Dia 13/03/2024, a 1ª Seção do STJ retomará o julgamento dos Recursos Especiais n° 1.898.532/CE e 1.905.870/PR, de relatoria da ministra Regina Helena, veiculadores do Tema Repetitivo nº 1079, cuja redação é a seguinte: “Se o limite de 20 salários-mínimos é aplicável à apuração da base de cálculo de contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros, nos termos do art. 4º da lei 6.950/81, com as alterações promovidas pelos arts. 1º e 3º do decreto-lei 2.318/86”.
A Ministra Relatora negou provimento aos especiais e modulou os efeitos dessa virada jurisprudencial, incorporando, em sua proposta, sugestões do ministro Gurgel de Faria. A proposta ficou assim redigida: “1 – A norma contida no parágrafo único do art. 4° da Lei n° 6.950/81 limitava o recolhimento das contribuições parafiscais cuja base de cálculo fosse o salário de contribuição; 2 – Os arts. 1° e 3° do Decreto-Lei n° 2.318/86, ao revogarem o caput e o parágrafo único do art. 4° da lei 6.950/81, extinguiram, independentemente da base de cálculo eleita, o limite máximo para o recolhimento das contribuições previdenciárias e parafiscais devidas ao SENAI, SESI, SESC e SENAC.”
A Ministra invocou o art. 927, §3° do CPC, segundo o qual “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.
A modulação, tal como proposta, alcança apenas os contribuintes que ingressaram com ação judicial e/ou pedidos administrativos até o início do julgamento (25/10/2023) e que tenham granjeado decisão favorável, possibilitando-lhes recolher as contribuições parafiscais, ou recuperar os valores já recolhidos, com o limite dos 20 salários-mínimos para as suas respectivas bases de cálculo até a data da publicação do acórdão. Mas esse marco “início do presente julgamento (25/10/2023)”, bem como a condicionante “obtendo pronunciamento judicial ou administrativo favorável”, não são razoáveis de serem acolhidos pela 1ª Seção do STJ.
É que o Judiciário, ao tomar decisões, orienta o comportamento dos particulares. Essa dinâmica alimenta a própria legitimidade da prestação jurisdicional. Por essa razão, quaisquer que sejam as hipóteses, contanto que tenha, o contribuinte, ingressado com ação judicial e/ou pedido administrativo, independente de decisão favorável, devem elas ser alcançadas pela modulação, pois foram pautadas na legítima expectativa de manutenção do entendimento até então vigente do STJ.
Não se pode considerar como marco para fins de modulação a data de início do julgamento (25/10/2023), na medida em que, diante da sua interrupção pela vista do ministro Mauro Campbell, na referida data ainda prevalecia o entendimento favorável aos contribuintes e, portanto, deve ser levada a efeito a data de conclusão do julgamento e fixação da tese jurídica.
No caso, considerando a existência de precedentes favoráveis ao contribuinte há mais de uma década, em decisões monocráticas e acórdãos proferidos por ambas as Turmas de Direito Público, e a inexistência de uma decisão qualquer contrária no âmbito do STJ, alimentou-se expectativa no sentido da existência da limitação de 20 salários-mínimos em debate, a qual não pode agora ser simplesmente ignorada.
Assim, mesmo aquele que não obteve decisão judicial ou administrativa favorável, mas que não ficou inerte na busca do seu direito, ingressando com ação judicial ou protocolando requerimento administrativo até a conclusão do julgamento e fixação da tese jurídica (exercendo o seu de petição), deve ser alcançado pela modulação, pois a jurisprudência consolidada do STJ gerou, da mesma forma como gerou naquele que obteve decisão judicial favorável, confiança de que tais decisões orientavam o comportamento dos particulares. Com base nelas, as empresas, tenham ou não obtido pronunciamento favorável, moldaram o seu comportamento, num movimento compatível com a ideia de legitimidade do Judiciário.
O art. 927, §3° do CPC apenas estabelece que a modificação de jurisprudência pacificada deve levar em consideração o princípio da proteção da confiança em relação ao entendimento anteriormente vigente. Não há, na lei, determinação de que se distinga contribuintes com decisão favorável daqueles que não a possuíram, para fins de prestígio à segurança jurídica, porquanto ambos os tipos de contribuinte agiram com boa-fé objetiva e confiaram na jurisprudência da Corte.
