Daniel Penteado de Castro
O art. 139, IV, do CPC/2015, confere ao magistrado o poder-dever de "(...) determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto a prestação pecuniária."
Em comentário ao referido dispositivo noutra oportunidade desta coluna1, sustentamos que o art. 139, IV deve ser compreendido e aplicado em consonância a outros princípios presentes no CPC/2015, tais como a boa-fé (art. 5º), cooperação voltada à obtenção de decisão de mérito justa e efetiva (art. 6º), isonomia e contraditório (art.7º) e proporcionalidade (art. 8º), sem prejuízo da vedação das decisões-surpresa (arts. 8º e 9º).
Também naquela ocasião referenciamos uma escalada de entendimentos da jurisprudência acerca da interpretação quanto a aplicação do art. 139, IV: as primeiras decisões limitadas a um "achismo" sobre que tipos de medidas coercitivas podem ser aplicas e quais seria vedadas, ao fundamento de que determinadas medidas agrediriam a Constituição Federal.
Outros entendimentos passaram a examinar o tema em maior profundidade, a se confrontar a necessidade e adequação da medida requerida pelo credor, em cotejo, ainda, com a efetividade do caso concreto. Nessa ótica foi memorável os fundamentos postos em dois julgados:
"(...) Determinada a intimação dos exequentes para requererem o que de direito, sob pena de extinção do feito (fl. 118), pediram a suspensão da habilitação de veículo automotor do executado até o pagamento do débito alimentar (fl. 121), decisão de acolhimento do juízo singular ora questionada (fls. 122/124).
Com o devido respeito, não vislumbro verossimilhança nas alegações dos impetrantes, porque, em princípio, a determinação judicial de suspensão da habilitação para dirigir veículo automotor não ocasiona, data venia, ofensa ao direito de ir e vir do paciente (art. 5º, XV, da CF).
Isso porque o paciente insofismavelmente segue podendo ir e vir, desde que o faça a pé, de carona ou de transporte público. Esposar compreensão em sentido distinto significa dizer que os não-habilitados a dirigir não podem ir e vir, inverdade absoluta. Desnecessário dizer mais."
(TJRS, Habeas Corpus n. 70072211642, 8ª Câmara Cível, voto condutor do rel. Des. Ricardo Moreira Lins Pasti, j. 23.03.2017, grifou-se)
"(...) Também não vejo aqui nenhuma restrição sequer ao direito de ir e vir, porque, como também disse o eminente Relator, há outros meios de se locomover a não ser em veículo próprio, Quando mais não seja, foi dito que pode ir de ônibus, a pé, até de bicicleta alugada, hoje nós temos isso – não precisa de carteira de habilitação para dirigir bicicleta –, ou quem sabe até de patinete ou skate, como se vê às vezes pelas ruas."
(TJRS, Habeas Corpus n. 70072211642, 8ª Câmara Cível, Declaração de voto do Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 23.03.2017, grifou-se)
"AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO DE CONCESSÃO DE MEDIDAS COERCITIVAS – INSURGÊNCIA DA PARTE EXEQUENTE - POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DE MEDIDAS ATÍPICAS NECESSÁRIAS À CONSECUÇÃO DO SEU FIM – ART. 139, INC. IV, DO CPC/15 – ENUNCIADO Nº 48 DA ENFAM – SISTEMÁTICA APLICÁVEL APENAS AO CHAMADO “DEVEDOR PROFISSIONAL” QUE, POSSUINDO CONDIÇÕES FINANCEIRAS, CONSEGUE BLINDAR SEU PATRIMÔNIO CONTRA OS CREDORES –ELEMENTOS INDICIÁRIOS NO SENTIDO DE QUE O PADRÃO DE VIDA E NEGÓCIOS REALIZADOS PELO DEVEDOR SE CONTRAPÕEM À UMA POSSÍVEL SITUAÇÃO DE PENÚRIA FINANCEIRA – EVIDENTE MÁ-FÉ DO COMPORTAMENTO ADOTADO PELO DEVEDOR – AUSÊNCIA DE ATENDIMENTO AOS COMANDOS JUDICIAIS – SUSPENSÃO DA CNH E DO PASSAPORTE ATÉ O PARCELAMENTO/PAGAMENTO DA DÍVIDA OU CABAL COMPROVAÇÃO DA EFETIVA IMPOSSIBILIDADE FINANCEIRA E DA INCONTESTÁVEL NECESSIDADE DE EXERCÍCIO DOS DIREITOS ORA SUSPENSOS TEMPORARIAMENTE – IMPOSSIBILIDADE DE CANCELAMENTO DOS CARTÕES DE CRÉDITO – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA QUE POSSUI LIBERDADE CONTRATUAL, NÃO PODENDO O PODER JUDICIÁRIO IMISCUIR-SE NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS PARTICULARES. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
(...)
Muito embora não haja resposta da parte agravada às razões do recurso posto à mesa para julgamento, já que mudou de endereço sem comunicar o Juízo, após dar-se por citado e indicá-lo nos autos, é sabido que as vozes em sentido contrário à pretensão deduzida pela exequente defendem que as medidas adotadas na ação executiva deverão ser sempre única e exclusivamente incidentes sobre o patrimônio do devedor.
