CPC na prática

O julgamento do REsp 1738656/RJ e os limites das convenções processuais

O julgamento do REsp 1738656/RJ e os limites das convenções processuais.

11/2/2021

O Superior Tribunal de Justiça enfrentou, pela primeira vez, o tema dos limites das convenções processuais, bem como a questão do controle judicial dos negócios processuais atípicos, no julgamento do Recurso Especial n. 1738656/RJ, tendo sido Relatora a Ministra Nancy Andrighi.

Naquele julgamento, restou-se consolidada a tese de que:

"3-  Embora  existissem  negócios  jurídicos  processuais  típicos no CPC/73,  é correto afirmar que inova o CPC/15 ao prever uma cláusula geral  de  negociação  por  meio  da qual se concedem às partes mais poderes  para  convencionar  sobre  matéria  processual, modificando substancialmente  a  disciplina  legal  sobre  o tema, especialmente porque  se  passa a admitir a celebração de negócios processuais não especificados na legislação, isto é, atípicos.

4-  O  novo  CPC,  pois,  pretende  melhor  equilibrar a constante e histórica  tensão entre os antagônicos fenômenos do contratualismo e do  publicismo processual, de modo a permitir uma maior participação e  contribuição  das partes para a obtenção da tutela jurisdicional efetiva,  célere  e  justa,  sem despir o juiz, todavia, de uma gama suficientemente  ampla de poderes essenciais para que se atinja esse resultado,  o que inclui, evidentemente, a possibilidade do controle de  validade dos referidos acordos pelo Poder Judiciário, que poderá negar a sua aplicação, por exemplo, se houver nulidade.

5- Dentre os poderes atribuídos ao juiz para o controle dos negócios jurídicos processuais celebrados entre as partes está o de delimitar precisamente o seu objeto e abrangência, cabendo-lhe decotar, quando necessário,  as questões que não foram expressamente pactuadas pelas partes  e  que, por isso mesmo, não podem ser subtraídas do exame do Poder Judiciário. (...).

8- Admitir que o referido acordo, que sequer se pode conceituar como um  negócio  processual  puro, pois o seu objeto é o próprio direito material  que  se  discute  e  que  se  pretende  obter  na  ação de inventário,  impediria  novo  exame  do  valor  a  ser  destinado ao herdeiro  pelo  Poder  Judiciário,  resultaria na conclusão de que o juiz  teria  se tornado igualmente sujeito do negócio avençado entre as  partes  e, como é cediço, o juiz nunca foi, não é e nem tampouco poderá  ser  sujeito  de negócio jurídico material ou processual que lhe  seja  dado  conhecer  no exercício da judicatura, especialmente porque  os  negócios jurídicos processuais atípicos autorizados pelo novo  CPC são apenas os bilaterais, isto é, àqueles celebrados entre os sujeitos processuais parciais.

9- A interpretação acerca do objeto e da abrangência do negócio deve ser  restritiva,  de modo a não subtrair do Poder Judiciário o exame de  questões  relacionadas  ao  direito  material  ou processual que obviamente  desbordem  do  objeto convencionado entre os litigantes, sob  pena de ferir de morte o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal e do art. 3º, caput, do novo CPC."

O acórdão consolida o entendimento de que o Poder Judiciário realiza o controle de validade do negócio jurídico processual atípico após sua celebração entre as partes, bem como demonstra a necessidade de interpretar-se restritivamente o grau de abrangência de tal modalidade de acordo; tudo de modo a se garantir a necessária interpretação e controle das convenções processuais, pelo Poder Judiciário, no decorrer do trâmite da lide.

Vale lembrar que o CPC/15 prevê o instituto dos negócios processuais atípicos, conforme estabelece o artigo 190: "Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo". 

Antonio do Passo Cabral1define o negócio processual da seguinte forma:

"convenção ou acordo processual é o negócio jurídico plurilateral, pelo qual as partes, antes ou durante o processo e sem a necessidade de intermediação de nenhum outro sujeito, determinam a criação, modificação e extinção de situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento". 

Luiz Guilherme Marinoni2observa:

"É possível também que as partes dentro do espaço de liberdade constitucionalmente reconhecido estipulem mudanças no procedimento. Esses acordos processuais, que representam uma tendência de gestão procedimental oriunda principalmente do direito francês, podem ser realizados em processos que admitam autocomposição. Podem ser acordos preprocessuais, convencionados antes da propositura da ação, ou processuais, convencionados ao longo do processo. Os acordos processuais convencionados durante o processo podem ser celebrados em juízo ou em qualquer outro lugar (escritório de advocacia de uma das partes, por exemplo). O acordo processual praticado fora da sede do juízo deve ser dado ao conhecimento do juiz imediatamente, inclusive, para efeitos de controle de validade (art. 190, parágrafo único, CPC)." 

