CPC na prática

O descabimento de limitação temporal na aplicação de medida coercitiva atípica – Art. 139, IV, do CPC

Professor Daniel Penteado de Castro, tece considerações sobre o entendimento recente do STJ referente ao afastamento de limitação temporal das medidas executivas atípicas (art. 139, IV, do CPC).

6/10/2022

Não é novidade as polêmicas que gravitam em torno da inteligência do art. 139, VI, do CPC, ao prever o poder do juiz para, "(...) determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto obrigação pecuniária".

Algumas balizas haviam sido traçadas, como (i) tais medidas devem ser aplicadas subsidiariamente, condicionadas a existência de indícios de que exista patrimônio penhorável, (ii) além da necessidade de o magistrado aplicá-las com observância dos princípios da proporcionalidade, motivação e contraditório. Nos referimos ao julgamento do Recurso Especial n. 189.6421/SP.

E, tal qual anotado pelo colega Elias Marques de Medeiros Neto, noutra oportunidade nesta coluna, quando do julgamento do AgInt no Resp. n. 179.9638/SP, a terceira turma do STJ fixou como requisitos para aplicação dat. 139, IV, (i) verificada a existência de indício de que devedor possui patrimônio expropriável, (ii) a decisão deve ser fundamentada cm base nas especificidades constatadas, (iii) a utilização subsidiária da medida atípica, esgotadas as diligências promovidas para a satisfação do crédito e (iv) há de se observar o contraditório e a proporcionalidade.

Ainda, na proposta de afetação do Recurso Especial n. 1.955.539/SP (canalizada no Tema Repetitivo n. 1.137/STJ), com vistas a se formar precedente obrigatório, a Segunda Seção do STJ decidirá sobre a seguinte controvérsia: “Definir se, com esteio no art. 139, IV, do CPC/15, é possível, ou não, o magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade da medida, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos.” Por fim, a questão também será examinada pelo STJ no julgamento da ADI n. 5941, sob o prisma de exame da constitucionalidade do art. 139, IV, do CPC, em especial na proposta apresentada pela Procuradoria Geral da República,  para que sua aplicação seja subsidiária  e com o escopo de possibilitar medidas de natureza patrimonial, evitando=se a efetivação de medidas que possam gerar restrições de direito.1

A par das infindáveis discussões que gravitam em torno do tema, recentemente a terceira turma do STJ posicionou-se quanto eventual limitação temporal quando da aplicação da medida coercitiva:

"CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. HABEAS CORPUS. DEVOLUÇÃO DE PASSAPORTE APREENDIDO HÁ DOIS ANOS COMO MEDIDA COERCITIVA ATÍPICA PARA COMPELIR DEVEDOR A ADIMPLIR OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA. DEFICIENTE INSTRUÇÃO DO HABEAS CORPUS, QUE NÃO RETRATA A REALIDADE DOS FATOS PROCESSUAIS. VIOLAÇÃO AOS DEVERES DE BOA-FÉ, ETICIDADE E COOPERAÇÃO. INDISPENSABILIDADE DA INSTRUÇÃO ADEQUADA DO WRIT. ÔNUS DO PACIENTE. AUSÊNCIA DE ESGOTAMENTO DAS MEDIDAS EXECUTIVAS TÍPICAS. INUTILIDADE, INEFICÁCIA, DESNECESSIDADE OU CARÁTER PENALIZADOR DA MEDIDA. ÔNUS PROBATÓRIO DO DEVEDOR. POSSIBILIDADE DE PENHORA DE COTAS SOCIAIS DAS PESSOAS JURÍDICAS DE QUE É SÓCIO O DEVEDOR. INEXISTÊNCIA DE PROVA DA EXPRESSÃO ECONÔMICA, DESEMBARAÇO E SUSCETIBILIDADE DE PENHORA. PENHORABILIDADE NÃO DEDUTÍVEL DOS ELEMENTOS EXISTENTES, SOBRETUDO DIANTE DA EXISTÊNCIA DE DIVERSAS OUTRAS EXECUÇÕES FISCAIS E TRABALHISTAS. ÔNUS DA PROVA DO DEVEDOR. OFERECIMENTO À PENHORA DE RENDIMENTOS DE APOSENTADORIA E PENSÃO. INSIGNIFICÂNCIA NO CONTEXTO DA DÍVIDA, QUE, DESSE MODO, SOMENTE SERIA ADIMPLIDA APÓS MAIS DE CINCO DÉCADAS. IMPOSSIBILIDADE DE DEVOLUÇÃO DO PASSAPORTE SOB ESSE FUNDAMENTO. MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS. MANUTENÇÃO DA PATRIMONIALIDADE DA EXECUÇÃO. INCÔMODOS PESSOAIS AO DEVEDOR QUE O CONVENÇAM A ADIMPLIR E NÃO SOFRER ESSAS RESTRIÇÕES. POSSIBILIDADE. DURAÇÃO DA RESTRIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE PRÉ-FIXAÇÃO. MEDIDA QUE DEVE PERDURAR PELO TEMPO NECESSÁRIO PARA VERIFICAÇÃO DA EFETIVIDADE DA MEDIDA.

