CPC na prática

Responsabilidade pela concessão de tutelas de urgência e boa-fé objetiva

Responsabilidade pela concessão de tutelas de urgência e boa-fé objetiva

9/9/2021

Pergunta clássica formulada desde os bancos da faculdade é: quem é o responsável pela concessão de uma tutela de urgência caso a decisão que a concedeu seja revogada? Trata-se pergunta bastante pertinente até os dias atuais. Como se sabe, o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal (CF), estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (grifos nossos). Em razão dessa palavra "ameaça" é que o Código de Processo Civil (CPC) permite que o juiz, mesmo não tendo certeza de que autor de um pedido de tutela de urgência esteja com a razão, defira o que está sendo requerido com base apenas na probabilidade do direito e no perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (CPC, art. 300, caput). Tal permissão existe no CPC justamente para se evitar que uma ameaça a um direito se transforme em lesão, dando concretude ao mandamento constitucional de que o Poder Judiciário deve agir, mesmo na hipótese de ainda não haver uma lesão a determinado direito, desde que se configure a ameaça.

Não há dúvida de que uma decisão judicial, proferida com base em um juízo de probabilidade da existência de um direito que corre o perigo de ser lesado, possa, no futuro, se mostrar totalmente equivocada. Afinal, “errar é humano” e a "pressa é inimiga da perfeição". Daí a pergunta que se apresenta bastante pertinente: quem arcará com o prejuízo de uma decisão rápida tomada com base em probabilidades? O juiz? O Estado? Aquele que se beneficiou da decisão? Ou, ainda, aquele que foi prejudicado pela decisão tomada com base em probabilidades?

Como se verá adiante, em uma decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça, ficou com a última hipótese, ou seja, decidiu que aquele que foi prejudicado pela concessão de uma tutela de urgência que depois foi revogada deve amargar o prejuízo que sofreu para sempre. Tal decisão, que será mencionada abaixo, chama a atenção porque não é exatamente essa a solução que o art. 302, do Código de Processo Civil dá para hipóteses parecidas. Confira-se:

"Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:

I - a sentença lhe for desfavorável;

II - obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias;

III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal;

IV - o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.

Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível."

A regra geral insculpida no art. 302, do CPC, portanto, é a de que a responsabilidade pela concessão da tutela de urgência é de quem a pediu, caso aconteça alguma das hipóteses descritas nos incisos I a IV do referido dispositivo legal.

No Código de Processo Civil anterior (CPC/1973), não era diferente, conforme estabelecido pelo art. 811, in verbis:

Art. 811. Sem prejuízo do disposto no art. 16, o requerente do procedimento cautelar responde ao requerido pelo prejuízo que Ihe causar a execução da medida:

I - se a sentença no processo principal Ihe for desfavorável;

II - se, obtida liminarmente a medida no caso do art. 804 deste Código, não promover a citação do requerido dentro em 5 (cinco) dias;

III - se ocorrer a cessação da eficácia da medida, em qualquer dos casos previstos no art. 808, deste Código;

IV - se o juiz acolher, no procedimento cautelar, a alegação de decadência ou de prescrição do direito do autor (art. 810).

A doutrina, à luz dos dispositivos acima, divergia. Parte afirmava que a responsabilidade é objetiva e do autor do pedido de tutela de urgência, que assume o risco de ter que recompor as partes ao status quo anterior à concessão da medida, caso ela seja tornada sem efeitos. Veja-se, a propósito, o que afirmava Tércio Chiavassa:

"A responsabilidade processual da parte que executa a tutela de urgência é objetiva. O risco, portanto, é inerente ao poder que a parte possui contra o Estado de exigir do Judiciário a concessão de execução daquela tutela pretendida, quando presentes os pressupostos" (CHIAVASSA, Tércio. "Tutelas de urgência cassadas: a recomposição do dano", São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 301).

Já Lúcio Palma da Fonseca, em monografia sobre o tema entendia que a responsabilidade do autor não poderia ser objetiva, mas sim subjetiva. Ou seja, o autor do pedido de tutela de urgência somente poderia ser responsabilizado em caso de comprovada má-fé, culpa ou dolo. Confira-se:

"Quanto à responsabilidade civil do autor, pensamos ser subjetiva, devendo restar provado nos autos conduta incompatível, de má-fé, culpa ou dolo. Não é o caso, pois, de responsabilidade objetiva como sustentam alguns autores, em razão de ausência expressa nesse sentido como ocorre na norma do art. 811 do CPC, muito embora o art. 273 do CPC faça remissão genérica ao art. 588 do mesmo diploma legal" (FONSECA, Lúcio Palma da. "Tutela cautelar: responsabilidade civil pelo manejo das liminares". Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 186).

Prevalecia, entretanto, a posição apontada por Cassio Scarpinella Bueno, segundo o qual:

"A doutrina é uniforme no entendimento de que a responsabilidade prevista no dispositivo é objetiva, não subjetiva, razão pela qual o dever de o beneficiário da ‘medida cautelar’ responsabilizar-se pelos danos que causou com a medida independentemente de culpa sua. É mister, contudo, a demonstração de danos (materiais ou morais) e de que eles provêm da medida jurisdicional tal qual concedida e, se for o caso, cumprida, isto é, de seu nexo causal" (BUENO, Cassio Scarpinella. "Curso sistematizado de direito processual civil". V. 4. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 179).

