CPC na prática

Desconsideração inversa da personalidade jurídica e responsabilidade patrimonial

Preenchidos os requisitos, os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações da pessoa jurídica poderão ser estendidos aos bens particulares dos administradores e dos seus sócios.

1/9/2022

De acordo com o art. 50, do Código Civil (CC), que versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica: "Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso".

Ou seja, preenchidos os requisitos (confusão patrimonial ou desvio de finalidade) os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações da pessoa jurídica poderão ser estendidos aos bens particulares dos administradores e dos seus sócios.

O art. 133, § 2º, do Código de Processo Civil (CPC), por sua vez, admite a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Isso significa afirmar que, uma vez preenchidos os requisitos do art. 50, do CC, os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações dos sócios e dos administradores poderão ser estendidos aos bens da pessoa jurídica. Essa é a desconsideração em sentido inverso.

Questão importante é saber se o sócio teria interesse em recorrer de uma decisão que decreta a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Isso porque, para o sócio, à primeira vista, seria interessante ter mais alguém responsável pelo pagamento da sua dívida. Nessa linha de raciocínio, se tem mais alguém para pagar, isso seria melhor para o devedor originário, faltando-lhe interesse para recorrer de uma decisão que lhe seria até benéfica.

Porém, em julgado recente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o sócio tem interesse recursal nesses casos. Confira-se, a propósito, a ementa da decisão:

"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE DEFERIU O PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE DO SÓCIO EXECUTADO. LEGITIMIDADE E INTERESSE RECURSAL DO SÓCIO PARA RECORRER DA DECISÃO. EXISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

1. O propósito recursal consiste em definir, além da ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, a legitimidade e o interesse recursal do sócio executado para impugnar a decisão que deferiu o pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica dos entes empresariais dos quais é sócio.

(...)

3. A jurisprudência desta Corte Superior assenta-se no sentido de que, sendo deferido o pedido de desconsideração, o interesse recursal da empresa devedora originária é excepcional, evidenciado no propósito de defesa do seu patrimônio moral, da honra objetiva, do bom nome, ou seja, da proteção da sua personalidade, abrangendo, inclusive, a sua autonomia e a regularidade da administração, inexistindo, por outro lado, interesse na defesa da esfera de direitos dos sócios/administradores.

4. Na desconsideração inversa da personalidade jurídica, por sua vez, verifica-se que o resultado do respectivo incidente pode interferir não apenas na esfera jurídica do devedor (decorrente do surgimento de eventual direito de regresso da sociedade em seu desfavor ou do reconhecimento do seu estado de insolvência), mas também na relação jurídica de material estabelecida entre ele e os demais sócios do ente empresarial, como porventura a ingerência na affectio societatis.

5. Desse modo, sobressaem hialinos o interesse e a legitimidade do sócio devedor, tanto para figurar no polo passivo do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, quanto para recorrer da decisão que lhe ponha fim, seja na condição de parte vencida, seja na condição de terceiro em relação ao incidente, em interpretação sistemática dos arts. 135 e 996 do Código de Processo Civil de 2015, notadamente para questionar sobre a presença ou não, no caso concreto, dos requisitos ensejadores ao deferimento do pedido.

6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido".

(REsp n. 1.980.607/DF, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 12/8/2022, grifos nossos.)

Com o devido respeito, não é possível concordar com a afirmação de que haveria uma ação de regresso daquele que teve o seu patrimônio atingido pela desconsideração da personalidade jurídica (a sociedade) contra o sócio a justificar o seu interesse recursal. É bem verdade que o julgado acima mencionado se escora em respeitável doutrina para sustentar tal afirmação. Veja-se:

"Em viés semelhante, asseveram Fernando da Fonseca Gajardoni e outros ser evidente o interesse jurídico do devedor originário, pois, havendo o acolhimento do pleito de desconsideração e a satisfação da obrigação através do patrimônio do terceiro atingido pela desconsideração, surge para este o direito de regresso em face do devedor. (Comentários ao Código de Processo Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 205)".

Entretanto, é forçoso reconhecer que quando a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é aplicada, o integrante da pessoa jurídica responde por dívida própria. Essa responsabilidade do integrante da pessoa jurídica decorre do fato de ele ter se beneficiado de uma atividade abusiva e lesiva realizada por meio da pessoa jurídica (SALOMÃO FILHO, Calixto. "O novo direito societário". 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002. p. 202).

 

Como o signatário já teve oportunidade de asseverar “É possível perceber, portanto, que a responsabilidade decorrente da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica não pode ser confundida com a responsabilidade civil decorrente da ‘teoria dualista da obrigação’, pois com ela se admite que o responsável exerça seu direito de regresso em face do devedor, caso o primeiro pague a dívida do segundo. (...) Porém, como já asseverado, a teoria dualista da obrigação não é de grande utilidade para se entender a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Isso porque não se pode considerar que quando a teoria da desconsideração é aplicada a pessoa jurídica passa a ser considerada a devedora e o seu integrante para a ser considerado o responsável pela dívida. Se assim fosse, haveria uma verdadeira contradição na aplicação da disregard doctrine: ao mesmo tempo que se afirma desconsiderar a personalidade jurídica, ela seria considerada para se entender que uma pessoa seria responsável e outra pessoa seria a devedora. Na verdade, decorre da aplicação da disregard doctrine que a pessoa jurídica e seu integrante, sociedade e sócio, são na realidade uma só pessoa, ambos devedores e responsáveis pelo adimplemento da mesma dívida” (SOUZA, André Pagani de. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 89-90).

O mesmo raciocínio acima exposto vale para a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Não há ação de regresso cabível pois a responsabilidade é primária e não secundária. A pessoa jurídica participou do ato abusivo e fraudulento e portanto responde por ato próprio. Dívida e responsabilidade estão concentradas na mesma pessoa.

Em razão do exposto, não se pode concordar com este argumento utilizado pelo STJ no acórdão acima mencionado de que haveria uma ação de regresso cabível para justificar o interesse recursal do sócio na desconsideração da personalidade jurídica inversa. Quanto aos demais argumentos, em razão do espaço, vamos deixar a sua análise para outra oportunidade aqui na Coluna “CPC na prática”. Mas com esse argumento, da existência de possível e eventual ação de regresso a justificar o interesse recursal, não se pode concordar, respeitadas as opiniões em contrário.

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Colunistas

André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto Pós-doutorados em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015), na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019), na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022) e na Universitá degli Studi di Messina (2024/2025). Visiting Scholar no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional (2023/2024). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). MBA em Agronegócio pela USP (2025). MBA em Energia pela PUC/PR (2025). Pós Graduação Executiva em Negociação (2013) e em Mediação (2015) na Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em diversos cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (ex.: EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb e da Amcham. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Membro honorário da ABEP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).