1- O propósito do presente habeas corpus é definir se é manifestamente ilegal ou teratológico o acórdão que indeferiu o pedido de devolução do passaporte do paciente, apreendido há dois anos como medida coercitiva  atípica destinada a vencer a sua renitência em adimplir obrigação de pagar quantia certa decorrente de condenação em honorários advocatícios sucumbenciais, cuja execução se iniciou há dezessete anos.

2- Conquanto não admita ampla dilação probatória, o habeas corpus deve ser suficientemente instruído pelo paciente, a quem cabe, em homenagem aos deveres de boa-fé, eticidade e cooperação, colacionar toda a prova documental necessária à compreensão da controvérsia e à adequada reconstrução dos fatos relevantes ao julgamento.

3- Ao paciente que pretende a retomada de seu passaporte apreendido como medida coercitiva atípica, impõe-se o ônus de provar a inexistência de esgotamento das medidas executivas típicas, de índole essencialmente patrimoniais e expropriatórias, bem como que a medida coercitiva atípica deferida seria inútil, ineficaz, desnecessária ou se revestiria de mera penalidade pelo inadimplemento da obrigação.

4- Descabe cogitar a possibilidade de penhora de cotas sociais das pessoas jurídicas de que o paciente é sócio, como razão suficiente para a devolução do passaporte do devedor, sem que existam evidências de que as referidas cotas possuem expressão econômica, estão livres e poderão ser objeto de penhora válida, ônus que igualmente cabe ao paciente.

5- O oferecimento à penhora de parte dos rendimentos advindos de aposentadoria e pensão por morte recebidos pelo devedor somente será relevante para o fim de viabilizar o desbloqueio de seu passaporte se os valores obtidos a partir dessa modalidade executiva forem suficientes para o adimplemento integral da obrigação em tempo razoável.

6- As medidas coercitivas atípicas não modificam a natureza patrimonial da execução, mas, ao revés, servem apenas para causar ao devedor determinados incômodos pessoais que o convençam ser mais vantajoso adimplir a obrigação do que sofrer as referidas restrições impostas pelo juiz, de modo que a retenção do passaporte do devedor deve perdurar pelo tempo necessário para que se verifique, na prática, a efetividade da medida e a sua capacidade de dobrar a renitência do devedor, sobretudo quando existente indícios de ocultação de patrimônio.

