A instituição de mecanismos de acesso à justiça, o aumento da litigiosidade e a busca por maior celeridade no julgamento de processos provocou modificações no ordenamento jurídico capazes de dar respostas às demandas de celeridade e segurança jurídica nos julgamentos. Uma das respostas foi a implementação da sistemática de recursos repetitivos, ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1973, por meio da lei 11.418/2006. Essa lei inseriu o artigo 543-B no CPC, passando a regulamentar o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Posteriormente, foi promulgada a lei 11.672/2008, que ficou conhecida como a Lei dos Recursos Repetitivos, estabelecendo a referida sistemática no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
Além de evitar a interposição de recursos sobre as questões já decididas, a sistemática de julgamento dos recursos repetitivos tem reflexos importantes na redução do acúmulo de ações e do tempo de tramitação dos feitos nas instâncias ordinárias, especialmente a partir da edição do Código de Processo Civil de 2015, que fortaleceu o papel dos precedentes.
O novo CPC representou um marco na instituição de um sistema de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro. O novo diploma, inserido numa tendência global de aproximação entre os modelos da Civil Law e da Common Law, ampliou significativamente a observância dos juízes e tribunais brasileiros aos precedentes e enunciados de força vinculante.
A relevância dos precedentes fica evidente no artigo 927 do CPC ao determinar que os Tribunais devem uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente. Como uma das formas de garantir essa unificação, o CPC estabeleceu uma nova sistemática de julgamento de recursos repetitivos. Assim, sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, serão escolhidos por amostragem recursos representativos da controvérsia a fim de que sejam julgados, respectivamente, pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça visando à unificação da jurisprudência na questão objeto da discussão (art. 1.036, CPC).
A primeira etapa dessa sistemática de julgamento consiste na seleção de dois ou mais recursos que melhor representem a controvérsia pelo presidente ou vice-presidente do tribunal de origem. Este também determinará a suspensão de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 1.036 do CPC.
A exceção ao sobrestamento dos processos que versem sobre a mesma matéria se dará nos casos em que o recurso houver sido interposto intempestivamente, ocasião em que o interessado poderá requerer sua inadmissão no prazo de cinco dias.
O relator, no tribunal superior, também poderá selecionar dois ou mais recursos representativos da controvérsia para julgamento da questão de direito independentemente da iniciativa do presidente ou do vice-presidente do tribunal de origem. "Pontue-se que a ampliação objetiva do número de recursos auxilia no cumprimento do disposto do art. 489, §1º, IV, que determina que, no julgamento, deverá ocorrer o enfrentamento de todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Se em julgamento de litígios individuais esta já é uma obrigação essencial, nos julgamentos repetitivos ela se torna ainda mais relevante. Em assim sendo, se evitará o atual julgamento de macro lides em fatias, que promove a instabilidade decisória e a superficialidade dos julgados1".
A segunda etapa da sistemática de julgamento em bloco perfaz-se na decisão de afetação prevista no artigo 1.037 do CPC. O dispositivo assenta que, selecionados os recursos, o relator no tribunal superior deverá proferir decisão de afetação a qual deverá (i) a identificar precisamente a questão a ser submetida a julgamento, (ii) determinar a suspensão do processamento de todos os processos pendentes que versem sobre a questão e (iii) poderá requisitar aos presidentes ou aos vice-presidentes dos tribunais de justiça ou dos tribunais regionais federais a remessa de um recurso representativo da controvérsia.
Se por alguma razão o ministro relator rejeitar a afetação, a decisão deverá ser comunicada ao tribunal de origem, para que se revogue a suspensão dos processos que discutam idêntica questão de direito. Consoante dispõe o parágrafo 4º do art. 1.037 do CPC, os recursos afetados deverão ser julgados no prazo de um ano e terão preferência sobre os demais feitos, à exceção dos habeas corpus e dos pleitos que envolvam réu preso.