Ainda, o outro motivo para se afastar como marco para fins de modulação o início do julgamento, bem como a condicionante da “obtenção de decisão favorável”, decorre da própria segurança jurídica pressuposta da modulação. Todos os contribuintes que ingressaram com ação judicial ou protocolaram pedido administrativo discutindo as contribuições em questão (com ou sem decisão favorável) tiveram a mesma confiança e calculabilidade nos precedentes deste do STJ, isto é, confiaram que seu pedido iria ser, mais cedo ou mais tarde, acolhido pela Corte e, em função disso, ajustaram suas condutas.
A jurisprudência consolidada do STJ sobre o tema remontava, no mínimo, aos idos de 20081, tendo a Corte proferido, desde então, diversas decisões monocráticas e acórdãos no mesmo sentido ao longo dos últimos 15 anos: REsp 953.742/SC, Rel. José Delgado, 1ª T, acórdão de 12/2/2008; REsp 1.439.511/SC, Rel. Herman Benjamin, monocrática de 9/6/2014; AgInt no REsp 1.241.362/SC, Rel. Assusete Magalhães, 2ª T, acórdão de 1/3/2018; AgInt no REsp 1.570.980/SP, Rel. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª T, acórdão de 17/2/2020 ; AgInt no REsp 1.825.326/SC, Rel. Regina Helena Costa, 1ª T, acórdão de 3/8/2020; REsp 1.907.308/SC, Rel. Og Fernandes, monocrática de 11/12/2020; REsp 1.908.527/RS, Rel. Sérgio Kukina, monocrática de 3/2/2021; REsp 1.910.665/RS, Rel. Benedito Gonçalves, monocrática de 24/2/2021.
Ora, o comportamento das empresas foi pautado na orientação consolidada do STJ, não na orientação controvertida das instâncias inferiores ou administrativas, não se conseguindo extrair das decisões dessas últimas prestígio suficiente a condicionar a modulação apenas para quem obteve pronunciamento favorável. Entre a indisciplina judicial de instâncias inferiores que negam legitimidade às decisões do STJ e o papel pacificador que constitui a própria razão de existir de uma Corte Superior, deve, esse caso, honrar este último, mormente se se trata de segurança jurídica.
Cenário ainda mais grave se colocou na sessão do dia 13/12/2023, quando o ministro Mauro Campbell votou para negar qualquer tipo de modulação. Para o Ministro, o que havia no tema, em verdade, eram decisões monocráticas num dado sentido, não havendo que se falar em “jurisprudência consolidada”. Acontece que, como se demonstrou, há acórdãos lavrados pelas duas Turmas da 1ª Seção se pronunciando sobre a matéria, conforme reconhecido no voto da Ministra Relatora.
Ademais, a mera existência de decisões monocráticas num mesmo sentido reaviva a lógica de que havia, antes, uma posição colegiada capaz de autorizar ministros e ministras a tomarem essas decisões individualmente. Se antes, sob a égide do CPC de 1973, consolidou-se no STJ a compreensão de que “o relator está autorizado a decidir monocraticamente recurso fundado em jurisprudência dominante” (art. 557, caput e § 1º- A), atualmente, pelo CPC de 2015, o fortalecimento de decisões emanadas das Cortes Superiores, notadamente o STJ, é ainda mais intenso, a ponto do inciso II do art. 988 autorizar o ajuizamento de reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para “garantir a autoridade das decisões do tribunal”.
Mudar de posição e fazê-lo sem a responsabilidade institucional de projetar no futuro os efeitos dessa mudança equivale a, materialmente, afastar a incidência de todo esse plexo legislativo dedicado à segurança jurídica e à proteção da confiança. Por essa razão, o mais justo no Tema 1079 do STJ é promover a modulação de efeitos nos moldes tradicionais da Corte e da processualística, sem restrições indevidas, tampouco sem a negativa de que houve, no caso, mudança de jurisprudência.
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1 REsp 953.742/SC, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 12/2/2008.