7- Na hipótese em exame, os elementos obtidos neste habeas corpus e nos demais processos e recursos que envolveram a paciente e os demais co-executados que foram submetidos ao exame desta Corte demonstram que: (i) trata-se de dívida de honorários advocatícios sucumbenciais inadimplida desde 2006, ou seja, há mais de dezessete anos; (ii) o esgotamento das medidas executivas típicas está suficientemente evidenciado; (iii) há indícios suficientes de ocultação patrimonial da paciente e dos demais co-executados, sua filha e seu genro; (iv) é absolutamente razoável inferir que as cotas sociais das pessoas jurídicas de que a paciente é sócia não possuem expressão econômica, não estão livres e não são suscetíveis de penhora, inclusive diante da existência de inúmeras outras  execuções fiscais e trabalhistas; (v) os rendimentos de aposentadoria e pensão oferecidos à penhora são insignificantes diante do valor da dívida, que, nesse contexto, somente seria quitada daqui a mais de cinquenta anos; (vi) o oferecimento de bem à penhora após dezesseis anos de execução infrutífera, ainda que claramente insignificante diante de seu contexto patrimonial e nitidamente insuficiente para adimplir a dívida, é evidência de que a retenção do passaporte do devedor está lhe causando o necessário incômodo pretendido por ocasião do deferimento da medida coercitiva atípica.

8- Ordem denegada."

(STJ, HC n. 711.194/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, maioria de votos, j. 21.06.2022, grifou-se)

Inicialmente ao enfrentar a questão, o relator designado, Ministro Marco Aurélio Belizze, concedeu a ordem de habeas corpus, em síntese:

"(...) Tendo em vista a questão controvertida nos autos, importante relembrar que o entendimento sedimentado por esta Corte Superior é no sentido de ser admissível, ao menos em tese, a impetração de habeas corpus para impugnar decisão que determina suspensão ou apreensão de passaporte, pois é medida que limita o direito de ir e vir do devedor e pode, no caso concreto, significar constrangimento ilegal e arbitrário.

(...)

Em face disso, constata-se que, na espécie, a manutenção da medida coercitiva se mostra abusiva e desproporcional, pois o voto condutor do acórdão a quo manteve a medida constritiva ao argumento de não ser razoável que a devedora realize viagens ao exterior à custa da efetividade do processo e de não estar comprovada a necessidade da sua permanência nos Estado Unidos.

Entretanto, como bem salientou o voto vencido do aresto estadual, a medida foi implementada há aproximadamente 2 (dois) anos e a paciente teria oferecido o percentual de 30% de sua aposentadoria para abatimento proporcional do débito, o qual, ainda que longevo, demonstra uma conduta inversa àquelas conhecidas dos devedores recalcitrantes.

Assim, não ficou devidamente comprovado que, com o esgotamento dos meios tradicionais de satisfação do crédito, a executada deixou de indicar bens à penhora ou que há indícios de ocultação de patrimônio.

Corroborando essa tese, a exequente Mirian Elisa Tenório compareceu espontaneamente aos autos (e-STJ, fls. 137-173) informando que a paciente é empresária, sócia da Galetti e Bocci Promoção de Venda Ltda., bem como possui participação societária em outras 4 (quatro) sociedades empresárias.

Desse modo, afirma que "as alegações apresentadas no presente remédio de habeas corpus, sob o manto da legalidade, na verdade têm o nítido propósito de impedira justa aplicação do Direito e da Justiça, portanto afrontam o dever ético e de boa-fé. A Paciente se mantém em plena atividade, explora negócios comerciais lucrativos, ou seja, não possui somente os benefícios previdenciários apontados pelos Impetrantes, tampouco necessita da ajuda de “terceiros” para sobreviver" (e-STJ, fl. 138).

Desse modo, a própria exequente confirma que não houve o exaurimento prévio dos meios típicos de satisfação do crédito exequendo, haja vista a possibilidade de, ao menos em tese, serem expropriadas as referidas cotas sociais, conforme procedimento estabelecido no art. 861 do CPC/2015.

Por conseguinte, manter o bloqueio do passaporte no caso vertente se mostra ilegal, já que as medidas executivas atípicas devem ser adotadas com certa  cautela, observando-se, além daquelas diretrizes delineadas por esta Corte e acima citadas, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, para não configurar uma medida extremamente gravosa e que não consiga alcançar o fim que se pretende.

