Rogerio Mollica
A Remessa Necessária é um tema que me é bastante caro, eis que foi o tema da minha dissertação de mestrado. No dia 17 de janeiro de 2019 já tive oportunidade de escrever nessa coluna sobre a necessidade da ocorrência da remessa nos casos de sentenças ilíquidas, independentemente do valor discutido.
Naquela oportunidade verificamos que o Código de 2015 acabou por adotar o entendimento expresso na Súmula 490 do Superior Tribunal de Justiça1, que ainda na égide do CPC/1973, já exigia a liquidez da sentença para aplicar a restrição ao cabimento do reexame necessário.
Vale recordar que no Anteprojeto do Novo Código, o artigo 478, § 4º, previa que "quando na sentença não se houver fixado valor, o reexame necessário, se for o caso, ocorrerá na fase de liquidação". Dessa forma, pela previsão do anteprojeto, se a sentença fosse ilíquida, não ocorreria a Remessa Necessária e essa somente ocorreria se na fase de liquidação fosse apurado que o valor discutido era superior ao valor de alçada da remessa. Sem dúvida, uma hipótese mais limitativa do instituto do que a prevista no Código de 2015.
Entretanto, com aumento dos valores para o cabimento da remessa, principalmente para a União Federal, podemos ter processos com sentença ilíquida contrária à União, mas que evidentemente não discutem valores na casa de R$ 1 milhão (aproximadamente 1.000 salários mínimos). Nesses casos, em que apesar da iliquidez, a condenação ou o proveito econômico obtido na causa certamente não alcança esses patamares, seria cabível a Remessa Necessária?
Verificamos que mesmo nesses casos, a doutrina entende que deve ocorrer a devolução oficial. Nesse sentido é o entendimento de João Francisco Naves da Fonseca: "(...) as decisões ilíquidas, independentemente do valor envolvido, não estão dispensadas da devolução oficial (Súmula 490 do STJ)"2. Foi citado no artigo inclusive o entendimento da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça nesse mesmo sentido3.
Entretanto, voltamos agora ao tema, pois quase um ano após o referido julgamento da 2ª Turma do STJ, a 1ª Turma acabou decidindo de forma diametralmente oposta:
"PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INEXISTÊNCIA. SENTENÇA ILÍQUIDA. CPC/2015. NOVOS PARÂMETROS. CONDENAÇÃO OU PROVEITO ECONÔMICO INFERIOR A MIL SALÁRIOS MÍNIMOS. REMESSA NECESSÁRIA. DISPENSA.
1. Conforme estabelecido pelo Plenário do STJ, "aos recursos interpostos com fundamento no CPC de 2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC" (Enunciado Administrativo n. 3).
2. Não merece acolhimento a pretensão de reforma do julgado por negativa de prestação jurisdicional, porquanto, no acórdão impugnado, o Tribunal a quo apreciou fundamentadamente a controvérsia, apontando as razões de seu convencimento, em sentido contrário à postulação recursal, o que não se confunde com o vício apontado.
3. A controvérsia cinge-se ao cabimento da remessa necessária nas sentenças ilíquidas proferidas em desfavor da Autarquia Previdenciária após a entrada em vigor do Código de Processo Civil/2015.
4. A orientação da Súmula 490 do STJ não se aplica às sentenças ilíquidas nos feitos de natureza previdenciária a partir dos novos parâmetros definidos no art. 496, § 3º, I, do CPC/2015, que dispensa do duplo grau obrigatório as sentenças contra a União e suas autarquias cujo valor da condenação ou do proveito econômico seja inferior a mil salários mínimos.
5. A elevação do limite para conhecimento da remessa necessária significa uma opção pela preponderância dos princípios da eficiência e da celeridade na busca pela duração razoável do processo, pois, além dos critérios previstos no § 4º do art. 496 do CPC/15, o legislador elegeu também o do impacto econômico para impor a referida condição de eficácia de sentença proferida em desfavor da Fazenda Pública (§ 3º).
6. A novel orientação legal atua positivamente tanto como meio de otimização da prestação jurisdicional - ao tempo em que desafoga as pautas dos Tribunais - quanto como de transferência aos entes públicos e suas respectivas autarquias e fundações da prerrogativa exclusiva sobre a rediscussão da causa, que se dará por meio da interposição de recurso voluntário.
7. Não obstante a aparente iliquidez das condenações em causas de natureza previdenciária, a sentença que defere benefício previdenciário é espécie absolutamente mensurável, visto que pode ser aferível por simples cálculos aritméticos, os quais são expressamente previstos na lei de regência, e são realizados pelo próprio INSS.
8. Na vigência do Código Processual anterior, a possibilidade de as causas de natureza previdenciária ultrapassarem o teto de sessenta salários mínimos era bem mais factível, considerado o valor da condenação atualizado monetariamente. 9. Após o Código de Processo Civil/2015, ainda que o benefício previdenciário seja concedido com base no teto máximo, observada a prescrição quinquenal, com os acréscimos de juros, correção monetária e demais despesas de sucumbência, não se vislumbra, em regra, como uma condenação na esfera previdenciária venha a alcançar os mil salários mínimos, cifra que no ano de 2016, época da propositura da presente ação, superava R$ 880.000,00 (oitocentos e oitenta mil reais).
9. Recurso especial a que se nega provimento.” (g.n.)
(REsp 1735097/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/10/2019, DJe 11/10/2019)
Esse julgado parece mais alinhado com a intenção do CPC de 2015 de limitar as hipóteses de cabimento da Remessa Necessária, eis que não faz nenhum sentido se exigir o reexame necessário em casos em que obviamente o valor discutido não passa nem perto dos novos limitadores previstos no artigo 496, §3º, do CPC de 2015.
Desse modo, existindo essa divergência de entendimento entre as duas Turmas que julgam direito público, faz-se necessário que o Superior Tribunal de Justiça julgue tal tese, sob o rito dos processos repetitivos, a fim de uniformizar o entendimento quanto a necessidade ou não de realização da remessa necessária nesses casos, visando a segurança jurídica de todos. Vale recordar, que as sentenças sujeitas à remessa, não transitam em julgado4 até a realização do reexame necessário pelo Tribunal.
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1 Súmula 490 do STJ: "A dispensa do reexame necessário, quando o valor da condenação ou do direito controvertido for inferior a sessenta salários mínimos, não se aplica a sentenças ilíquidas". Dessa forma restou superado o entendimento de que "caso não seja líquida a condenação, o parâmetro deve ser o valor da causa" (AgRg no RESP nº 1.067.559/PR, Rel. Min Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, in DJe de 13/04/2009).
2 Comentários ao Código de Processo Civil, vol. IX, São Paulo: Saraiva, 2017, p. 97. Nesse mesmo sentido é o entendimento de Zulmar Duarte de Oliveira Júnior (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, Andre Vasconcelos e OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Processo de Conhecimento e Cumprimento de Sentença – Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2016, p.594).
3 REsp 1741538/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/06/2018, DJe 23/11/2018.
4 Súmula nº 423 do STF: "Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso "ex-officio", que se considera interposto "ex-lege"."