Como se sabe, o art. 196 da Constituição Federal (CF) estabelece "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
Apesar de o direito à saúde estar assegurado na CF como um direito de todos e como um dever do Estado, a realidade brasileira é bem diferente. Aquele ou aquela que precisam de medicamentos e não têm como arcar com os custos do tratamento de uma determinada doença muitas vezes têm que recorrer ao Poder Judiciário para fazer valer o que está disposto no art. 196 da CF.
Tema importante que envolve esta triste realidade é a questão dos honorários advocatícios arbitrados nas demandas que devem ser propostas contra o Estado para condená-lo ao cumprimento da obrigação de fornecer os medicamentos necessários para manutenção da saúde do cidadão e assim cumprir de maneira forçada o que está no art. 196 da CF.
É o advogado, que exerce função indispensável à administração da justiça (CF, art. 133), quem está na linha de frente do combate à ineficiência do Estado em garantir o acesso à saúde. É o advogado que acolhe o enfermo em um dos momentos mais difíceis da vida dele, ajuda a reunir todos os documentos necessários (laudos, prescrições médicas, exames, declarações de profissionais de saúde, comprovantes de situação de necessidade extrema, listas de medicamentos publicadas pelo SUS e pela ANVISA, etc.) e vai ao Poder Judiciário para lutar para garantir o que o art. 196 da CF prometeu: o direito à saúde e o dever de o Estado assegurar isso para todos.
Para exercer esta função indispensável à administração da justiça, o advogado precisa ter uma remuneração digna e compatível com a relevância do seu papel na sociedade. Se o Estado cumprisse a Constituição, não seria necessário o seu trabalho. Assim, tratar do tema da remuneração do advogado é algo crucial e não deve ser deixado em segundo plano.
O tema dos honorários advocatícios está disciplinado pelo art. 85, do Código de Processo Civil (CPC), que estabelece em seu caput o seguinte: "A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor".
Os critérios de fixação dos honorários do advogado estão no § 2º do mesmo dispositivo, caso exista proveito econômico no processo. Confira-se: “§ 2º Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, atendidos: I - o grau de zelo do profissional; II - o lugar de prestação do serviço; III - a natureza e a importância da causa; IV - o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço”.
Caso o proveito econômico obtido no processo seja inestimável ou o valor a ser recebido pelo vencedor seja irrisório ou, ainda, quando o valor da demanda seja muito baixo, o § 8º do art. 85 preceitua que "o juiz fixará o valor dos honorários por apreciação equitativa, observando o disposto nos incisos do § 2º".
Muita controvérsia existe em torno da interpretação do § 8º do art. 85 do CPC para definir o que é "valor inestimável" ou "valor irrisório" de uma demanda, que autorizariam o juiz a fixar os honorários fora das balizas do § 2º do mesmo dispositivo legal que impõe ao magistrado arbitrar honorários advocatícios em valores entre 10% e 20% do valor da causa.
Por isso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o interpretar o § 8º do art. 85 do CPC, fixou a seguinte tese, como Tema Repetitivo n. 1.076:
"i) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados. É obrigatória nesses casos a observância dos percentuais previstos nos §§ 2º ou 3º do artigo 85 do CPC - a depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa. ii) Apenas se admite arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo".
No que diz respeito às demandas que versam sobre a condenação do réu ao fornecimento de medicamentos para o autor como modo de assegurar o cumprimento do art. 196 da CF, o STJ decidiu que deveria ser aplicado o § 8º do art. 85 do CPC, por se entender que o benefício alcançado por aquele que recebe os medicamentos seria “inestimável”. Confira-se, a propósito, a ementa do julgado em questão:
"PROCESSUAL CIVIL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. DIRETO À SAÚDE. VALOR INESTIMÁVEL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ARBITRAMENTO. EQUIDADE.
1. Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC (Enunciado Administrativo n. 3).
2. O STJ, no julgamento do Tema 106, firmou o entendimento de que a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: (i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; (iii) existência de registro na ANVISA do medicamento.
3. Não se pode concluir que a exigência da comprovação da hipossuficiência financeira, como requisito para o Poder Público fornecer gratuitamente a medicação prescrita ao autor, leve ao reconhecimento de um estimável proveito econômico.
4. A obrigação de fazer imposta ao Estado, em tais casos, dá-se em caráter excepcional, somente se preenchidos todos os critérios estabelecidos no recurso repetitivo, sendo certo que as demandas dessa natureza objetivam a preservação da vida e/ou da saúde garantidas constitucionalmente, bens cujo valor é inestimável, o que justifica a fixação de honorários por equidade.