Assim, não é possível que os meios executivos atípicos sejam impostos por tempo indeterminado sem a demonstração de uma justificativa plausível, e que se revele apenas como uma penitência imposta ao devedor sem a potencialidade de coagi-lo ao adimplemento.

Esclareça-se, ainda, que nada impede que o Juízo da execução determine a implementação de novas medidas constritivas (típicas e atípicas), caso vislumbre a presença de novos elementos capazes de justificar a sua adoção, tomando-se como base as diretivas traçadas acima.

Por fim, importante deixar claro que não se descura da afetação do Tema 1.137/STJ à Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça para fixação de precedente vinculante, no qual se delimitou a seguinte questão para julgamento, nestes termos: 

Definir se, com esteio no art. 139, IV, do CPC/15, é possível, ou não, o magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade da medida, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos.

Destaca-se que, a despeito de ter sido determinada a suspensão do processamento de todos os feitos e recursos pendentes que versem sobre idêntica matéria e que tramitem no território nacional, essa indicação não impede a análise de questões urgentes e flagrantemente ilegais, como é o caso dos autos. Diante dessas considerações, concedo, de ofício, a ordem de habeas corpus, nos termos da fundamentação supra.

Fica prejudicado o pedido de reconsideração.

É como voto."

(STJ, HC n. 711.194/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, maioria de votos, j. 21.06.2022, grifou-se)

Todavia, prevaleceu a divergência instaurada pela Ministra Nancy Andrighi, cujo voto foi acompanhado pelos demais integrantes da turma julgadora:

"(...)

06) Também se colhe dos autos do RHC 128.327/SP que a decisão interlocutória que determinou o bloqueio dos passaportes de todos os executados (da paciente, de ANDREA e de HERMANN) ocorreu no ano de 2019 (isto é, mais de 14 anos após o início do cumprimento de sentença) e, ainda que sucintamente, está lastreada na ausência de oferecimento de bens passíveis de penhora pelos executados.

(...)

14) De todo modo, não se pode olvidar que, de fato, a paciente VANDA e a filha ANDREA constam como empresárias do ramo de petróleo e combustível, como atestam os documentos que somente foram juntados pela exequente (fls. 137/175, e-STJ). E também é correto dizer que, de fato, há inúmeras execuções fiscais contra elas ajuizadas (fls. 54/63, e-STJ).

15) De outro lado, examinando-se o teor do HC 637.802/SP e a petição inicial do habeas corpus em julgamento, impetrado quase um ano depois daquele primeiro, percebe-se não existir o apontamento de nenhuma circunstância fática que justificasse uma nova impetração, nem mesmo o lapso temporal transcorrido desde a apreensão.

16) A esse respeito, como orienta a jurisprudência desta Corte, "a mera repetição de fundamentos de fato e de direito já ventilados em idêntico habeas corpus (...) implica em manifesta inexistência de interesse processual, nas modalidades utilidade e adequação" (HC 412.492/SC, 3ª Turma, DJe 18/12/2017).

17) É igualmente útil ao desfecho da controvérsia destacar que a matéria em questão foi devolvida a esta Corte também no AREsp 1.854.464/SP, que não foi conhecido por incidência da Súmula 182/STJ em decisão unipessoal da Presidência e transitou em julgado em 23/05/2021.

18) É que, contra a decisão interlocutória que determinou a apreensão dos passaportes da paciente, proferida em setembro/2019, houve também a interposição de agravo de instrumento pela paciente, que veio a ser desprovido pelo TJ/SP, por unanimidade, sob os seguintes fundamentos:

A agravante explica que foi coautora de pedido de “Alienação Judicial de coisa comum” julgado improcedente (fls. 2). Acerca desta execução de honorários de sucumbência, limita-se a afirmar que: “O Exequente direcionou de várias formas a sua execução para penhora de valores e bens dos Executados” (sic) (fls. 2). Poderia ter esclarecido que o cumprimento de sentença teve início em abril/2006 (fls. 133/135).

A r. decisão agravada impôs a medida porque não houve o pagamento da dívida nem oferecimento de bens à penhora (fls. 627).

