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Sentença inconstitucional revestida de coisa julgada e segurança jurídica

Sentença inconstitucional revestida de coisa julgada e segurança jurídica.

27/10/2020

Denomina-se coisa julgada a decisão judicial de que já não caiba recurso (§3º, art. 6º da LIDNB), ou seja, é aquela dotada de imutabilidade. A coisa julgada formal "decorre da imutabilidade da decisão dentro do processo em que ela foi proferida pela impossibilidade de interposição de recursos, quer porque a lei não mais os admite, quer porque se esgotou o prazo estipulado"1. A coisa julgada material, por sua vez, é "a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso" (art. 502 do CPC/2015), produzindo efeitos no processo em que foi proferida como também em outros litígios.

Tanto a coisa julgada formal quanto a material possuem o condão de estabilizar os efeitos futuros da decisão e impedem que o Judiciário rediscuta as questões já soberanamente decididas. Esse fenômeno se explica em virtude da necessidade de se tutelar a segurança jurídica, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Tamanha é a relevância da coisa julgada, que sua imutabilidade é garantida inclusive por preceito constitucional (inc. XXXVI do art. 5º da CF/1988)2.

A coisa julgada, como visto, reveste-se do caráter de imutabilidade com vistas a tutelar a estabilidade das relações e o princípio da segurança jurídica. Contudo, tem-se discutido se essa imutabilidade teria o condão de alcançar inclusive decisões fundadas em normas declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, a chamada "coisa julgada inconstitucional".  

O Código de Processo Civil de 2015, assim como o CPC/1973, considera "inexigível obrigação decorrente de título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional, ou fundado em aplicação ou interpretação inconstitucional3". Veja-se o que dispõe a literalidade do art. 525, §12 do CPC/2015:

§ 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

O dispositivo permite que o executado alegue, como matéria de impugnação à execução, a inexequibilidade do título, tendo em vista decisão do STF que declarou inconstitucional a lei ou ato normativo que lhe dava fundamentação jurídica.

Parte da doutrina defende que, por força da supremacia da Constituição, não podem prevalecer decisões que afrontem o texto constitucional, ainda que resguardadas sob o manto da coisa julgada. Sustentam, assim, a flexibilização do princípio da coisa julgada em prol da supremacia constitucional. De outro lado, há quem defenda a prevalência do princípio da coisa julgada, ainda que em afronta ao texto constitucional.  Como se observa, há intensa polêmica doutrinária a respeito do tema.

A inexigibilidade de título declarado inconstitucional não pode ser interpretada de forma isolada. A ponderação de princípios e valores é medida que se impõe, posto que não há primazia da Constituição se a segurança jurídica é frontalmente violada. Há que se sopesar, de um lado, a autoridade da coisa julgada material e, de outro, a supremacia constitucional e a justiça da decisão no caso concreto.

Nessa perspectiva de busca por harmonia e ponderação principiológica, o CPC/2015 inovou ao instituir as regras constantes nos parágrafos 13 e 14 do artigo 525. Em atenção à segurança jurídica, o §13 estabelece que "os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo", isto é, pode-se determinar a não aplicação imediata do novo entendimento do Tribunal ou atribuir-lhe efeitos ex nunc (sem retroação).

O §14, por sua vez, prevê que a obrigação decorrente de título executivo judicial fundado em lei ou ato inconstitucional só poderá ser considerada inexigível se a decisão do STF for anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, in verbis: "§14: A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda". O intuito do legislador foi preservar as decisões proferidas e já resguardadas sob o manto da coisa julgada, ainda que divergentes de entendimento superveniente do STF no sentido de sua inconstitucionalidade. Há, aqui, um limite para a reversão, para a modificação da chamada coisa julgada inconstitucional.

Se a decisão do STF que declara a norma inconstitucional for anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá a alegação de inexequibilidade do título executivo com fundamento no art. 525, III do CPC. Diversamente, caso a decisão do STF seja posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, aí então prevalecerá a coisa julgada. Nesse caso, o legislador conferiu maior peso à segurança jurídica e à coisa julgada, mesmo havendo entendimento superveniente quanto à sua inconstitucionalidade.