Na vigência do Código de Processo Civil atual, a doutrina também continua entendendo que tal responsabilidade é objetiva, conforme ensinam João Batista Lopes e Carlos Augusto de Assis, ao tratarem da tutela cautelar e da tutela antecipada, respectivamente:

"O entendimento predominante é no sentido de que se cuida de responsabilidade objetiva. É que, ao acionar a máquina judiciária, o autor assume o risco decorrente do exercício da ação e, assim, pela teoria da causalidade, deve responder pelos prejuízos causados, independentemente de sua culpa" (LOPES, João Batista; ASSIS, Carlos Augusto de. "Tutela provisória: tutela antecipada, tutela cautelar, tutela da evidência, tutela inibitória antecipada". Brasília: Gazeta Jurídica, 2018. p. 108).

(...)

“O novo Código, ao unificar o tratamento dado à tutela de urgência, deixou expresso algo que a doutrina já defendia durante a vigência do Código anterior: a aplicação do mesmo regime de responsabilidade do requerente pelos danos causados pela efetivação da tutela de urgência que tinha sido posteriormente revogada" (ASSIS, Carlos Augusto de; LOPES, João Batista. "Tutela provisória: tutela antecipada, tutela cautelar, tutela da evidência, tutela inibitória antecipada". Brasília: Gazeta Jurídica, 2018. p. 155).

Porém, em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o autor de um pedido de antecipação de tutela, que posteriormente foi tornada sem efeito, não deveria indenizar a parte contrária, porque agiu de boa-fé. Em outras palavras, levou em consideração a conduta do autor do pedido, tornando, portanto, subjetiva a atribuição de responsabilidade pela concessão da tutela de urgência. Veja-se, a propósito, a ementa do julgado em questão:

"RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. SAÚDE SUPLEMENTAR. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. SERVIÇO DE HOMECARE. TUTELA DEFERIDA. PACIENTE PORTADORA DE MAL DE ALZHEIMER. MORTE DA AUTORA NO DECORRER DO PROCESSO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. REVOGAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA. EFEITOS EX TUNC. RESTITUIÇÃO DOS VALORES DESPENDIDOS COM FÁRMACOS, ALIMENTAÇÃO E MATERIAIS HOSPITALARES. DESCABIMENTO. BOA-FÉ DA DEMANDADA EVIDENCIADA.

1. O cerne da controvérsia situa-se em torno do pedido de restituição dos gastos suportados para o cumprimento da decisão interlocutória concessiva da tutela provisória à parte autora, tendo em vista a posterior revogação da medida quando da prolação da respectiva sentença.

2. Em relação aos benefícios previdenciários complementares, o posicionamento da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que há direito à devolução dos valores percebidos, em razão da revogação da antecipação dos efeitos da tutela pela sentença de mérito.

3. Entretanto, a repetibilidade da verba recebida, com base em antecipação de tutela, deve ser examinada sob o prisma da boa-fé objetiva.

4. Consoante destacado pelo acórdão recorrido, na hipótese dos autos, não há evidência de conduta contrária à boa-fé na postura da paciente falecida ou de sua família.

5. A revogação da antecipação de tutela não decorreu da inexistência do direito da postulante, tendo o processo sido extinto apenas em razão da morte da demandante e a inexistência de conteúdo condenatório que aproveitasse aos herdeiros da requerente, pois o objeto da demanda era apenas a concessão de assistência à saúde em favor da paciente falecida.

6. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E DESPROVIDO.

(REsp 1725736/CE, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/04/2021, DJe 21/05/2021, grifos nossos)".

Note-se que nunca se questionou a licitude dos atos do requerente da tutela de urgência para estabelecer a sua responsabilidade, caso a decisão que a conceda perca os seus efeitos. Algo que é requerido de acordo com a lei e determinada a sua execução pelo Poder Judiciário não é ilícito. A responsabilidade, no caso, sempre foi estabelecida com base no risco consciente que o autor do pedido de tutela de urgência corre ao pedí-la. Trata-se de risco sabido pelo autor do pedido de urgência porque não pode alegar ignorância do teor do art. 302, sobretudo do seu inciso III, que prescreve ser sua responsabilidade indenizar caso ocorra "a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal" (grifo nosso).

O entendimento apresentado pela Terceira Turma do STJ, com o devido respeito, parece retroceder ao que estabelecia o Código de Processo Civil de 1939 (instituído pelo decreto-lei 1.608, de 18 de setembro de 1939). Nesse antigo diploma legal, em seu Livro V, tratava dos processos que denominava de acessórios e, em seu Título I, dispunha sobre as "medidas preventivas". Lá no art. 688, parágrafo único, estava estabelecido o seguinte:

"Art. 688. A responsabilidade do vencido regular-se-á pelos arts. 63 e 64.

Parágrafo único. A parte que, maliciosamente ou por erro grosseiro, promover medida preventiva, responderá também pelo prejuízo que causar" (grifos nossos).

Em conclusão, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Resp 1.725.736/CE, retornou ao Código de Processo Civil de 1939 (art. 688, parágrafo único), ignorando a evolução legislativa do Código de Processo Civil de 1973 (art. 811) e do Código de Processo Civil de 2015 (art. 302), sem mencionar décadas de jurisprudência e doutrina, que estabelecem a responsabilidade objetiva daquele que pede uma tutela de urgência, em razão do risco, sobretudo aquele hospedado no inciso III do art. 302, do CPC atual.

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto tem pós-doutorado em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015). Pós Doutorado em Democracia e Direitos Humanos, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019). Pós Doutorado em Direitos Sociais, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022). Pesquisador visitante no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil (2023). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). Pós Graduação Executiva nos Programas de Negociação (2013) e de Mediação (2015) da Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (destacando-se a EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, UCDB, e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil: Teams. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).