Rogerio Mollica
Um dos artigos mais comentado e estudado do Código de Processo Civil de 2015 é o artigo 139, IV, que prevê a possibilidade de adoção de medidas coercitivas atípicas.
A doutrina, em sua maioria, defende a aplicação de tais medidas. Por todos, cita-se o professor Olavo de Oliveira Neto, que em recentíssima e prestigiada obra sobre o tema defende a possibilidade da apreensão de passaporte e da carteira de habilitação1.
As medidas coercitivas atípicas vêm sendo bastante concedidas em primeira instância, entretanto, os Tribunais, com destaque para o Tribunal de Justiça de São Paulo2 e o Superior Tribunal de Justiça, vêm sistematicamente restringindo tais medidas.
Uma dúvida que surge é se tais medidas poderiam ser requeridas pelos Entes Públicos em Execuções Fiscais. O Tribunal de Justiça de São Paulo vem constantemente indeferindo o pedido de apreensão de Passaporte e da Carteira Nacional de Habilitação em face de devedores em Executivos Fiscais, eis que tais medidas não guardariam pertinência com a cobrança dos débitos:
"EXECUÇÃO FISCAL – Medidas coercitivas para satisfação de dívida tributária – Art. 139, inciso IV do NCPC – Insurgência contra a decisão do Juízo que deferiu as providências requeridas pela exequente – Pretensão de bloqueio da Carteira Nacional de Habilitação, cancelamento de passaporte e inscrição do nome do devedor no SERASAJUD – Cabimento apenas desta última – Demais medidas que, sobre não se revelarem úteis à satisfação do débito, atentam contra os dizeres das Súmulas nºs 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal – Recurso provido em parte."
(TJSP; Agravo de Instrumento 2138322-05.2019.8.26.0000; Relator (a): Erbetta Filho; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Artur Nogueira - Vara Única; Data do Julgamento: 26/09/2019; Data de Registro: 26/09/2019)
Entretanto, em recentíssima decisão o Superior Tribunal de Justiça afastou peremptoriamente a possibilidade da aplicação das medidas coercitivas atípicas do artigo 139, IV, do CPC nas Execuções Fiscais, eis que os Entes Públicos já gozam de muitos privilégios na cobrança dos seus créditos via executivos fiscais, conforme se extraí do seguinte trecho do voto:
"(...) 12. Tratando-se de Execução Fiscal, o raciocínio toma outros rumos quando medidas aflitivas pessoais atípicas são colocadas em vigência nesse procedimento de satisfação de créditos fiscais. Inegavelmente, o Executivo Fiscal é destinado a saldar créditos que são titularizados pela coletividade, mas que contam com a representação da autoridade do Estado, a quem incumbe a promoção das ações conducentes à obtenção do crédito.
13.Para tanto, o Poder Público se reveste da Execução Fiscal, de modo que já se tornou lugar comum afirmar que o Estado é superprivilegiado em sua condição de credor. Dispõe de varas comumente especializadas para condução de seus feitos, um corpo de Procuradores altamente devotado a essas causas, e possui lei própria regedora do procedimento (Lei 6.830/1980), com privilégios processuais irredarguíveis. Para se ter uma ideia do que o Poder Público já possui privilégios ex ante, a execução só é embargável mediante a plena garantia do juízo (art. 16, § 1o. da LEF), o que não encontra correspondente na execução que se pode dizer comum. Como se percebe, o crédito fiscal é altamente blindado dos riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental.
14.Não se esqueça, ademais, que, muito embora cuide o presente caso de direito regressivo exercido pela Municipalidade em Execução Fiscal (caráter não tributário da dívida), sempre é útil registrar que o crédito tributário é privilegiado (art. 184 do Código Tributário Nacional), podendo, se o caso, atingir até mesmo bens gravados como impenhoráveis, por serem considerados bem de família (art. 3o., IV da Lei 8.009/1990). Além disso, o crédito tributário tem altíssima preferência para satisfação em procedimento falimentar (art. 83, III da Lei de Falências e Recuperações Judiciais - 11.101/2005). Bens do devedor podem ser declarados indisponíveis para assegurar o adimplemento da dívida (art. 185-A do Código Tributário Nacional). São providências que não encontram paralelo nas execuções comuns.
15.Nesse raciocínio, é de imediata conclusão que medidas atípicas aflitivas pessoais, tais como a suspensão de passaporte e da licença para dirigir, não se firmam placidamente no Executivo Fiscal. A aplicação delas, nesse contexto, resulta em excessos.
16.Excessos por parte da investida fiscal já foram objeto de severo controle pelo Poder Judiciário, tendo a Corte Suprema registrado em Súmula que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos (Súmula 323/STF). (...)"
(HC 453.870/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 15/08/2019)
Desse modo não podem os Entes Públicos se valerem das medidas coercitivas atípicas para o recebimento de seus créditos, via executivos fiscais, que como é notório, não têm se mostrado efetivos na satisfação dos créditos públicos.
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2 Fernando da Fonseca Gajardoni e Augusto Martins Pereira analisaram 137 acórdãos do TJSP prolatados em 2017 e em 123 (89,79%) não foi permitida a aplicação de nenhuma das três modalidades mais conhecidas de medidas coercitivas atípicas (suspensão da CNH, apreensão de passaportes e bloqueio/cancelamento de cartão de crédito). ("Medidas atípicas na execução civil: análise de casos no âmbito do TJ/SP", in Reflexões sobre o Código de Processo Civil de 2015: uma contribuição dos membros do Centro de Estudos Avançados de Processo – Ceapro, São Paulo: Verbatim, 2018, p. 290).