O legislador ordinário traçou balizas para o tratamento da sentença inconstitucional revestida de coisa julgada, conferindo a ela limites para possibilitar a compatibilização de princípios de mesma hierarquia, quais sejam a segurança jurídica e a supremacia da Constituição. No julgamento da ADI nº 2.418/DF, na qual, entre outros dispositivos, questionava-se a constitucionalidade do art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14 do CPC, o STF asseverou que essas normas têm o propósito de harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, bem assim para "agregar ao sistema processual um instrumento com eficácia rescisória de certas sentenças eivadas de especiais e qualificados vícios de inconstitucionalidade, assim caracterizado nas hipóteses em que (a) a sentença exequenda esteja fundada em norma reconhecidamente inconstitucional seja por aplicar norma inconstitucional, seja por aplicar norma em situação ou com um sentido inconstitucionais; ou (b) a sentença exequenda tenha deixado de aplicar norma reconhecidamente constitucional; e (c) desde que, em qualquer dos casos, o reconhecimento dessa constitucionalidade ou a inconstitucionalidade tenha decorrido de julgamento do STF realizado em data anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda"4.

Em razão da garantia constitucional inderrogável da coisa julgada, instituída no art. 5º, XXXVI, e da própria concepção de Estado Democrático de Direito, exige-se o respeito às decisões judiciais transitadas em julgado. Em diversas ocasiões o STF se manifestou para "consignar advertência que põe em destaque a essencialidade do postulado da segurança jurídica e a consequente imprescindibilidade de amparo e tutela das relações jurídicas definidas por decisão transitada em julgado"5.

Em sede de repercussão geral, o STF apreciou o RE 611.503, "Tema 360 - Desconstituição de título executivo judicial mediante aplicação do parágrafo único do art. 741 do Código de Processo Civil". Na ocasião, o Tribunal firmou que "para o reconhecimento do vício de inconstitucionalidade qualificado exige-se que o julgamento do STF, que declara a norma constitucional ou inconstitucional, tenha sido realizado em data anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda".

Evidencia-se, portanto, que o CPC assegura, em sede de impugnação à execução, que o executado alegue como matéria de defesa a inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação, em face de declaração de inconstitucionalidade de norma que lhe dá sustentação, todavia, restringindo essa possibilidade para os casos em que o STF tenha declarado tal inconstitucionalidade antes do trânsito em julgado da decisão exequenda. Assim, o diploma processual buscou assegurar a estabilidade das relações intersubjetivas, a legítima expectativa das partes e a proteção da confiança dos particulares diante das condutas do Estado-Juiz, tendo em vista a garantia constitucional consagrada à coisa julgada e a sua íntima relação com o princípio da segurança jurídica.  

__________

1 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 58. Ed. atual e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.

2 CF/1988. Art. 5º (...) XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

3 É o que se depreende do §1º do art. 475-L do CPC/1973 e do §12º do art. 525 do CPC/2015.

4 Consoante se depreende da ementa do julgado: 3. São constitucionais as disposições normativas do parágrafo único do art. 741 do CPC, do § 1º do art. 475-L, ambos do CPC/73, bem como os correspondentes dispositivos do CPC/15, o art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14, o art. 535, § 5º. São dispositivos que, buscando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram agregar ao sistema processual brasileiro um mecanismo com eficácia rescisória de sentenças revestidas de vício de inconstitucionalidade qualificado, assim caracterizado nas hipóteses em que (a) a sentença exequenda esteja fundada em norma reconhecidamente inconstitucional seja por aplicar norma inconstitucional, seja por aplicar norma em situação ou com um sentido inconstitucionais; ou (b) a sentença exequenda tenha deixado de aplicar norma reconhecidamente constitucional; e (c) desde que, em qualquer dos casos, o reconhecimento dessa constitucionalidade ou a inconstitucionalidade tenha decorrido de julgamento do STF realizado em data anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda. 4. Ação julgada improcedente. (STF. ADI nº 2.418/DF. Relator o Ministro Teori Zavascki. Dje. 4/5/2016).

5 STF. Liminar deferida no MS nº 35.078/DF. Relator o Ministro Celso de Mello. 2º Turma. Dje: 23/08/2017.

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Colunista

Marcus Vinicius Furtado Coêlho é membro da comissão que elaborou o projeto do atual CPC. Doutor pela Universidade de Salamanca, membro do Instituto Ibero Americano de Direito Processual, ex-presidente nacional da OAB e presidente da Comissão Constitucional da entidade.