Elias Marques de Medeiros Neto
Como já abordado nesta coluna, o CPC/15 prevê o instituto dos negócios processuais atípicos, conforme estabelece o artigo 190: "Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo".
Antonio do Passo Cabral1 define o negócio processual da seguinte forma:
"convenção ou acordo processual é o negócio jurídico plurilateral, pelo qual as partes, antes ou durante o processo e sem a necessidade de intermediação de nenhum outro sujeito, determinam a criação, modificação e extinção de situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento".
Luiz Guilherme Marinoni2 observa:
"É possível também que as partes dentro do espaço de liberdade constitucionalmente reconhecido estipulem mudanças no procedimento. Esses acordos processuais, que representam uma tendência de gestão procedimental oriunda principalmente do direito francês, podem ser realizados em processos que admitam autocomposição. Podem ser acordos preprocessuais, convencionados antes da propositura da ação, ou processuais, convencionados ao longo do processo. Os acordos processuais convencionados durante o processo podem ser celebrados em juízo ou em qualquer outro lugar (escritório de advocacia de uma das partes, por exemplo). O acordo processual praticado fora da sede do juízo deve ser dado ao conhecimento do juiz imediatamente, inclusive, para efeitos de controle de validade (art. 190, parágrafo único, CPC)."
Em essência, o artigo 190 do CPC/15 prevê que as partes podem convencionar sobre aspectos procedimentais, estabelecendo mudanças no rito processual.
Não há dúvida que há clara divergência doutrinária e jurisprudencial sobre os limites para o manejo do negócio processual atípico.
Por isso, as manifestações jurisprudenciais autorizando a aplicação do artigo 190 do CPC/15 se mostram interessante norte para a consolidação dos contornos a serem observados pelas partes quando da celebração do negócio processual atípico.
No julgamento do Agravo de Instrumento 2002087-65.2018.8.26.0000, conforme acórdão relatado pelo Desembargador Sérgio Gomes, a 37ª. Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu ser plenamente cabível o negócio processual atípico para prever medidas constritivas contra o devedor, afastando-se a decisão de primeira instância que havia julgado pela inconstitucionalidade do artigo 190 do CPC/15:
"Agravo de instrumento Execução de título extrajudicial - Instrumento particular de confissão de dívida - Cláusula contratual que prevê, em caso de novo inadimplemento, a possibilidade de penhora e arresto de bens antes mesmo da citação Indeferimento da pretensão na origem, sob fundamento de inconstitucionalidade do art. 190 do CPC. Descabimento. A partir do advento do novo CPC, é possível às partes celebrarem negócio jurídico processual, amoldando as normas processuais de acordo com os seus interesses - Negócio jurídico celebrado entre partes plenamente capazes. Medidas constritivas autorizadas, fixando-se, todavia, a penhora de recebíveis de cartões de crédito e de ativos financeiros a 15% dos valores que vierem a ser encontrados, até quitação integral da dívida, para não inviabilizar a continuidade das atividades da empresa - Decisão reformada - Recurso parcialmente provido. (...). Na espécie, o que se tem da avença celebrada é que o credor anuiu em receber a dívida de forma parcelada e sem atualização, enquanto que os agravados acordaram com a efetivação, no caso de inadimplência, de atos processuais de constrição antecipados e facilitados em caso de eventual descumprimento. Referida convenção revela-se compatível com os princípios e garantias constitucionais. De outro lado, a assertiva dos devedores de que assinaram o instrumento sem orientação jurídica não pode ser aceita, ausente qualquer comprovação da ocorrência de vício de consentimento, dolo, erro, fraude ou coação que pudesse inquiná-lo de nulidade. Registre-se, por oportuno, que a execução é feita no interesse do credor (art. 797 do CPC), sendo inquestionável que já vem sofrendo prejuízos em razão do inequívoco inadimplemento dos devedores. Ademais, a providência pretendida contribuirá de maneira mais célere para a efetividade do processo executivo, cuja finalidade principal é justamente a expropriação de bens do devedor para a satisfação integral do crédito perseguido. (...).Nesse passo, ratifica-se o efeito ativo concedido, para que seja efetivado o arresto sobre os direitos aquisitivos derivados de alienação fiduciária que o fiador Naoto Carlos Saito possui sobre o imóvel constante da matrícula 38.936 1º CRI de Santos/SP - (fls. 54/56 autos principais). De outro lado, igualmente admissível a constrição sobre recebíveis de cartões de crédito no percentual de 15%, até a satisfação do crédito. Outrossim, defere-se, também, o arresto 'on line' sobre 15% do montante que eventualmente for encontrado nas contas correntes e aplicações financeiras de titularidade dos executadas, percentual esse também adotado para não inviabilizar as atividades dos devedores. Por fim, embora sustentem os executados que a constrição no percentual de 15% prejudicará a continuidade das atividades da empresa, nada restou comprovado nos autos, ficando, portanto, mantido esse montante, podendo sofrer eventual revisão, contudo, caso efetivamente demonstrada tal necessidade."
