Daniel Penteado de Castro
A ação civil pública, disciplinada na lei 7347/85, por força de seu art. 211, também deve ser compreendida a luz dos regramentos ligados a disciplina da chamada ação coletiva, prevista nos arts. 81 a 106, do Código de Defesa do Consumidor – lei 8.078.90, a compreender o denominado microssistema de tutela de diretos coletivos e metaindividuais.
Dentre alguns gargalos recorrente nesta modalidade de ação, emerge o custo financeiro de prova requerida pelo autor da ação civil pública. De um lado, impera o regramento de que aquele que requer a produção de determinada prova compete o ônus de arcar com o custo de sua produção e, em especial na produção de prova pericial, o expert do juízo necessita receber parte de seus honorários antecipadamente como forma de remuneração e pagamento de custos do trabalho que irá de desenvolver.
Por outro lado, o art. 18, da lei 7347/85 é expresso em dizer que nas ações civis públicas não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas.
Coube ao Poder Judiciário aplicar solução prática e, nesta modalidade de ação houve entendimentos, já superados, no sentido de relativizar tal regra a ponto de compelir a parte contrária a arcar com o custo financeiro da prova requerida por seu adversário processual.
Uma corrente mas híbrida entendeu que o autor da ação civil pública que requer a prova para corroborar fatos em seu favor deve custear o pagamento de sua produção; todavia, a parte contrária que deixar de requerer a produção de tal prova fatalmente sucumbirá na demanda por força da aplicação da regra de inversão do ônus da prova.
Embora sob fundamento distinto, este último entendimento reverbera no mesmo problema prático: a parte contrária, que não requereu a produção de prova alguma, fica compelida a arcar com o custo da prova pleiteada por seu adversário (ou obrigada a produzir prova que inicialmente não desejaria e, assim, arcar com o custo financeiro de sua produção)2.
O CPC/2015 reproduziu a regra do art. 27 do CPC/73 no atual art. 91. Todavia, introduziu o § 1º:
"Art. 91. As despesas dos atos processuais praticados a requerimento da Fazenda Pública, do Ministério Público ou da Defensoria Pública serão pagas ao final pelo vencido.
§ 1o As perícias requeridas pela Fazenda Pública, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública poderão ser realizadas por entidade pública ou, havendo previsão orçamentária, ter os valores adiantados por aquele que requerer a prova." (grifou-se)
O novel parágrafo mostra a boa intenção do legislador. Todavia, o tempo verbal empregado no futuro do presente – poderão – reduz sua aplicabilidade a incertezas ou tendência ao esquecimento.
Em recente decisão monocrática prolatada nos autos da Ação Civil Pública n. 1560/M,S o Min. Ricardo Lewandowski bem observou a aplicação do novel § 1º, do art. 91, do CPC/2015, para assim determinar que em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal caberá a este arcar com o custo da prova pericial por ele requerida:
"(...) Inicialmente, transcrevo o art. 18 da Lei da Ação Civil Pública – LACP, que é tradicionalmente invocado para sustentar a compreensão prevalente no Superior Tribunal de Justiça:
"Art. 18. Nas ações de que trata esta lei, não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais."
Com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que se aplica supletivamente ao sistema processual coletivo, composto pela Lei da Ação Civil Pública e parte processual do Código de Defesa do Consumidor, nos termos do art. 1.046, § 2º, do NCPC e do art. 19 da LACP, a interpretação vigente ao tempo do Códex antigo deve ser repensada, sobretudo porque a LACP era omissa com relação ao responsável pelo pagamento dos honorários processuais.
Verifico a compatibilidade dos dispositivos do Código de Processo Civil/1973 com o artigo supra transcrito da LACP, eis que não concebiam o adiantamento dos honorários periciais pelo Ministério Público:
"Art. 27. As despesas dos atos processuais, efetuados a requerimento do Ministério Público ou da Fazenda Pública, serão pagas a final pelo vencido."
Já o NCPC, redigido à luz da realidade atual, em que se sabe que os peritos qualificados para as perícias complexas a serem produzidas nas ações coletivas dificilmente podem arcar com o ônus de receber somente ao final, trouxe dispositivo condizente com os ditames econômicos da vida contemporânea e, no que tange ao aspecto específico objeto deste processo, assim dispôs no seu art. 91:
"Art. 91. As despesas dos atos processuais praticados a requerimento da Fazenda Pública, do Ministério Público ou da Defensoria Pública serão pagas ao final pelo vencido.
§ 1º As perícias requeridas pela Fazenda Pública, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública poderão ser realizadas por entidade pública ou, havendo previsão orçamentária, ter os valores adiantados por aquele que requerer a prova.
§ 2º Não havendo previsão orçamentária no exercício financeiro para adiantamento dos honorários periciais, eles serão pagos no exercício seguinte ou ao final, pelo vencido, caso o processo se encerre antes do adiantamento a ser feito pelo ente público."
Ora, como todos sabemos, propor ações civis públicas, sobretudo contra as Fazendas Públicas respectivas, é uma das principais atribuições dos Ministérios Públicos em nosso sistema processual. Assim, parece-me inexorável reconhecer que o dispositivo foi redigido para vigorar também no processo coletivo, provocando uma releitura do art. 18 da Lei da Ação Civil Pública para conferir maior responsabilidade ao Parquet no ingresso das ações coletivas, por meio de incentivos financeiros voltados a esta finalidade.
Outrossim, o NCPC disciplinou o tema de forma minudente, tendo instituído regime legal específico e observado que o Ministério Público ostenta capacidade orçamentária própria, tendo, ainda, fixado prazo razoável para o planejamento financeiro do órgão.