(...)
Anote-se, aqui, que não se tratam de mecanismos destinados aos devedores que não têm mais condições para honrar qualquer compromisso financeiro ou os que passam por dificuldades financeiras momentâneas e podem atrasar alguns pagamentos, mas, sim, àqueles chamados “devedores profissionais”, que conseguem blindar seu patrimônio contra os credores com o objetivo de não serem obrigados a pagar os débitos (ALMEIDA, MARÍLIA. Justiça decide tomar de devedor passaporte, CNH e cartões. Seu dinheiro. Revista Exame. São Paulo: Editora Abril, 08.2016).
Entendimento em sentido contrário, além de fazer tábula rasa da intentio legis do legislador expressa no art. 139, inc. IV, do Código de Processo Civil de 2015, manteria a situação do inadimplente voluntário de má-fé exatamente no seu
Status quo ante, ou seja, como já comumente verificado sob a égide do Diploma anterior – fora do alcance do Estado.
(...)
Da análise detida dos autos, observa-se que a presente execução se arrasta há quatro anos sem que a exequente tenha logrado êxito em encontrar qualquer bem móvel ou imóvel suscetível à penhora. No entanto, em que pese a ausência de bens em nome do executado, os elementos indiciários constantes dos autos indicam que o padrão de vida e negócios realizados pelo devedor se contrapõem à uma possível situação de penúria financeira, já que: a uma, realiza operações comerciais com genética zebuína, objetivando o desenvolvimento do melhoramento genético pecuário (no caso, inclusive, a cobrança é decorrente de uma dessas operações); e a duas, o endereço indicado nos autos pelo devedor à época do primeiro acordo é de edifício de alto padrão na capital baiana (em consulta à rede mundial de computadores observa-se a venda de imóveis por cifras milionárias).
É incontestável, ainda, a má-fé do devedor que, tendo realizado acordo de parcelamento da dívida homologado pelo Juízo de origem, solicitou o levantamento da restrição que recaía sobre as reses zebuínas para que, vendendo-as, pudesse realizar o pagamento do crédito exequendo; mas, após levantada a restrição, efetuou a sua venda e deixou de pagar os valores devidos à parte exequente, frustrando, novamente, o direito da credora, certamente com a evidente convicção de sua não-responsabilização.
Mais a mais, o executado sequer atende aos comandos judiciais, mantendo-se, certamente a seu ver, em uma redoma de impunidade, com o patrimônio blindado, longe do alcance do Poder Judiciário.
(...)
Anote-se, aqui, ainda, que as medidas coercitivas deferidas justificam-se na hipótese de que não havendo condições financeiras, não haverá sequer prejuízo ao executado, mormente considerando que se, de fato, não possui qualquer importância financeira – ainda que mínima – para solver a presente dívida, também não possuirá recursos para viagens internacionais ou manter um veículo (que, no caso, pelas consultas, tampouco possui).
(TJPR, Agravo de Instrumento n. 1.616.016-8, 14ª Câmara Cível, Rel. Des. Themis de Almeida Furquim Cortes, j. 22.02.2017)
Em verdade as razões de decidir postas nos entendimentos acima realizaram o correto cotejo a luz do Princípio da Proporcionalidade (CPC/2015, arts. 8º), a examinar e confrontar, conforme as peculiaridades do caso concreto, a necessidade da medida, sua adequação destinada a se imprimir maior efetividade na resolução do conflito, para, ao final se conjugar com a proporcionalidade em sentido estrito2.
Em outras palavras, revela-se palavras ao vento a utilização do princípio da proporcionalidade despida da conjugação de seus postulados ao caso concreto. Tal como pudemos tecer comentários noutra oportunidade, se é certo que materializa-se medida inútil o bloqueio de CNH de um devedor que se encontra em penúria financeira e, por sua vez, utiliza o veículo como único instrumento de trabalho (e quiçá um dia como fruto deste trabalho conseguir honrar o pagamento de sua dívida), também é certo que por vezes referido bloqueio pode revelar medida coercitiva para se saldar determinada execução, dada a peculiaridade do devedor não possuir patrimônio algum em seu nome mas, de outra banda, estranhamente ostentar luxuoso padrão de vida. A medida coercitiva, aplicada subsidiariamente às medidas típicas já esgotadas, pode surtir o efeito desejado para imprimir efetividade ao pagamento da dívida3. O que deixa pobre de fundamento é a afirmação peremptória de qual medida pode e qual não pode.
Neste último exemplo, é mais factível na praxe forense ações de recuperação de crédito arrastarem-se por anos, gasta-se tempo do Judiciário e das partes na tentativa de localização de bens, o devedor se encontra em lugar incerto e não sabido mas, uma vez logrado êxito no bloqueio de determinado ativo, estranhamente o devedor ressurge nos autos no interesse de quitar a dívida ou realizar um acordo. De igual modo esse é o condão da medida coercitiva: aplicada supletivamente4 às medidas típicas e destinada a imprimir maior efetividade a satisfação da tutela jurisdicional.
