A celeridade processual e o bom andamento da Justiça são responsabilidades de todos, em especial das partes e dos serventuários que atuam nos casos em litígio. Um dos meios de garantir que as boas práticas serão seguidas, de modo a coibir condutas atentatórias à boa-fé, é a aplicação, quando pertinente, de sanções a litigantes de má-fé, sem prejuízo de outras penalidades aplicadas aos serventuários quando estes não corresponderem às suas responsabilidades. O Código de Processo Civil/2015 traz modificações sutis na redação de dispositivos que disciplinam a destinação dos recursos advindos das sanções pecuniárias, mas tais alterações são substanciais à correta e justa interpretação da motivação legislativa.
De acordo com o artigo 96 do Código de Processo Civil de 2015, o valor das sanções impostas ao litigante de má-fé reverterá em benefício da parte contrária, e o valor das sanções infligidas aos serventuários pertencerá ao Estado ou à União. O dispositivo guarda correspondência com o artigo 35 do CPC/1973 e inova ao deixar de considerar como custas, as sanções impostas às partes a título de litigância de má-fé, bem como inclui expressamente a possibilidade de reversão à União, e não apenas ao Estado, os valores correspondentes às sanções aplicadas aos serventuários1.
Ao desconsiderar as sanções a título de má-fé como custas, o CPC/2015 corrige a distorção que ocorria nos casos em que a parte vencedora do litígio tinha aplicada contra si, no curso do processo, sanções por litigância de má-fé. É sabido que a aplicação de sanções por si só não implica na perda do processo, mas, quando interpretada como custas, resultava à parte vencida, vítima da conduta maliciosa da parte vencedora, a obrigação de ressarcir a litigante de má-fé pelas multas às quais deu causa, o que configurava uma distorção no objetivo da norma.
Desse modo, o artigo 96 do atual diploma corrige essa falha. Ao eliminar a equiparação de tais penalidades às custas processuais, mantém a previsão de que as sanções por litigância de má-fé devem ser revertidas à parte contrária. Nesta perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado a norma no fito de conferir celeridade processual e inibir práticas danosas às partes e à própria Justiça, desencorajando tentativas de alteração da verdade processual e indução da Corte a erro.2
A boa-fé é princípio basilar do Direito e assim se espera também das relações humanas, mas infelizmente a litigância de má-fé ainda compõe generoso montante das sanções no Judiciário brasileiro. A Suprema Corte também não está a salvo de práticas maliciosas, como exemplo, é possível citar a condenação solidária de autor e advogado pela ausência de identidade material entre o paradigma invocado e o ato reclamado, em interposição de Reclamação no Supremo Tribunal Federal.3
Além disso, a expressão "ou à União" foi incluída no texto do artigo 96, do CPC/2015, quando comparado ao diploma anterior, no que se refere à reversão das sanções aplicadas aos serventuários. No antigo Código de Processo Civil, apenas “Estado” figurava como beneficiário de sanções aplicadas aos serventuários da Justiça, e isso conferia margem para intepretação do vocábulo aquém de seu sentido lato sensu, aplicando-o tão somente para as unidades federativas e excluindo-se a União.
Conforme o acordo ortográfico da língua portuguesa, que passou a produzir efeitos no Brasil em 1º de janeiro de 2009, o uso de inicial minúscula deve ser empregado “ordinariamente, em todos os vocábulos da língua nos usos correntes”, excetuados apenas os nomes próprios, inclusive de instituições, as siglas e os símbolos4. O acordo ortográfico faculta o uso de inicial maiúscula ou minúscula para os logradouros públicos e “permite ambas as grafias, quer para o emprego genérico do vocábulo (os Estados da federação ou os estados da federação), quer para o uso na expressão que especifica os membros da federação (o Estado da Bahia ou o estado da Bahia)5.
Já a maioria dos dicionários de língua portuguesa, a exemplo do Buarque de Holanda e Houaiss6, recomenda escrever com inicial maiúscula na “acepção de nação com estrutura própria e organização política, ou conjunto das estruturas institucionais que asseguram a ordem e o controle de uma nação”7 e os estados da federação com letra minúscula, a exemplo de “estado da Bahia”.
Os manuais de redação das secretarias de comunicação oficiais utilizam o termo com a diferenciação acima destacada, mas na Constituição Federal/1988 a palavra “Estado” é grafada com inicial maiúscula em ambos os casos, ou seja, quando se refere à nação politicamente organizada ou às unidades da federação. Excetuam-se apenas casos como “estado de sítio”, “estado de defesa” e similares. Desse modo, a fim de eliminar possível imprecisão hermenêutica, o legislador do CPC/2015 optou por deixar expressos ambos os vocábulos, Estado e União, de modo a evidenciar que a União também compõe a diretriz normativa, alinhando-se à forma utilizada na Constituição Federal.