Note-se que, com a presente interpretação, não se está, de maneira nenhuma, enfraquecendo o processo coletivo. Pelo contrário, o que se pretende é, de fato, fortalecê-lo, desenvolvendo-se incentivos para que apenas ações coletivas efetivamente meritórias sejam ajuizadas.
Não é demais lembrar que no sistema estadunidense da class action, um importante paradigma de sistema processual coletivo, as partes têm o dever de arcar com custos elevados, de lado a lado, e os incentivos financeiros são calibrados para evitar ações frívolas mas, de outra parte, para representar risco real às atividades empresariais em desacordo com a lei (Ver: HENSLER, Deborah R. et al. Class action dilemmas: Pursuing public goals for private gain. Rand Corporation, 2000). Frequentemente, o atual regramento do processo coletivo não cumpre a nenhum desses objetivos.
Voltando ao sistema brasileiro, ressalto que perícias poderão ser realizadas por entidades públicas, cujo rol é bastante vasto. Sublinho que até mesmo as universidades públicas podem ser convidadas a colaborar para as perícias judiciais e que, nesses casos, eventualmente os custos podem ser menores ou inexistentes, a depender das cooperações a serem desenvolvidas.
Penso que aprimorar os incentivos financeiros para que o Parquet tome medidas judiciais com maior responsabilidade é de todo desejável, eis que a atuação do Ministério Público como curador universal de todos os valores públicos, e sua pujante proeminência nessa função (ver, e.g.: SBDP. Ações Coletivas no Brasil: Temas, Atores e Desafios da Tutela Coletiva. Série Justiça Pesquisa: Direitos e Garantias Fundamentais. Brasília: Conselho Nacional de Justiça - CNJ, 2017), não encontra justificação nem prática nem teórica.
Criar incentivos para que esse órgão público passe a atuar, com maior frequência, juntamente com legitimados de direito privado, aperfeiçoando suas parcerias e oportunidades de litisconsórcio, é uma das tarefas pendentes para que a tutela do interesse público seja feita de forma mais profissional, especializada e responsável.
Todas essas ponderações parecem-me da maior relevância diante do que dispõem os arts. 5º e 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que enfatizam o dever do juiz de atender aos fins sociais a que
a lei se dirige, as consequências práticas da decisão e às exigências do bem comum.
Destaco que o fortalecimento do processo coletivo brasileiro passa, necessariamente, pela maior equiparação do poder das partes, pela melhor calibração dos incentivos para o agir responsável e pelo fortalecimento da atuação dos agentes privados, como forma de estimular a advocacia a envolver-se e a comprometer-se com este ramo da ciência processual, que é mais condizente com as necessidades atuais da burocratizada e complexa sociedade brasileira.
O NCPC trouxe regra que, a meu sentir, amolda-se a essas três necessidades e que deve ser prestigiada, porque harmônica com o desenho ideal do sistema processual coletivo.
Sublinho, em suma, que cabe à jurisprudência construir melhores soluções à luz do ordenamento de que dispomos para o regramento processual coletivo e que, neste aspecto ora em debate, parece-me claro em apontar o caminho, que é o da maior responsabilização do Parquet pela sua atuação em tais processos.
Ante todo o exposto, acolho a argumentação da União Federal para responsabilizar o Ministério Público pelo pagamento dos honorários periciais da perícia por ele requerida, nos termos do art. 91 do Código de Processo Civil.
(...)"
(STF, ACP 1560/MS, decisão prolatada aos 13.12.2018, grifou-se)
Respeitado entendimento em sentido contrário, a r. decisão supra é digna de aplausos. A uma, por atender o comando do § 1º, do art. 91, do CPC/2015 A duas, com vistas se permitir uma processo cuja atuação das partes em juízo deve pautar-se em ética e responsabilidade, em especial quanto ao requerimento de produção de provas e respectivo ônus financeiro a ser sustentado por aquele que requer a prova. A três, em havendo insuficiência de recursos pela parte que requer a produção de determinada prova, o comando constitucional previsto no art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, é cristalino em determinar que o "(...) o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.", o que não se confunde em impor a parte contrária o ônus financeiro de arcar com o custo de determinada prova.
__________
1 Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. (Incluído lei 8.078, de 1990)
2 Nesse sentido já decidiu o STJ: Processual civil. Inversão do ônus da prova. Extensão. Honorários periciais. Pagamento. Perícia determinada de ofício. Autor beneficiário da justiça gratuita.
1. Cinge-se a controvérsia em saber se a questão de inversão do ônus da prova acarreta a transferência ao réu do dever de antecipar as despesas que o autor não pôde suportar.
2. A inversão do ônus da prova, nos termos de precedentes desta Corte, não implica impor à parte contrária a responsabilidade de arcar com os custos da perícia solicitada pelo consumidor, mas meramente estabelecer que, do ponto de vista processual, o consumidor não tem o ônus de produzir essa prova.
3. No entanto, o posicionamento assente nesta Corte é no sentido de que a parte ré, neste caso, a concessionária, não está obrigada a antecipar os honorários do perito, mas se não o fizer, presumir-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor (REsp n. 466.604/RJ, rel. Min. Ari Pargendler e REsp n. 433.208/RJ, rel. Min. José Delgado).”
(STJ - AgR REsp n. 104.2919/SP, 2ª Turma, rel. Min. Humberto Martins, j. 05.03.2009, v.m., DJe, de 31.03.2009)