema normativo diante das intermináveis mutações fáticas. 

É nesse cenário que esse humilde e breve artigo apresentará alguns pontos de diálogo entre o universo da internet e a legislação processual, tendo-se como objetivo demonstrar que possivelmente estamos no início de uma longa caminhada para adaptar os veículos do processo civil às infinitas evoluções da tecnologia. 

O clássico processo civil, tido como ciência social prática voltada a instrumentalizar a satisfação do direito material a ser tutelado, precisa naturalmente conviver, nos tempos modernos, com uma realidade tecnológica avançada; o que exige, portanto, não só a adaptação profissional daqueles que militam nos pretórios, como também um olhar cauteloso sobre como zelar pela segurança jurídica e pelas garantias constitucionais em uma era cada vez mais regida por ferramentas virtuais.

O CPC/15, de certa forma, já entrou em vigor com previsões contemporâneas a esse inevitável movimento tecnológico. Mas, por certo, mesmo após a vigência do diploma processual, ocorreram inserções no Código inspiradas nas novas tecnologias; tudo de modo a se demonstrar que as adaptações normativas, com esse vetor de diálogo entre direito e novas tecnologias, vieram para ficar.

Um primeiro exemplo se encontra logo no art. 193 do CPC/15, que estipula que: “Os atos processuais podem ser total ou parcialmente digitais, de forma a permitir que sejam produzidos, comunicados, armazenados e validados por meio eletrônico, na forma da lei”

E, em sintonia com os pilares fundamentais da publicidade e do contraditório, o art. 194 do CPC/15 prescreve que: “Os sistemas de automação processual respeitarão a publicidade dos atos, o acesso e a participação das partes e de seus procuradores, inclusive nas audiências e sessões de julgamento, observadas as garantias da disponibilidade, independência da plataforma computacional, acessibilidade e interoperabilidade dos sistemas, serviços, dados e informações que o Poder Judiciário administre no exercício de suas funções.”

Cada vez mais, na rotina do nosso contencioso, ocorrem comunicações e práticas de atos processuais através de plataformas virtuais, sendo que esses importantes arts. 193 e 194 se mostram bem frequentes no cotidiano forense. 

Com preocupação quanto à segurança jurídica, o art. 195 do CPC/15 orienta que: “O registro de ato processual eletrônico deverá ser feito em padrões abertos, que atenderão aos requisitos de autenticidade, integridade, temporalidade, não repúdio, conservação e, nos casos que tramitem em segredo de justiça, confidencialidade, observada a infraestrutura de chaves públicas unificada nacionalmente, nos termos da lei”. E, com a mesma diretriz, é a previsão do art. 197 do CPC/15: “Os tribunais divulgarão as informações constantes de seu sistema de automação em página própria na rede mundial de computadores, gozando a divulgação de presunção de veracidade e confiabilidade.”

Para comprovar que a era da tecnologia já é um fator dominante para o modelo processual, o art. 246 do CPC/15 prescreve que a citação deve ser feita preferencialmente por meio eletrônico: “A citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, no prazo de até dois dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do CNJ.”

Aliás, o art. 246 do CPC/15 tem forte ligação com a portaria CNJ 46, a qual dita que, desde 1/3/24, grandes e médias empresas devem se cadastrar no Domicílio Judicial Eletrônico, integrante do Programa Justiça 4.0 do CNJ, que tem como finalidade centralizar as comunicações de processos em uma única plataforma digital.

O art. 270 do CPC/15, na mesma direção, estabelece que: “As intimações realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei”.

Em aplaudido prestígio ao princípio da imediatidade do julgador com a prova oral produzida em audiência, o parágrafo terceiro do art. 385 do CPC/15 possibilita a realização, por vídeo conferência, do depoimento pessoal de parte que reside em comarca diferente da que está tramitando o feito: “§ 3º O depoimento pessoal da parte que residir em comarca, seção ou subseção judiciária diversa daquela onde tramita o processo poderá ser colhido por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, o que poderá ocorrer, inclusive, durante a realização da audiência de instrução e julgamento”.

Com idêntica finalidade, para fins da prova testemunhal, é a previsão do parágrafo primeiro do art. 453: “§ 1º A oitiva de testemunha que residir em comarca, seção ou subseção judiciária diversa daquela onde tramita o processo poderá ser realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão e recepção de sons e imagens em tempo real, o que poderá ocorrer, inclusive, durante a audiência de instrução e julgamento”.

Pode-se afirmar, aliás, que a prática de audiências e julgamentos virtuais tornaram-se muito frequentes na era pós pandemia relativa ao vírus Covid-19, razão pela qual o CNJ proferiu o ato normativo 0003090-74.2022.2.00.0000, de 21/6/22, para melhor reger a realização das videochamadas.

Ainda no ambiente das provas, o art. 441 do CPC/15 expressamente admite o documento eletrônico: “Serão admitidos documentos eletrônicos produzidos e conservados com a observância da legislação específica”.

Inegável que cada vez mais a produção de documentos ocorre nos ambientes virtuais, sendo certo que, não raro, importantes negociações acabam sendo realizadas e documentadas através de plataformas digitais. 