A agravante nada diz sobre esses fundamentos. Convenientemente, nada informa sobre sua profissão (fls. 1) nem sobre seu patrimônio.

Noto que ela havia se qualificado como "comerciante" na inicial da ação de conhecimento (fls. 20).

Seu endereço residencial em Jundiaí permanece o mesmo (fls. 1 e 20).

Nesse contexto, o bloqueio do passaporte com base no art. 139, IV, do CPC se mostra eficaz para a concretização da tutela jurisdicional. A agravante tem plena liberdade de locomoção no Brasil. Viagem ao exterior à custa da efetividade deste processo não é razoável. (fls. 742/746, e-STJ, do AREsp 1.854.464/SP).

19) Como se observa do histórico acima mencionado, o requisito do prévio esgotamento das medidas executivas típicas, essencialmente patrimoniais e expropriatórias, está amplamente demonstrado na hipótese em exame, conforme reiteradamente certificado pelas instâncias ordinárias e também por esta Corte em julgamento anterior (AgInt no RHC 128.327/SP).

20) Nesse contexto, rogando as mais respeitosas venias ao e. Relator, não é razoável supor, tampouco se pode inferir das frágeis provas documentais que instruem o presente writ, que não tenha havido o exaurimento dos meios executivos típicos nos dezesseis anos de tramitação do cumprimento de sentença.

21) É importante registrar, no ponto, que caberia à paciente produzir a prova, neste habeas corpus, de que não teria havido o exaurimento das medidas executivas típicas e de que a apreensão do passaporte, nesse contexto, seria ineficaz, inútil ou se revestiria de mera penalidade pelo inadimplemento da obrigação, mas, como reiteradamente destacado, o presente writ não está suficientemente aparelhado, seja por desídia, seja por algum propósito escuso.

22) Especificamente sobre a penhora das cotas sociais das pessoas jurídicas mencionadas pela exequente em sua petição de fls. 137/175 (e-STJ), hipótese aventada como admissível pelo e. Relator, destaque-se, em primeiro lugar, que não há nenhuma evidência de que as referidas cotas possuem alguma expressão econômica, especialmente porque, relembre-se, cogita-se a existência de provas na origem acerca da participação da paciente em atos de adulteração de combustíveis e de sonegação fiscal, questão cujo conhecimento, repise-se, foi subtraído desta Corte pela própria paciente.

23) Em segundo lugar, anote-se que não há absolutamente nenhuma evidência de que tais cotas estariam livres e seriam suscetíveis de penhora, seja porque se tratam de pessoas jurídicas constituídas há muitos anos (1999, 2000, 2001, 2003 e 2018), seja porque se constata ainda a existência de dezenas de execuções fiscais e trabalhistas em face da paciente, consoante certidões de fls. 54/63, e-STJ.

24) Com o perdão da insistência, mas era dever da paciente comprovar a teratologia ou manifesta ilegalidade da manutenção da apreensão de seu passaporte a partir de uma reconstrução verdadeira dos fatos processuais e desse ônus, com a devida venia, ela não se desincumbiu minimamente.

25) De outro lado, no que se refere especificamente ao oferecimento, pela paciente, de 30% de seus rendimentos como aposentada e pensionista para a quitação da dívida, que fora reputada pelo e. Relator como  suficiente para o desbloqueio do passaporte com base no princípio da boa-fé, são necessários alguns esclarecimentos e reflexões.

26) O valor originário da dívida executada, repise-se, inadimplida desde 2006, era de aproximadamente R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais). O valor atualizado da dívida para esta data, com juros e correção monetária, é superior a R$ 920.000,00 (novecentos e vinte mil reais).

27) O valor líquido dos benefícios auferidos pela paciente totaliza R$ 5.097,70 (fls. 68/73, e-STJ), de modo que a penhora de 30% desse valor resultaria em um benefício mensal à credora da ordem de R$ 1.529,31. 28) Se, por hipótese, o valor da dívida executada não fosse mais atualizado ou corrigido a partir desta data, conclui-se que, ainda assim, seriam necessários 601 (seiscentos e um) meses para o adimplemento da dívida, ou seja, mais de 50 (cinquenta) anos.