Em prosseguimento à análise, o artigo 97 é uma inovação do diploma de 2015, não possuindo correspondente no CPC/1973, e prevê a possibilidade de criação de fundos de modernização do Poder Judiciário, pela União e os Estados, para onde serão revertidos os valores das sanções pecuniárias processuais destinadas a estes entes, além de outras verbas previstas em lei. O dispositivo é programático, já que trata da faculdade de a União e os Estados criarem seus fundos de modernização, compostos de receitas advindas de sanções pecuniárias impostas às partes8, sejam elas recebidas espontaneamente ou em execução forçada9.
Para os casos de execução forçada, importa destacar o diálogo com outra norma, o art. 77 do CPC/2015. Este dispositivo, em seu parágrafo 3º, estabelece que em casos de ausência de pagamento no prazo fixado pelo juiz da multa por litigância de má-fé, ela deverá ser inscrita como dívida ativa da União ou do Estado após o trânsito em julgado da decisão que a fixou, e sua execução observará o procedimento da execução fiscal. O valor da multa pode chegar a vinte por cento do valor da causa (art. 77, §2º, CPC/2015).
Embora tramite, desde 2016, projeto de lei para a criação do Fundo Especial da Justiça Federal (FEJUF)10, o fundo relativo à União ainda não se concretizou e nesse ponto, o artigo 97 do novo diploma legal permanece sem regulamentação. Ao passo que, como destaca Carreira Alvim, todos os Estados-membros já criaram seus fundos especiais de modernização do Poder Judiciário, antes mesmo do advento do novo Código.11
As possibilidades de sanções pecuniárias no Código de Processo Civil são diversas, não se restringindo à litigância de má-fé, e podem incorrer sobre qualquer pessoa que pratique ato atentatório à dignidade da justiça. O Código de Processo Civil vigente estabelece algumas situações que implicam na prática de ato contrário ao bom e justo andamento processual, são exemplos: depositário infiel (art. 161, CPC/2015), ausência de comunicação no prazo legal, sem justa causa, acerca do recebimento da citação recebida por meio eletrônico (art. 246, § 1º-C, CPC/2015) e não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação (art. 334, § 8º, CPC/2015). Além destes exemplos, a jurisprudência e a análise individualizada dos casos podem implicar em transgressão de princípios processuais e na aplicação de multas às partes ou aos serventuários.
A possibilidade de aplicação de multa nesses casos é crucial à definição de um campo de atuação ético aos envolvidos no litígio, de modo que todos primem pela celeridade e justa prestação jurisdicional. Importa também lembrar que sanções não são um fim em si mesmas, tampouco objetivam apenas punir, sua função é também pedagógica. A utilização desses recursos deve estar conectada aos objetivos das normas que os fundamentam, e por isso a previsão de fundos de modernização do Poder Judiciário. O CPC/2015 veio para harmonizar as previsões legais, conectando os recursos advindos de sanções aos seus justos beneficiários, a modernização do Poder Judiciário e logo, em prol de todos os jurisdicionados.
__________
1 AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.166
2 STJ - AgInt no AgInt no RMS: 48497 RJ 2015/0136174-3, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 23/08/2018, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/08/2018
3 Rcl 42457 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 28/09/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-267 DIVULG 06-11-2020 PUBLIC 09-11-2020
4 Disponível aqui. Acesso em 23 nov. 2022
5 Disponível aqui. Acesso em 23 nov. 2022
6 Disponível aqui. Acesso em 24 nov. 2022
7 Disponível aqui. Acesso em 23 nov. 2022
8 Artigo alusivo ao tema já publicado por este autor e disponível aqui.
9 Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:
[...]
IV - Cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação;
[...]
VI - Não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso.
[...]
§ 2º A violação ao disposto nos incisos IV e VI constitui ato atentatório à dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da conduta.
§ 3º Não sendo paga no prazo a ser fixado pelo juiz, a multa prevista no § 2º será inscrita como dívida ativa da União ou do Estado após o trânsito em julgado da decisão que a fixou, e sua execução observará o procedimento da execução fiscal, revertendo-se aos fundos previstos no art. 97 .
[...]
10 Disponível aqui. Acesso em 22.11.2022
11 ALVIM, J.E. Carreira. Comentários ao Novo Código de Processo Civil - Lei 13.105, de 16 de março de 2015 - Atualizada pela Lei 13.256, de 04 de fevereiro de 2016 - Volume II - Arts. 82 ao 148. Curitiba: Juruá, 2015, p. 109.