A elaboração do Código de Processo Civil de 2015 foi orientada por uma forte valorização dos precedentes. Ao estabelecer que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente1, o diploma processual instituiu um imperativo à uniformidade, estabilidade, integridade e coerência das decisões judiciais.
O código apresenta, de forma inovadora, que as demandas repetitivas serão resolvidas por meio de uma técnica processual que possui a natureza jurídica de incidente. Inicialmente inspirado no instituto do Musterverfahren do sistema jurídico alemão, que atribuía força vinculativa à decisão de mérito no procedimento-modelo2, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) é uma das novidades do diploma processual brasileiro e tem a “finalidade de auxiliar no dimensionamento da litigiosidade repetitiva mediante uma cisão da cognição por meio do procedimento-modelo ou procedimento-padrão”3.
Em outras palavras, esse incidente tem por objetivo a concentração da apreciação de questões jurídicas – de direito material ou processual – comuns a casos similares, de forma que a matéria seja pacificada e passe a vincular os demais casos semelhantes. Trata-se de uma técnica procedimental cabível quando houver, simultaneamente, nos termos do artigo 976 do CPC, a efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
O Código não foi específico no que tange ao número mínimo de processos repetitivos que teriam o potencial de fomentar o incidente em comento. Nesse contexto, o Fórum Permanente de Processualistas Civis editou o Enunciado 87 e passou a considerar que “a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas não pressupõe a existência de grande quantidade de processos versando sobre a mesma questão, mas preponderantemente o risco de quebra da isonomia e de ofensa à segurança jurídica”4.
De acordo com o artigo 977 do CPC, o pedido de instauração do incidente será dirigido ao presidente de tribunal e poderá ser suscitado pelo juiz ou relator (por ofício), pelas partes (por petição), pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública (por petição). Tanto o ofício quanto a petição devem ser bem fundamentados e instruídos com os documentos aptos para a demonstração de sua necessidade e utilidade5.
O incidente não exige o pagamento de custas6 e como as partes gozam da liberdade de desistir do processo a qualquer tempo, o §1º do artigo 976 do CPC prevê que a desistência ou o abandono do processo não impede o exame de mérito do incidente. A interferência do Ministério Público é obrigatória e, na hipótese de desistência ou abandono do requerente, é o órgão ministerial quem assumirá a causa na qualidade de parte, porém, a decisão proferida nos autos não afetará a parte que desistiu da ação7.
Nos termos do §3º do artigo 976, a inadmissão do incidente por ausência de qualquer de seus pressupostos de admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito, seja o incidente novamente suscitado. Nessa toada, o parágrafo seguinte estabelece que é incabível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva.
A doutrina elucida que o IRDR é trifásico, sendo a primeira fase a instauração e admissão do incidente. Nessa etapa inaugural, abarcam-se tanto os atos preparatórios ao debate como o reconhecimento do objeto em que incidirá a tese jurídica formulada. A segunda fase é da afetação e instrução, momento em que se compreende a delimitação da estruturação, atuação dos legitimados presentes no rol do artigo 977 do CPC, as possibilidades de intervenção e os atos instrutórios. A terceira fase, por sua vez, é o julgamento, em que se fixa a tese jurídica e os possíveis recursos que podem ser interpostos contra esse pronunciamento judicial8.
O incidente de resolução de demandas repetitivas enquadra-se no que a doutrina tem denominado de “instrumento de molecularização de demandas atomizadas”9. Ressalta-se que o IRDR não é uma ação autônoma, tampouco um recurso. Trata-se de um incidente processual, ou seja, é o apontamento de questão controvertida com o objetivo de se obter tutela jurisdicional e fixação de um precedente.
Por meio desse incidente obtém-se uma decisão judicial dotada de eficácia vinculante. A instauração desse instrumento tem como fundamento essencial três princípios constitucionais, quais sejam: a isonomia, que visa garantir igual tratamento em casos iguais; a razoável duração do processo, assegurando a celeridade processual como um elemento básico; e a segurança jurídica, possibilitando previsibilidade do resultado a partir de um caso paradigmático, previamente estabelecido pelos tribunais, para garantir a uniformidade das decisões.
No âmbito do Poder Judiciário, a valorização dos precedentes deve ser articulada ao princípio do livre convencimento do magistrado. A vinculação ao precedente não é centrada nas circunstâncias fáticas que serviram de base à controvérsia, mas sim nos fundamentos que sustentaram a decisão a ser reproduzida em casos futuros. O livre convencimento faz-se presente na abertura do sistema à possibilidade de o magistrado, aplicar o precedente ou deixar de fazê-lo. A vinculação dá-se no que respeita à norma contida na ratio decidendi do precedente, não restringindo a autonomia de julgamento, mas criando “uma disciplina mais clara do método de trabalho do juiz”10.
Depois de dois anos de vigência do CPC/2015, o grupo de pesquisa Observatório Brasileiro de IRDRs da Universidade de São Paulo (USP), campus Ribeirão Preto, publicou o primeiro relatório analítico de um estudo acurado sobre a aplicação do novel incidente.
A partir dos dados apresentados, em análise geral dos tribunais estaduais, verifica-se que a proporção de incidentes não admitidos é de 70%11. Por outro lado, “retirando da análise do total de incidentes instaurados apenas aqueles do TJSP e do TJRJ, os quais concentram o maior número de incidentes inadmitidos, a proporção entre inadmitidos/admitidos cai para 61% (inadmitidos)/ 39% (admitidos)12. Na mesma linha, refazendo a análise do julgamento de admissibilidade sem a contagem dos tribunais de grande porte (TJRJ, TJSP, TJRS, TJPR e TJMG) – de acordo com os critérios do relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça13 –, a proporção entre inadmitidos/admitidos cai para 58% (inadmitidos) e 42% (admitidos)14.