Teresa Arruda Alvim3exemplifica ensinando que: "aspectos procedimentais variados podem, também, ser objeto de convenção: as partes podem estipular limites de manifestações, podem estipular a impossibilidade de existir esta ou aquela modalidade probatória, prazos mais exiguos que os legais...". 

Cassio Scarpinella Bueno4 doutrina que os negócios processuais podem versar, por exemplo, sobre escolha de conciliador, mediador e da câmara de mediação, suspensão do processo, escolha do perito, escolha do administrador depositário, e redução de prazos. 

Para Fredie Didier Jr.5, os negócios processuais podem versar sobre impenhorabilidade de bens, instância única, ampliação ou redução de prazos, superação de preclusão, substituição de bem penhorado, rateio de despesas processuais, dispensa de assistente técnico, retirada de efeito suspensivo de recurso, não promoção de execução provisória, dispensa de caução, limite do número de testemunhas, intervenção de terceiro fora das hipóteses legais, acordo para tornar uma prova ilícita, dentre outros exemplos.

Em essência, o artigo 190 do CPC/15 prevê que as partes podem convencionar sobre aspectos procedimentais, estabelecendo mudanças no rito processual.

Grande debate existe na doutrina acerca dos limites para a aplicação do artigo 190 do CPC/15, não havendo, ainda, uniformidade quanto ao tema.

Para Teresa Arruda Alvim6, os negócios processuais não podem versar sobre deveres absolutos das partes (artigos 77 e 78 do CPC/15), sobre matérias indisponíveis e acerca de eventual não motivação das decisões judiciais. 

Fredie Didier Jr.7, por sua vez, afirma que os negócios processuais não podem versar sobre competência em razão da matéria, da função e da pessoa, bem como sobre a taxatividade e cabimento dos recursos. 

Humberto Theodoro Jr8. defende que os negócios processuais não podem limitar os poderes instrutórios do juiz, ou o controle dos pressupostos processuais e das condições da ação, e nem versar sobre qualquer outra matéria envolvendo ordem pública.

Com posição similar, Trícia Navarro Xavier Cabral pontua que as partes, na dinâmica do CPC/15, ganharam mais poder para participarem ativamente do processo; alertando, contudo, que esse modelo "não se trata de retorno à concepção privatista do processo, que permanece lastreado no interesse público inerente ao poder que emana da jurisdição estatal"9. Doutrina, ainda, que: "Por sua vez, para além dos elementos intrínsecos do ato, viu-se que o juiz deve apreciar os limites dos atos, os quais, neste trabalho, foram identificados como sendo: os direitos fundamentais, as garantias processuais, a reserva legal, as prerrogativas do juiz, a administração judiciária e a proteção a terceiros".10 

Neste cenário, sem dúvida merece grande destaque o julgamento do REsp n. 1738656 / RJ, pois já sinaliza um campo de direção, por parte do Superior Tribunal de Justiça, acerca do entendimento da Corte Superior sobre a forma de se delinear os limites da convenção processual celebrada entre as partes.

__________

1 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Jus Podium, 2016. p. 68.

2 MARINONI, Luiz Guilherme. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 244.

3 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lucia Lins; RIBEIRO; Leonardo Ferres da Silva; e MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2016. p. 397.

4 BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 217.

5 DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podium, 2015. p. 381.

6 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lucia Lins; RIBEIRO; Leonardo Ferres da Silva; e MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2016. p. 402.

7 DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podium, 2015. p. 388.

8 THEODORO Jr, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 471.

9 CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Limites da Liberdade Processual. Indaiatuba, SP: Foco, 2019. p. 152.

10 CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Limites da Liberdade Processual. Indaiatuba, SP: Foco, 2019. p. 152.

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André Pagani de Souza é doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Bacharel em Direito pela USP. Professor de Direito Processual Civil e coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Pós-doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor de diversos trabalhos na área jurídica. Membro do IBDP, IASP e CEAPRO. Advogado.