29) Dado que a paciente atualmente possui 71 anos e a expectativa média de vida dos brasileiros é, segundo a mais recente pesquisa do IBGE, de 76,8 anos, é bastante razoável inferir que nem mesmo metade da dívida será adimplida a partir do método sugerido pela paciente, de modo que está evidenciada a absoluta inocuidade da medida.

30) A propósito, registre-se que o oferecimento dessa insignificante quantia mensal após mais de dezesseis anos de execução, sem que nenhuma outra forma fosse viabilizada ao longo de todo esse período, não é apenas inócua, mas, ao revés, é até mesmo desrespeitosa e ofensiva ao credor e à dignidade do Poder Judiciário, na medida em que são oferecidas migalhas em troca de um passaporte para o mundo e, quiçá, para a inadimplência definitiva.

(...)

32) Aliás, os contornos que se deve dar à iniciativa da paciente são, com a máxima venia, substancialmente diferentes. O oferecimento de algum valor, por mais insignificante que seja, pelo devedor contumaz e claramente despido de boa-fé, após dois anos de bloqueio de seu passaporte, é, a meu juízo, a prova cabal de eficácia da medida coercitiva atípica, pois é representativo de que a restrição pessoal está lhe causando o necessário incômodo que havia sido pretendido por ocasião de seu deferimento.

33) Nesse particular, é importante salientar que as medidas executivas atípicas, sobretudo as coercitivas, não são penalidades judiciais impostas ao devedor, pois, se assim fossem, implicariam obrigatoriamente em quitação da dívida após o cumprimento da referida pena, o que não ocorre.

34) Por esse motivo, é correto dizer que essas medidas também não representam uma superação do dogma da patrimonialidade da execução, uma vez que são os bens – e apenas os bens – do devedor que respondem pelas suas dívidas. Não se deve confundir, todavia, patrimonialidade da execução com a possibilidade de imposição de restrições pessoais como método para dobrar a recalcitrância do devedor.

35) De fato, essas medidas devem ser deferidas e mantidas enquanto conseguirem operar, sobre o devedor, restrições pessoais capazes de incomodar e suficientes para tirá-lo da zona de conforto, especialmente no que se refere aos seus deleites, aos seus banquetes, aos seus prazeres e aos seus luxos, todos bancados pelos credores.

36) A limitação temporal das medidas coercitivas atípicas, a propósito, é questão inédita nesta Corte, pois os precedentes até aqui examinados se circunscreveram aos pressupostos para deferimento de medidas dessa natureza, mas não às hipóteses de manutenção e de verificação de efetividade após o transcurso de determinado período.

37) E, nesse particular, é correto afirmar que não há uma formula mágica e nem deve haver um tempo pré-estabelecido fixamente para a duração de uma medida coercitiva, que deve perdurar, pois, pelo tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor, de modo a efetivamente convencê-lo de que é mais vantajoso adimplir a obrigação do que, por exemplo, não poder realizar viagens internacionais.

38) No que tange ao bloqueio de passaporte, é particularmente interessante observar o peculiar e injustificado interesse que os devedores que afirmam estar em situação de miserabilidade, de insolvência ou de qualquer modo impossibilitados de adimplir as suas dívidas, possuem especificamente na posse desse documento.

39) Isso porque ou bem o devedor realmente se encontra em situação de penúria financeira e não reúne condições de satisfazer a dívida (e, nessa hipótese, a suspensão do passaporte será duplamente inócua, como técnica coercitiva e porque o documento apenas ficará sob a posse do devedor no Brasil, diante da impossibilidade de custear viagens internacionais) ou o devedor está realmente ocultando patrimônio e terá revogada a suspensão tão logo quite as suas dívidas.