5. Agravo interno desprovido.
(AgInt no REsp n. 1.881.171/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 23/2/2021, DJe de 9/3/2021, grifos nossos)"
Ocorre que o entendimento acima transcrito fecha os olhos para uma realidade importante que é a dos preços dos medicamentos e tratamentos envolvidos. É certo que a preservação da vida e da saúde têm valor inestimável, mas os tratamentos e remédios utilizados para estas finalidades têm valores muito bem definidos. Nesse caso, os honorários advocatícios devem ser fixados com base no § 2º do art. 85, do CPC, ou no § 3º, caso o réu seja a Fazenda Pública.
Foi exatamente por isso que, recentemente, em junho de 2023, o STJ mudou de opinião e determinou que fossem levados em consideração os valores dos medicamentos para arbitramento dos honorários advocatícios. Confira-se:
"AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ARBITRAMENTO. EQUIDADE. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTE DA CORTE ESPECIAL.
1. Trata-se, na origem, de ação proposta por portador de adenocarcinoma de próstata contra o Estado de São Paulo, objetivando o fornecimento do medicamento XTANDI 40ing (ENZALUTAMIDA), na quantidade de cento e vinte comprimidos por mês, por tempo indeterminado. Foi dado à causa o valor de R$ 148.499,04 (cento e quarenta e oito mil, quatrocentos e noventa e nove reais e quatro centavos - válidos para novembro de 2017), que corresponderia ao valor do tratamento médico prescrito em favor da parte autora, pelo período de 12 (doze) meses.
2. O pedido foi julgado procedente para condenar a ré a fornecer o medicamento pleiteado na inicial, por seu respectivo princípio ativo, conforme prescrição médica, sem preferências por marcas, e enquanto durar o tratamento. A ré foi condenada, ainda, ao pagamento de honorários fixados em R$ 1.000 reais.
3. A Apelação da parte autora para majorar os honorários advocatícios não foi provida. Ao exercer o juízo de retratação, em virtude do julgamento do tema 1.076 pelo STJ, o Tribunal de origem manteve o aresto vergastado pelos seguinte fundamentos: "In casu, infere-se de singela leitura do v. acórdão de fls. 188/195, que, no caso concreto, a fixação dos honorários advocatícios por equidade não conflita com os requisitos estabelecidos pelo Tema 1.076 do STJ que, modificando orientação anterior, passou a entender que o arbitramento da verba honorária por equidade não se aplica à condenação de valor excessivo e que o artigo 85, § 8º, da lei adjetiva de 2015, seria utilizado apenas em caráter excepcional, contudo, a mesma Corte assentou entendimento no sentido de que nas ações em que se busca o fornecimento de medicamentos de forma gratuita, os honorários sucumbenciais podem ser arbitrados por apreciação equitativa, tendo em vista que o proveito econômico, em regra, é inestimável".
4. A irresignação prospera porque a Corte Especial do STJ, em hipótese análoga, de demanda voltada ao custeio de medicamentos para tratamento de saúde, entendeu que a fixação da verba honorária com base no art. 85, §8º, do CPC/2015 estaria restrita às causas em que não se vislumbra benefício patrimonial imediato, como, por exemplo, as de estado e de direito de família: AgInt nos EDcl nos EREsp 1.866.671/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, DJe de 27.9.2022.
5. Recurso Especial provido, com o retorno dos autos à Corte de origem para fixação do valor da verba honorária.
(REsp n. 2.060.919/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 28/6/2023, grifos nossos.)".
Esta última decisão do STJ, cuja ementa está acima transcrita, parece ser a mais acertada, tendo em vista que há proveito econômico evidente (R$ 148.499,04), uma vez que os valores dos medicamentos não podem ser solenemente ignorados. O advogado tem responsabilidade para reunir todos os documentos necessários para garantir os direitos de seu cliente e o acolhe em um dos momentos mais difíceis da sua vida, como já dito, sendo muitas vezes a sua última esperança. É ele que tranquiliza o jurisdicionado e seus familiares e mantém acesa a chama da credibilidade na justiça. É função, como diz a própria Constituição Federal, indispensável a administração da justiça. No caso concreto acima descrito, o advogado receberia menos de um salário mínimo por aproximadamente 5 (cinco) anos de trabalho, caso não fosse proferida a decisão do STJ de 06.06.2023 acima ementada. Pergunta-se: seria justo?