CPC na prática

Honorários advocatícios e fornecimento de medicamentos

Professor André Pagani de Souza escreve sobre honorários advocatícios em ação que pede medicamentos.

3/8/2023

Como se sabe, o art. 196 da Constituição Federal (CF) estabelece "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Apesar de o direito à saúde estar assegurado na CF como um direito de todos e como um dever do Estado, a realidade brasileira é bem diferente. Aquele ou aquela que precisam de medicamentos e não têm como arcar com os custos do tratamento de uma determinada doença muitas vezes têm que recorrer ao Poder Judiciário para fazer valer o que está disposto no art. 196 da CF.

Tema importante que envolve esta triste realidade é a questão dos honorários advocatícios arbitrados nas demandas que devem ser propostas contra o Estado para condená-lo ao cumprimento da obrigação de fornecer os medicamentos necessários para manutenção da saúde do cidadão e assim cumprir de maneira forçada o que está no art. 196 da CF.

É o advogado, que exerce função indispensável à administração da justiça (CF, art. 133), quem está na linha de frente do combate à ineficiência do Estado em garantir o acesso à saúde. É o advogado que acolhe o enfermo em um dos momentos mais difíceis da vida dele, ajuda a reunir todos os documentos necessários (laudos, prescrições médicas, exames, declarações de profissionais de saúde, comprovantes de situação de necessidade extrema, listas de medicamentos publicadas pelo SUS e pela ANVISA, etc.) e vai ao Poder Judiciário para lutar para garantir o que o art. 196 da CF prometeu: o direito à saúde e o dever de o Estado assegurar isso para todos.

Para exercer esta função indispensável à administração da justiça, o advogado precisa ter uma remuneração digna e compatível com a relevância do seu papel na sociedade. Se o Estado cumprisse a Constituição, não seria necessário o seu trabalho. Assim, tratar do tema da remuneração do advogado é algo crucial e não deve ser deixado em segundo plano.

O tema dos honorários advocatícios está disciplinado pelo art. 85, do Código de Processo Civil (CPC), que estabelece em seu caput o seguinte: "A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor".

Os critérios de fixação dos honorários do advogado estão no § 2º do mesmo dispositivo, caso exista proveito econômico no processo. Confira-se: “§ 2º Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, atendidos: I - o grau de zelo do profissional; II - o lugar de prestação do serviço; III - a natureza e a importância da causa; IV - o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço”.

Caso o proveito econômico obtido no processo seja inestimável ou o valor a ser recebido pelo vencedor seja irrisório ou, ainda, quando o valor da demanda seja muito baixo, o § 8º do art. 85 preceitua que "o juiz fixará o valor dos honorários por apreciação equitativa, observando o disposto nos incisos do § 2º".

Muita controvérsia existe em torno da interpretação do § 8º do art. 85 do CPC para definir o que é "valor inestimável" ou "valor irrisório" de uma demanda, que autorizariam o juiz a fixar os honorários fora das balizas do § 2º do mesmo dispositivo legal que impõe ao magistrado arbitrar honorários advocatícios em valores entre 10% e 20% do valor da causa.

Por isso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o interpretar o § 8º do art. 85 do CPC, fixou a seguinte tese, como Tema Repetitivo n. 1.076:

"i) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados. É obrigatória nesses casos a observância dos percentuais previstos nos §§ 2º ou 3º do artigo 85 do CPC - a depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa. ii) Apenas se admite arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo".

No que diz respeito às demandas que versam sobre a condenação do réu ao fornecimento de medicamentos para o autor como modo de assegurar o cumprimento do art. 196 da CF, o STJ decidiu que deveria ser aplicado o § 8º do art. 85 do CPC, por se entender que o benefício alcançado por aquele que recebe os medicamentos seria “inestimável”. Confira-se, a propósito, a ementa do julgado em questão:

"PROCESSUAL CIVIL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. DIRETO À SAÚDE. VALOR INESTIMÁVEL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ARBITRAMENTO. EQUIDADE.

1. Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC (Enunciado Administrativo n. 3).

2. O STJ, no julgamento do Tema 106, firmou o entendimento de que a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: (i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; (iii) existência de registro na ANVISA do medicamento.

3. Não se pode concluir que a exigência da comprovação da hipossuficiência financeira, como requisito para o Poder Público fornecer gratuitamente a medicação prescrita ao autor, leve ao reconhecimento de um estimável proveito econômico.

4. A obrigação de fazer imposta ao Estado, em tais casos, dá-se em caráter excepcional, somente se preenchidos todos os critérios estabelecidos no recurso repetitivo, sendo certo que as demandas dessa natureza objetivam a preservação da vida e/ou da saúde garantidas constitucionalmente, bens cujo valor é inestimável, o que justifica a fixação de honorários por equidade.