Na mesma linha de admissão do artigo 190 do CPC/15, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, no julgamento do Agravo de Instrumento - Nº 1404094-69.2018.8.12.0000 – Dourados, em acórdão relatado pelo Desembargador Vilson Bertelli, entendeu pela possibilidade de as partes celebrarem negócio processual atípico para prever a denunciação da lide da empresa seguradora:
"E M E N T A - AGRAVO DE INSTRUMENTO – INDENIZAÇÃO – ACIDENTE DE TRÂNSITO – DENUNCIAÇÃO DA LIDE – NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL – MEDIDA JUDICIAL BENÉFICA ÀS PARTES – DEFERIMENTO. Nos termos do artigo 190 do Código de Processo Civil, o magistrado não pode interferir no negócio jurídico processual, consistente na denunciação da lide, mesmo quando regularizada após o início da instrução do processo, com o objetivo de incluir a seguradora na condição de denunciada, especialmente quando essa medida judicial beneficia as partes e contribui para solução definitiva da crise de direito material, fundamento da demanda, e estão preenchidos os requisitos legais. Recurso provido”. Quanto ao artigo 190 do CPC/15, aponta que: “Essa regra veio a consagrar a possibilidade de as partes firmarem negócios processuais, antes severamente negado por parte da doutrina processual. Mesmo quando admitido, o negócio processual se limitava a hipóteses tipificadas, como a eleição do foro. A norma do Código de Processo Civil de 2015 criou, a exemplo do direito inglês e francês, uma cláusula geral de modo a permitir que as partes incluam como objeto de negociação processual a situação das partes e do procedimento. Dinamarco acentua que esses ajustes se configuram em verdadeiros atos de autorregulação dos próprios interesses, essência de todos os negócios processuais. Constituem-se em declarações de vontade destinadas a produzir efeitos. Premiam a autonomia da vontade e, por serem atos processuais dado que praticados no processo pelos sujeitos processuais, são negócios jurídicos processuais. O Artigo 190 do CPC, ao final, estabelece que tais negócios processuais podem ter por objeto o procedimento e as posições jurídicas processuais. Além disso, é de ser exigido o preenchimento dos requisitos de validade de qualquer negócio jurídico: agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei. Esses requisitos podem ser sindicados pelo juiz, como todo e qualquer requisito de validade. No caso concreto, esses requisitos estão evidenciados. As partes são capazes, o objeto é lícito (denunciação da lide) e a forma escrita foi observada, visto que as partes, ainda que em momentos diferentes, manifestaram-se no mesmo sentido, pela admissão da intervenção de terceiro. Tal negociação incidiu sobre o procedimento, qual admissão de ampliação subjetiva e objetiva da demanda, em fase posterior à inicial, consagrada para tal fim. Incidiu, de igual modo, sobre a posição jurídica das partes, de maneira a permitir que o poder de denunciação pudesse ser exercido após a regularização de mero aspecto formal, consistente na apresentação ulterior da apólice de seguro correta. A circunstância de prejudicar o término da fase instrutória também não justifica o indeferimento da denunciação da lide. A negociação processual é permitida em qualquer fase do processo, e independe de homologação judicial. Vale dizer, só se admite intervenção quando há nulidade, visto que o ordenamento jurídico em vigor não autoriza o magistrado a interferir na vontade das partes de mudarem o procedimento, o ônus, os poderes, faculdades e deveres processuais. Aliás, a inclusão da empresa Bradesco Auto/RE Companhia de Seguros beneficia ambas as partes, especialmente se o pedido inicial for acolhido. A autora será beneficiada porque poderá apresentar cumprimento de sentença diretamente contra seguradora, conforme posicionamento jurisprudencial atual, e a empresa ré/denunciante não terá a necessidade de ajuizar demanda de regresso. Ademais, a presença da denunciada, como litisconsorte da ré, ampliará o contraditório e contribuirá para a instrução e solução justa da demanda. A solução prestigia fortemente os princípios da economia e da eficiência (CPC, art. 8º). Não bastassem esses argumentos, o contraditório foi respeitado e será observado, ao permitir que a litisdenunciada ingresse como sujeito do processo e participe de todo o procedimento, da fase instrutória, inclusive. Diante disso, deve ser deferida a denunciação da lide porque havia contrato de seguro na época do acidente, houve negócio jurídico processual sobre essa matéria e é medida judicial voltada à solução definitiva da crise de direito material. Não se ignora, outrossim, o fato da empresa ré ter requerido a denunciação no momento oportuno, na contestação, que só não foi deferida em razão do equívoco na juntada da apólice do seguro vigente no ano anterior ao acidente, mas o referido seguro foi renovado posteriormente. Não houve, portanto, preclusão temporal."
Ambos os julgados prestigiaram a aplicação do artigo 190 do CPC/15, e buscaram traçar uma leitura em conformidade com as normas fundamentais do CPC/15.
Mas é certo que o Poder Judiciário ainda terá o desafio de consolidar as fronteiras de aplicação deste importante instituto previsto no artigo 190 do CPC/15, tendo sempre como base a necessária leitura constitucional do processo.
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2 MARINONI, Luiz Guilherme. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 244.