A pesquisa identificou que 60% dos pedidos de instauração do incidente são suscitados pelas partes, seguidas pelos membros dos tribunais, com 32%, e por último aparecem o Ministério Público e a Defensoria Pública, com 5% e 0,5% respectivamente. Contudo, embora as partes sejam responsáveis pelo maior número de solicitações de instaurações de IRDRs, são os membros dos tribunais – incluindo relatores, câmaras ou órgãos dos tribunais e juízes de primeira instância – que têm obtido a maior parte das decisões favoráveis à admissibilidade do incidente. Enquanto o Poder Judiciário conta com um índice de sucesso de 55%, as partes do processo originário somam apenas 17%15.
No que concerne à matéria discutida, revela-se a predominância de incidentes que abordam questões de direito administrativo, incidindo em 37,37% da amostra total, seguidos das matérias de direito processual com 29,23%, direito civil com 19,79% e tributário com 16,98%16. Por outro lado, resultados da pesquisa revelam ínfima preocupação com a abordagem acerca da representatividade do caso paradigma, caso-padrão do IRDR, pelos tribunais. Da amostra de 196 julgamentos em que o incidente foi admitido, em consulta ao acórdão disponibilizado foi possível verificar que em apenas 2% dos casos houve a análise de representatividade do caso17.
Outro dado interessante é que o tempo médio entre o julgamento de admissibilidade e de mérito dos IRDRs de todos os tribunais é de 9,29 meses e na maioria dos casos analisados em que houve julgamento do mérito não foram apresentados recursos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao Supremo Tribunal Federal (STF)18. Nesse ponto, cabe assinalar que se cada tribunal dita suas próprias normas sobre questões que afetam todo o cenário nacional, cria-se a possibilidade de uma “federação pelo Judiciário”19.
Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, foi instituída dogmática adequada a um processo objetivo que permite soluções uniformes a casos em que sejam veiculadas as mesmas questões de direito, garantindo assim segurança, previsibilidade e racionalidade à ordem jurídica como um todo. A valorização do precedente judicial pelo atual CPC integra um processo de commonlawlização do direito brasileiro orientado à busca de uma prestação jurisdicional isonômica, célere e segura. Isso significa que, além da inspiração alemã, a Comissão do Anteprojeto do CPC/2015 também foi instigada pela sistematização do Reino Unido, afastando da figura do juiz a legenda de mero aplicador da lei, concedendo-lhe legalmente a competência de intérprete, e promovendo a jurisprudência à fonte de direito.
A propensão do Brasil para beber de várias experiências mundiais decorre, entre inúmeros motivos, da formação recente desta nação habituada ao sincretismo, ao pluralismo e à diversidade. A sociedade brasileira não é monolítica ou fundamentalista. No direito constitucional, o Brasil adota os modelos de controle concentrado e difuso, experimentando os modelos europeu e americano. No direito processual, tal fenômeno ocorre com a aproximação dos sistemas da common law e da civil law. A prática e a aplicação do instituto do IRDR serão decisivas para o aprimoramento e a consecução de seus objetivos, com vistas a assegurar isonomia, razoável duração do processo e segurança jurídica.
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1 CPC/2015. Art. 926.
2 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas. Revista de processo, v. 32, n. 147, p. 123-146, maio 2007.
3 AMARAL, Sérgio Tibiriçá; CEGARRA, Carolina Menck de Oliveira; MIZUSAKI, Bianca Thamiris. Incidente de Resolução das Demandas Repetitivas: uma análise crítica à lus dos princípios constitucionais. P. 243.
4 Disponível aqui.
5 CPC/2015. Art. 977, parágrafo único.
6 CPC/2015. Art. 976, §5°.
7 CPC/2015. Art. 976, §2°.
8 TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. 2. Ed. Salvador: JusPodivm, 2017. P. 277.
9 PINTO, Luis Filipe Marques Porto Sá. Técnicas de tratamento macromolecular dos litígios: tendência de coletivização da tutela processual civil. Revista de processo, v. 35, n. 185, p. 117-144, jul. 2010. P. 185.
10 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O livre convencimento motivado não acabou no novo CPC. Acesso em 28 de setembro de 2016.
11 FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. I Relatório de Pesquisa. Observatório Brasileiro de IRDRs: Dados de incidentes suscitados de 18 de março de 2016 a 15 de junho de 2018. Coordenação de Camilo Zufelato. Ribeirão Preto: novembro de 2019. Disponível aqui. P. 26.
12 Idem. P. 38.
13 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2021. Brasília: CNJ. 2021. P. 34. Disponível aqui.
14 FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. I Relatório de Pesquisa. Observatório Brasileiro de IRDRs: Dados de incidentes suscitados de 18 de março de 2016 a 15 de junho de 2018. Coordenação de Camilo Zufelato. Ribeirão Preto: novembro de 2019. P. 44.
15 Idem. Pp. 59-63.
16 Ibidem. P. 67.
17 Ibid. P. 81.
18 Ibid. Pp. 122-125.
19 Termo proposto por Teresa Arruda Alvim quando opinou sobre as inadmissões de recursos especiais em IRDR.