40) Sublinhe-se que, na hipótese, não há nenhuma circunstância fática justificadora do desbloqueio de passaporte da paciente e que autorize, antes da quitação da dívida, a retomada de suas viagens internacionais que, ao que tudo indica, eram bastante corriqueiras.

41) Com efeito, somente foi colacionado ao presente habeas corpus um e-mail, que teria sido enviado em 09/12/2020 pela filha da paciente, ANDREA, que, relembre-se, também é executada no mesmo processo de origem, por meio do qual ela noticia já ter havido a alegada cirurgia, que teria sido exitosa e com boa recuperação, na qual informa ter saudades da mãe, que gostaria de revê-la e que, a despeito das supostas dificuldades financeiras, supostamente custearia as passagens porque seria “um esforço para que possamos nos ver e passar alguns dias juntas, não vai matar ninguém” (fl. 66, e-STJ).

42) Com todo o respeito, é absolutamente intolerável esse tipo de postura do devedor, que maximiza os seus próprios problemas e necessidades e minimiza, sem nenhum conhecimento ou autorização, os problemas e necessidades do credor, pretendendo, às expensas desse, manter íntegros os seus padrões de vida e os seus hábitos.

43) Em suma, a partir do contexto acima mencionado e por qualquer ângulo que se examine a questão, não há que se falar em teratologia ou em manifesta ilegalidade da decisão de fls. 75/77 (e-STJ) e no acórdão de fls. 79/85 (e-STJ), que, de maneira fundamentada e aderente à realidade da execução que se iniciou, repise-se uma vez mais, em abril/2006, rejeitaram o pedido de desbloqueio do passaporte da paciente.

44) Forte nessas razões, rogando as mais respeitosas venias ao e. Relator, DENEGO A ORDEM pretendida pela paciente."

(STJ, HC n. 711.194/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 21.06.2022, grifou-se)

Ao que se extrai do voto vencedor acima, as medidas coercitivas previstas no art. 139, IV, do CPC, (i) devem perdurar pelo tempo necessário para verificação de sua efetividade, (ii) a ausência de elementos fáticos novos não reclama a alteração da medida coercitiva determinada (ao revés, o incômodo do devedor em preocupar-se com a revogação da medida, sem contudo contribuir para a satisfação da tutela executiva, revela sua efetividade), (iii) é ônus do devedor demonstrar o esgotamento de cumprimento das medidas executivas típicas, de índole essencialmente patrimonial e expropriatória, bem como (iv) que a medida coercitiva atípica deferida seria inútil, ineficaz, desnecessária ou se revestiria de mera penalidade pelo inadimplemento da obrigação e, por fim, (v) tais medidas coercitivas tem por desiderato causar ao devedor determinados incômodos pessoais que o convençam a ser mais vantajoso adimplir a obrigação do que sofrer referidas restrições impostas pelo magistrado.

Tem-se, pois, mais um capítulo da série “art. 139, IV, do CPC”, cuja temática quiçá se estenderá de série para diversas temporadas, porquanto o fenômeno jurídico vem sendo examinado pelo STJ de modo fragmentado.

O que se espera, independentemente do posicionamento adotado, em especial quando do vindouro julgamento do Tema Repetitivo n. 1.137/STJ, é que as premissas objetivas a serem adotadas sejam aplicadas sem distinção, a assegurar a tão esperada segurança jurídica, isonomia e previsibilidade que se espera das decisões do Poder Judiciário, mantendo-se um sistema íntegro e coerente, tal qual inclusive necessito o legislador assim o prever no art. 926 do CPC2.

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1 Disponível aqui.

2 "Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, integra e coerente."

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Colunistas

André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto Pós-doutorados em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015), na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019), na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022) e na Universitá degli Studi di Messina (2024/2025). Visiting Scholar no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional (2023/2024). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). MBA em Agronegócio pela USP (2025). MBA em Energia pela PUC/PR (2025). Pós Graduação Executiva em Negociação (2013) e em Mediação (2015) na Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em diversos cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (ex.: EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb e da Amcham. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Membro honorário da ABEP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).