A par da vigência de referido dispositivo, foi proposta pelo Partido dos Trabalhadores junto ao STF, ação declaratória de inconstitucionalidade (ADI 5941 MC/DF) destinada, dentre outros pedidos, a "(...) declaração de nulidade, sem redução de texto, do inciso IV do artigo 139 da lei 13.105/2015, para declarar inconstitucionais, como possíveis medidas coercitivas, indutivas ou sub-rogatórias oriundas da aplicação daquele dispositivo, a apreensão de carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, a apreensão de passaporte, a proibição de participação em concurso público e a proibição de participação em licitação pública"5.
Em referida ação a Advocacia Geral da União manifestou-se pela improcedência de referida demanda, ao fundamento, em síntese, de que a proporcionalidade da aplicação de referidas medidas indutivas, coercitivas e mandamentais "(...) - que buscam a efetividade do processo – apenas pode ser avaliada diante das especificidades do caso concreto"6., entendimento este também acompanhado em manifestações do então Presidente do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Recentemente sobreveio manifestação da Procuradoria Geral da República opinando pela procedência da ADI 5941 MC/DF), em síntese:
"(...)" 3. A apreensão de Carteira Nacional de Habilitação, passaporte, a suspensão do direito de dirigir e a proibição de participação em concursos públicos ou licitações, como formas de coagir o devedor a cumprir sentença e se submeter a execução, são inconstitucionais.
4. O conjunto de liberdades fundamentais - de contratar, escolher profissão, ir e vir, prestar e usufruir de serviços - não podem ser sacrificadas para coagir ou constranger o devedor de prestação pecuniária.
5. Mesmo com a autorização legislativa presente na clausula geral que possibilita a fixação de medidas atípicas para cumprimento da sentença, o juiz não é livre para restringir mais direitos que o legislador. Ampla discricionariedade judicial, nesse temática, ameaça o princípio democrático.
6. Na aplicação de medidas atípicas, diversas da apreensão de CNH, passaporte, suspensão do direito de dirigir, proibição de participação em concorrências públicas, o juiz deverá fundamentar a decisão para esclarecer como as medidas típicas foram insuficientes no caso e demonstrar a proporcionalidade e adequação da medida atípica que adota.
- Parecer pela procedência do pedido.7"
Respeitado entendimento em sentido contrário, a inteligência do art. 139, IV, do CPC/2015 não deve limitar seu campo interpretativo a um rol de quais medidas atípicas são permitidas e quais não o são, a se divorciar de um cotejo mínimo com as peculiaridades do caso concreto. Se é certo que determinadas medidas podem ser interpretadas como violadoras de garantias fundamentais (a exemplo do bloqueio de CNH), também não se pode perder de vista que a restrição a tais medidas por vezes também viola a efetividade da prestação da tutela jurisdicional, senão a prestação de um serviço pelo Poder Judiciário que "efetivamente" proporcione a realização do direito material.
Afinal, no campo em discussão carecem dados empíricos a revelar se o mais comum, no cenário brasileiro é (i) a frustração de efetivação de tutela jurisdicional (a exemplo de ações de execução que se arrastam por anos a fio ou sentença que reconheçam direitos e, todavia, frustram-se por sua falta de efetividade e cumprimento8) ou, de outra banda, (ii) o abuso de direito praticado por magistrados ao se "pesar a mão" frente a aplicação de seus poderes, em especial o agora polêmico art. 139, IV, do CPC/2015?
De toda sorte, entre se extirpar do sistema determinado dispositivo talvez seja de maior valia permitir sua aplicação conjugando-se, efetivamente, os postulados do princípio da proporcionalidade.
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1 Medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias: há limites para o art. 139, IV?
2 "(...) o desenvolvimento do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade como postulado constitucional autônomo que tem a sedes materiae na disposição constitucional que disciplina o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV). Por outro lado, afirma-se de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido). Vê-se, pois, que o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso é plenamente compatível com a ordem constitucional brasileira. A própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal evolui para reconhecer que esse princípio tem hoje sua sedes materiae no art. 5º, inciso LIV da Constituição Federal (...)" In. MENDES, Gilmar Ferreira. A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal federal. Repertório IOB de Jurisprudência. São Paulo, 1994, p. 469.
3 Bloqueio de passaporte e CNH para quitar dívida fere direito de ir e vir, avaliam advogados.
4 Nesse sentido consolidou-se o Enunciado n. 12, do Fórum Permanente de Processualistas Civis: também no Enunciado 12 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “(arts. 139, IV, 523, 536 e 771) A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II. (Grupo: Execução)."
5 Portal STJ.
6 STF.
7 STF.
8 A exemplo da expressão popular "ganhou mas não levou" ou a sentença, como título executivo judicial, que revela um quadro a se pendurar na parede reconhecendo que "A" deve pagar a "B". Todavia, em termos práticos, frustra-se o efetivo recebimento do crédito por "A" após cadenciado litígio judicial.