Daniel Penteado de Castro é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito dos Contratos pelo Centro de Extensão Universitária. Membro fundador e conselheiro do CEAPRO – Centro de Estudos Avançados em Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Professor na pós-graduação Lato Sensu na Universidade Mackenzie, Escola Paulista de Direito e Escola Superior da Advocacia. Professor de Direito Processual Civil na graduação do Instituto de Direito Público. Advogado e Autor de livros jurídicos.

Elias Marques de M. Neto tem pós-doutorado em Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2015). Pós Doutorado em Democracia e Direitos Humanos, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae (2019). Pós Doutorado em Direitos Sociais, com foco em Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (2022). Pesquisador visitante no Instituto Max Planck, em Direito Processual Civil (2023). Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Processual Civil pela PUC/SP. MBA em Gestão Empresarial pela FGV (2012). Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV (2006). Especializações em Direito Processual Civil (2004) e em Direito dos Contratos (2005) pelo IICS/CEU. Especialização em Direito do Agronegócio pela FMP (2024). Pós Graduação Executiva nos Programas de Negociação (2013) e de Mediação (2015) da Harvard Law School. Pós Graduação Executiva em Business Compliance na University of Central Florida - UCF (2017). Pós Graduação Executiva em Mediação e Arbitragem Comercial Internacional pela American University / Washington College of Law (2018). Pós Graduação Executiva em U.S. Legal Practice and ADR pela Pepperdine University/Straus Institute for Dispute Resolution (2020). Curso de Extensão em Arbitragem (2016) e em Direito Societário (2017) pelo IICS/CEU. Bacharel em Direito pela USP (2001). Professor Doutor de Direito Processual Civil no Curso de Mestrado e Doutorado na Universidade de Marilia - Unimar (desde 2014), nos cursos de Especialização do CEU-Law (desde 2016) e na graduação da Facamp (desde 2021). Professor Colaborador na matéria de Direito Processual Civil em cursos de Pós Graduação Lato Sensu e Atualização (destacando-se a EPD, Mackenzie, PUC/SP-Cogeae, UCDB, e USP-AASP). Advogado. Sócio de Resolução de Disputas do TozziniFreire Advogados (desde 2021). Atuou como Diretor Executivo Jurídico e Diretor Jurídico de empresas do Grupo Cosan (2009 a 2021). Foi associado sênior do Barbosa Mussnich e Aragão Advogados (2002/2009). Apontado pela revista análise executivos jurídicos como o executivo jurídico mais admirado do Brasil nas edições de 2018 e de 2020. Na mesma revista, apontado como um dos dez executivos jurídicos mais admirados do Brasil (2016/2019), e como um dos 20 mais admirados (2015/2017). Recebeu do CFOAB, em 2016, o Troféu Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. Apontado como um dos 5 melhores gestores de contencioso da América Latina, em 2017, pela Latin American Corporate Counsel Association - Lacca. Listado em 2017 no The Legal 500's GC Powerlist Brazil: Teams. Recebeu, em 2019, da Associação Brasil Líderes, a Comenda de Excelência e Qualidade Brasil 2019, categoria Profissional do Ano/Destaque Nacional. Recebeu a medalha Mérito Acadêmico da ESA-OABSP (2021). Listado, desde 2021, como um dos advogados mais admirados do Brasil na Análise 500. Advogado recomendado para Resolução de Disputas, desde 2021, nos guias internacionais Legal 500, Latin Lawyer 250, Best Lawyers e Leaders League. Autor de livros e artigos no ramo do Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, Pinheiros (desde 2013). Presidente da Comissão de Energia do IASP (desde 2013). Vice Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP (desde 2019). Membro fundador e Conselheiro (desde 2023) do Ceapro, tendo sido diretor nas gestões de 2013/2023. Conselheiro curador da célula de departamentos jurídicos do CRA/SP (desde 2016). Membro de comitês do Instituto Articule (desde 2018). Membro da lista de árbitros da Camarb. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do CBar e da FALP. Foi presidente da Comissão de Defesa da Segurança Jurídica do Conselho Federal da OAB (2015/2016), Conselheiro do CORT/FIESP (2017), Coordenador do Núcleo de Direito Processual Civil da ESA-OAB/SP (2019/2021) e Secretário da comissão de Direito Processual Civil do CFOAB (2019/2021).

Rogerio Mollica é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP. Especialista em Administração de Empresas CEAG-Fundação Getúlio Vargas/SP. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Bacharel em Direito pela USP. Professor doutor nos cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Marilia - Unimar. Advogado. Membro fundador, ex-conselheiro e ex-presidente do Ceapro - Centro de Estudos Avançados de Processo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).