Atento a isso, o art. 784 do CPC/15 reconhece o documento eletrônico como título executivo, salientando, em seu parágrafo 4º, que: “Nos títulos executivos constituídos ou atestados por meio eletrônico, é admitida qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei, dispensada a assinatura de testemunhas quando sua integridade for conferida por provedor de assinatura”

Nunca é demais frisar que a segurança jurídica no manejo dos atos e negócios eletrônicos é estrutura fundamental para a higidez do procedimento executivo, de tal modo que se recomenda sempre o uso de plataformas digitais que possam conferir garantia de autenticidade das assinaturas a serem inseridas nos documentos. 

Em aliança com a busca de efetividade e eficiência nos atos executivos, conforme previsões dos arts. 4º e 8º do CPC/15, as técnicas de investigação patrimonial e de penhora, na era da internet, ganharam velocidade através dos famosos sistemas da família “Jud”, implementados pelo CNJ: Sisbajud; CCS-Bacen; Infojud; Infoseg; Renajud; SerasaJud; Sniper; SREI e SNGB - Sistema Nacional de Gestão de Bens.

A notória penhora online tem minuciosa previsão no art. 854 do CPC/15 e é, sem dúvida, uma grande ferramenta para a célere busca de patrimônio do devedor no procedimento executivo: “Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao executado, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que torne indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado, limitando-se a indisponibilidade ao valor indicado na execução”.

Os breves pontos de diálogo acima elencados entre o CPC/15 e o mundo da internet não são exaustivos, tanto que as noticiadas recentes formas de as Cortes nacionais se organizarem para otimizar e realizar os seus trabalhos estão fortemente influenciadas pelos movimentos de automação e de aplicação de IA. 

A busca de um Poder Judiciário 4.0 é regida por iniciativas de gestão de dados, categorização de atos processuais e otimização de atividades. 

Segundo pesquisa do CNJ, houve um grande aumento no volume de projetos de IA no Poder Judiciário, sendo que em 2022 foram apontadas 111 iniciativas, com 53 Tribunais no país já aplicando formas avançadas de tecnologia para a prática de atos processuais. 

O Janus, como exemplo, é uma solução que automatiza tarefas repetitivas e utiliza a IA para apoiar o julgamento de pedidos de candidatura e tentar agilizar na prestação de contas eleitorais.

Outro projeto é o Gemini, que agrupa processos por similaridade de tema nas unidades de primeiro e segundo grau da Justiça do Trabalho, podendo ajudar a acelerar os julgamentos.

Por sua vez, a Sofia, assistente virtual de atendimento (chatbot) nos juizados especiais do TJ/BA, utiliza IA na triagem automática de processos.

O Amon, ainda em fase de teste, permite reconhecimento facial a partir de imagens e vídeos atendendo algumas necessidades da segurança interna do Tribunal. 

Já o Toth, em fase de estudos, permitirá análise da petição inicial do advogado buscando recomendar a classe e os assuntos processuais a serem cadastrados no PJE durante a autuação.

A maioria das iniciativas do Poder Judiciário está voltada para o levantamento, a classificação e gestão de dados. Mas, não há dúvidas de que existem estudos para implementação de IA para auxiliar na elaboração de textos jurídicos, para reconhecer visualmente detentos, para identificar classe e assunto de processo a partir dos termos da petição inicial, para identificar e categorizar processos com semelhanças e para fins de identificação de relevância e/ou repercussão geral e para otimizar movimentos processuais. 

Destaca-se, ainda, o Projeto Victor, fruto de uma parceria entre o STF e a Universidade de Brasília, o qual foi idealizado para auxiliar a Corte Suprema na análise dos recursos extraordinários, especialmente quanto à sua classificação em temas de repercussão geral de maior incidência.

No STJ, destaca-se o projeto Sócrates 2.0, concebido como uma plataforma composta por:

  1. Sistema de gerenciamento de normas;
  2. Sistema de gerenciamento de controvérsias;
  3. Sistema de gerenciamento de modelos;
  4. Pesquisa automática de jurisprudência;
  5. Pesquisa automática de doutrina; 
  6. Sistema de gerenciamento de acervo por controvérsias.

Como visto, a era da tecnologia veio para transformar a rotina das atividades forenses, sendo que pontos de conexão entre o CPC/15 e o universo da internet naturalmente não se limitam aos humildes e breves exemplos acima elencados. 

E em um momento de celebração de aniversário do Marco Civil da Internet, sem prejuízo da importância magistral da lei 12.965/14 como um todo, destaca-se, para fins da instrumentalização dos atos processuais, a fundamental observância do art. 3º, V, desta norma: “Preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas”

Naturalmente, por fim, a evolução normativa do sistema processual prosseguirá, ainda que com atrasos, sempre buscando-se se adaptar às velozes mutações da tecnologia; em mais uma demonstração de que o direito, claro, é um mero lago em um oceano de fatos.

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Colunistas

André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto Pós-doutorados em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015), na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019), na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022) e na Universitá degli Studi di Messina (2024/2025). Visiting Scholar no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional (2023/2024). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). MBA em Agronegócio pela USP (2025). MBA em Energia pela PUC/PR (2025). Pós Graduação Executiva em Negociação (2013) e em Mediação (2015) na Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em diversos cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (ex.: EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb e da Amcham. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Membro honorário da ABEP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).