5. Agravo interno desprovido.

(AgInt no REsp n. 1.881.171/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 23/2/2021, DJe de 9/3/2021, grifos nossos)"

Ocorre que o entendimento acima transcrito fecha os olhos para uma realidade importante que é a dos preços dos medicamentos e tratamentos envolvidos. É certo que a preservação da vida e da saúde têm valor inestimável, mas os tratamentos e remédios utilizados para estas finalidades têm valores muito bem definidos. Nesse caso, os honorários advocatícios devem ser fixados com base no § 2º do art. 85, do CPC, ou no § 3º, caso o réu seja a Fazenda Pública.

Foi exatamente por isso que, recentemente, em junho de 2023, o STJ mudou de opinião e determinou que fossem levados em consideração os valores dos medicamentos para arbitramento dos honorários advocatícios. Confira-se:

"AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ARBITRAMENTO. EQUIDADE. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTE DA CORTE ESPECIAL.

1. Trata-se, na origem, de ação proposta por portador de adenocarcinoma de próstata contra o Estado de São Paulo, objetivando o fornecimento do medicamento XTANDI 40ing (ENZALUTAMIDA), na quantidade de cento e vinte comprimidos por mês, por tempo indeterminado. Foi dado à causa o valor de R$ 148.499,04 (cento e quarenta e oito mil, quatrocentos e noventa e nove reais e quatro centavos - válidos para novembro de 2017), que corresponderia ao valor do tratamento médico prescrito em favor da parte autora, pelo período de 12 (doze) meses.

2. O pedido foi julgado procedente para condenar a ré a fornecer o medicamento pleiteado na inicial, por seu respectivo princípio ativo, conforme prescrição médica, sem preferências por marcas, e enquanto durar o tratamento. A ré foi condenada, ainda, ao pagamento de honorários fixados em R$ 1.000 reais.

3. A Apelação da parte autora para majorar os honorários advocatícios não foi provida. Ao exercer o juízo de retratação, em virtude do julgamento do tema 1.076 pelo STJ, o Tribunal de origem manteve o aresto vergastado pelos seguinte fundamentos: "In casu, infere-se de singela leitura do v. acórdão de fls. 188/195, que, no caso concreto, a fixação dos honorários advocatícios por equidade não conflita com os requisitos estabelecidos pelo Tema 1.076 do STJ que, modificando orientação anterior, passou a entender que o arbitramento da verba honorária por equidade não se aplica à condenação de valor excessivo e que o artigo 85, § 8º, da lei adjetiva de 2015, seria utilizado apenas em caráter excepcional, contudo, a mesma Corte assentou entendimento no sentido de que nas ações em que se busca o fornecimento de medicamentos de forma gratuita, os honorários sucumbenciais podem ser arbitrados por apreciação equitativa, tendo em vista que o proveito econômico, em regra, é inestimável".

4. A irresignação prospera porque a Corte Especial do STJ, em hipótese análoga, de demanda voltada ao custeio de medicamentos para tratamento de saúde, entendeu que a fixação da verba honorária com base no art. 85, §8º, do CPC/2015 estaria restrita às causas em que não se vislumbra benefício patrimonial imediato, como, por exemplo, as de estado e de direito de família: AgInt nos EDcl nos EREsp 1.866.671/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, DJe de 27.9.2022.

5. Recurso Especial provido, com o retorno dos autos à Corte de origem para fixação do valor da verba honorária.

(REsp n. 2.060.919/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 28/6/2023, grifos nossos.)".

Esta última decisão do STJ, cuja ementa está acima transcrita, parece ser a mais acertada, tendo em vista que há proveito econômico evidente (R$ 148.499,04), uma vez que os valores dos medicamentos não podem ser solenemente ignorados. O advogado tem responsabilidade para reunir todos os documentos necessários para garantir os direitos de seu cliente e o acolhe em um dos momentos mais difíceis da sua vida, como já dito, sendo muitas vezes a sua última esperança. É ele que tranquiliza o jurisdicionado e seus familiares e mantém acesa a chama da credibilidade na justiça. É função, como diz a própria Constituição Federal, indispensável a administração da justiça. No caso concreto acima descrito, o advogado receberia menos de um salário mínimo por aproximadamente 5 (cinco) anos de trabalho, caso não fosse proferida a decisão do STJ de 06.06.2023 acima ementada. Pergunta-se: seria justo?

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto tem pós-doutorado em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015). Pós Doutorado em Democracia e Direitos Humanos, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019). Pós Doutorado em Direitos Sociais, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022). Pesquisador visitante no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil (2023). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). Pós Graduação Executiva nos Programas de Negociação (2013) e de Mediação (2015) da Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (destacando-se a EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, UCDB, e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil: Teams. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).