Promovida a suspensão do feito pela afetação, a parte poderá requerer o prosseguimento do seu processo demonstrando haver distinção entre a questão a ser decidida no seu caso e aquela a ser julgada no recurso afetado. Caberá à parte o ônus argumentativo de demonstrar que seu caso guarda peculiaridades que o distinguem da questão afetada. Esse aspecto amplia a responsabilidade do relator, tornado absolutamente necessário o respeito ao comando do artigo 489, §1º do CPC em sua integralidade, indicando com precisão na decisão de afetação quais os argumentos serão discutidos pelo colegiado.
A competência para apreciar o requerimento do distinguishing dependerá do local e do estágio de tramitação do processo. Será dirigido ao juiz, se o processo sobrestado estiver tramitando em primeiro grau; ao relator de recurso ordinário ou procedimento em trâmite no tribunal de segundo grau, se o processo sobrestado estiver no tribunal de justiça; ao relator do acórdão recorrido, se for sobrestado, no tribunal de origem, recurso especial ou extraordinário; e finalmente ao relator do recurso especial ou extraordinário, no tribunal superior, cujo processamento estiver sido sobrestado.
A sistemática estabelecida antes do CPC de 2015 foi alvo de críticas em razão do déficit enfrentado para a seleção da causa representativa da controvérsia e no uso de seus padrões decisórios pela ausência de possibilidade adequada das partes demonstrarem que seu caso apresenta distinção, bem como para a definição das razões determinantes.
O novo CPC buscou aperfeiçoar o procedimento de formação de precedentes, de modo que na própria decisão de afetação ou em sua sequência o relator poderá requisitar informações aos tribunais inferiores acerca da controvérsia no prazo de quinze dias. O relator também poderá solicitar ou admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia, considerando a relevância da matéria, nos termos do que aduz o artigo 1.038, inciso I do CPC.
O dispositivo, em seu inciso II, também prevê a possibilidade de realização de audiência pública para que sejam ouvidos depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria discutida, para melhor instruir o procedimento. "A manifestação do amicus curiae soma-se às demais possuindo a finalidade de ampliação discursiva dos fundamentos a serem levados em consideração pelo tribunal superior ao julgar e fundamentar os recursos representativos da controvérsia2".
O julgamento do caso terá preferência sobre os demais feitos, excepcionando-se os casos de réu preso ou habeas corpus e o acórdão deverá abordar a análise dos fundamentos relevantes da tese jurídica discutida.
Nos termos do artigo 1.039, decididos os recursos afetados, os órgãos colegiados declararão prejudicados os demais recursos versando sobre idêntica controvérsia ou os decidirão aplicando a tese firmada.
O artigo 1.040 explicita os efeitos do julgamento dos recursos repetitivos. Nos casos em que o acórdão recorrido coincidir com a orientação do tribunal superior, será negado seguimento aos recursos especiais ou extraordinários sobrestados na origem, pendentes de juízo de admissibilidade. Já nos casos em que o processo suspenso tenha sido decidido diversamente da orientação dos tribunais superiores, será determinada a adequação da decisão. Caso os processos tenham sido suspensos em primeira ou segunda instância, retomarão seu curso para serem julgados em consonância com a tese firmada pelo tribunal superior. Importante destacar que o magistrado ainda pode valer-se da técnica da ressalva de entendimento para decidir diversamente do tribunal, uma vez percebido que este deixou de levar em consideração fundamento relevante.
Nesse sentido, Dierle Nunes pondera que "o novo CPC estabelece a necessidade de os juízes seguirem alguns dos entendimentos dos tribunais superiores, mas tal aplicação não pode se dar de modo mecânico (...). Sendo o juiz um dos sujeitos do contraditório, ele também deve poder auxiliar na formação dos precedentes, seja concordando com sua aplicação, seja apresentando contrapontos para que o Tribunal leve em consideração novos argumentos, mesmo que seja instado a aplicar o padrão decisório das Cortes Superiores3".
Diversamente da regra geral adotada pelo CPC, a desistência de ação que tratar de matéria já decidida em sede de recurso repetitivo não dependerá de consentimento do réu, ainda que já tenha sido apresentada contestação e poderá ocorrer até a prolação da sentença. Caso a desistência ocorra antes da contestação, a parte autora ficará dispensada do pagamento das custas e dos honorários de sucumbência.
Na hipótese de o tribunal de origem manter o acórdão divergente, com a devida fundamentação das razões de distinção, em conformidade com o §1º do artigo 1.036, deverá este remeter o recurso especial ou extraordinário ao respectivo tribunal superior (artigo 1.041, caput).
Uma vez proferido o juízo de retratação, com modificação do acórdão divergente, o tribunal de origem decidirá, se houver, as demais questões pendentes, cujo enfrentamento se tornou necessário em decorrência da alteração. Essa hipótese ocorrerá em todos os casos em que a modificação da decisão se der em matéria prejudicial para outras ainda não enfrentadas pelo TJ ou TRF. Dessa nova decisão poderá caber novo recurso extraordinário ou especial das matérias ainda não analisadas pelo tribunal superior.
O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu 1.018 (mil e dezoito) temas repetitivos4 em que há determinação de suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão afetada. Um desses casos foi o julgamento do tema 990, em que se discutia a obrigatoriedade dos planos de saúde de fornecer medicamento não registrado pela ANVISA5.
O Tribunal procedeu à afetação do recurso à sistemática do julgamento repetitivo e, no mérito, concluiu pela legitimidade da recusa das operadoras de planos de saúde em custear medicamento importado, não nacionalizado, sem o devido registro pela ANVISA. O STJ firmou o entendimento no sentido de que “a determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei; e, É lícita a exclusão de cobertura de produto, tecnologia e medicamento importado não nacionalizado, bem como tratamento clínico o cirúrgico experimental”.
Em outro caso, também sob a sistemática dos recursos especiais repetitivos, o STJ julgou controvérsia a respeito da competência do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes - DNIT para promover autuações e aplicar sanções em face do descumprimento de normas de trânsito praticadas em rodovias e estradas federais, como por excesso de velocidade6.
O Tribunal consignou que o Código de Trânsito Brasileiro, a par de atribuir à Polícia Rodoviária Federal a competência para aplicar e arrecadar multas por infrações de trânsito, no âmbito das rodovias e estradas federais, confere aos órgãos executivos rodoviários da União a competência para executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as penalidades de advertência, por escrito, e ainda as multas e medidas administrativas cabíveis, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar. Inconteste, assim, a competência do DNIT para executar a fiscalização do trânsito, por força da referida autorização legislativa, que expressamente outorgou, à autarquia, a competência para exercer, na sua esfera de atuação – vale dizer, nas rodovias federais –, diretamente ou mediante convênio, as atribuições expressas no art. 21 do Código de Trânsito Brasileiro.
No tocante à utilização da sistemática por parte do STF, embora haja expressa previsão legal, como visto, a aplicação pela Corte do regime de repercussão geral acaba por afastar a aplicação dos repetitivos. Isso porque o artigo 1.036 do CPC exige a multiplicidade de recursos e, uma vez apreciado um recurso extraordinário pelo STF – seja para reconhecer ou para negar-lhe repercussão geral – essa decisão se aplicaria aos demais casos idênticos. Desse modo, inexistiriam múltiplos recursos capazes de permitir a aplicação da sistemática dos recursos repetitivos, sendo esta, na prática, não utilizada pelo Tribunal.
A despeito das peculiaridades de aplicação nos tribunais, é inegável que os recursos afetados tratam de temas discutidos em milhares de processos replicados em todo o país. A sistemática de recursos repetitivos permite que o Poder Judiciário unifique sua jurisprudência, assegurando maior segurança jurídica aos jurisdicionados. Além disso, otimiza a atuação jurisdicional, possibilitando que os magistrados possam despender mais tempo com casos novos ou de complexidade ímpar, uma vez que os casos repetitivos já foram decididos pelos tribunais superiores.
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1 NUNES, Dierle. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, et al. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 2324.
2 NUNES, Dierle. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, et al. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, P. 2333.
3 NUNES, Dierle. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, et al. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 2338.
4 Segundo dados fornecidos no sítio eletrônico do Tribunal.
5 REsp 1712163 / SP. Publicação no DJe: 26/11/2018.
6 REsp 1588969. Publicação no DJe: 11/04/2018.