Conversa Constitucional

Problemas na deliberação assíncrona do STF

Para quem, contudo, advoga no STF, há, sim, questões em aberto. É que o PV não se submete a alguns dispositivos regimentais e essa excepcionalidade, se abusiva, pode se converter em insegurança para a advocacia, as partes e a prestação jurisdicional.

22/1/2024

Deliberações relevantes no Plenário Virtual ("PV") do Supremo Tribunal Federal têm despertado o desejo de uma melhor compreensão quanto ao desenho institucional aplicado a esse tipo de julgamento, que é qualificado como "assíncrono", por haver, no seu curso (em regra, do início da sexta-feira até o final da sexta-feira seguinte), o lançamento de votos sem a obediência de qualquer ordem de votação e também sem que exista uma discussão coletiva e instantânea sobre cada voto.

Antes de aprofundar o ponto exposto no parágrafo acima, vale saber que o elemento de assincronicidade do PV não tem causado qualquer espécie ao STF. Para o ministro Edson Fachin, "o julgamento em sessão assíncrona em nada afeta a discussão que os Ministros poderão tecer sobre o caso” (HC 230.015 AgR). O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, anotou ser “dotada de suficiente publicidade e motivação os julgamentos realizados por meio eletrônico e votação assíncrona" (MS 37.695). O ministro Ricardo Lewandowski chegou a lembrar o “avanço recente de novas modalidades síncronas e assíncronas de prestação do serviço jurisdicional, que apresentaram incremento de eficiência, celeridade e digitalização do Poder Judiciário” (HC 220.357 AgR), enquanto para o ministro Cristiano Zanin “o destaque do julgamento de feito - da sessão assíncrona virtual para sessão presencial ou por videoconferência - constitui excepcionalidade aferível pelo Relator, especialmente à vista da controvérsia vertida nos autos, por não trazer prejuízo às partes, preservados os debates que os Ministros poderão fazer sobre o caso” (RHC 230.931).

Para quem, contudo, advoga no STF, há, sim, questões em aberto. É que o PV não se submete a alguns dispositivos regimentais e essa excepcionalidade, se abusiva, pode se converter em insegurança para a advocacia, as partes e a prestação jurisdicional.

O primeiro dispositivo regimental sublimado pelo PV é o art. 135, cujo caput diz que concluído o debate oral, o Presidente tomará os votos do Relator, do Revisor, se houver, e dos outros Ministros, “na ordem inversa de antiguidade”. Essa fórmula pressupõe uma deliberação ordenada e síncrona, com todos os ministros e ministras presentes e atentos ao seu momento de votar. O § 1º do mesmo art. 135 determina que apenas com a autorização do Presidente “os Ministros poderão antecipar o voto”. Esse comando também é inaplicável ao PV. Por fim, há o § 2º, pelo qual, encerrada a votação, o Presidente proclamará a decisão. No PV, isso é artificializado, pois a proclamação é automática, feita pelo sistema.

Também o art. 136 do Regimento Interno é colocado de lado. Ele diz que “as questões preliminares serão julgadas antes do mérito, deste não se conhecendo se incompatível com a decisão daquelas”. Já o § 1º dispõe que, sempre que, no curso do relatório, ou antes dele, algum dos Ministros suscitar preliminar, será ela, antes de julgada, discutida pelas partes, que poderão usar da palavra pelo prazo regimental. Se não acolhida a preliminar, prosseguir-se-á no julgamento. Por fim, o art. 137 diz que, rejeitada a preliminar, ou se com ela for compatível a apreciação do mérito, seguir-se-ão a discussão e julgamento da matéria principal, pronunciando-se sobre esta os juízes vencidos na preliminar.

Acontece que muitas vezes os votos lançados no PV são diferentes não apenas quanto aos fundamentos, mas quanto ao próprio método de elaboração. Enquanto um ministro abre uma preliminar, outro aborda apenas o mérito, e lá ficam os dois votos sem qualquer sintonia, lançados no PV, e o pior, sem que haja, entre os ministros que em seguida inserirão seus votos, discussão primeiramente acerca da preliminar e, apenas depois, quanto ao mérito, como determina o Regimento Interno do STF.

Também há votos que mesmo no mérito já contemplam, de ofício, modulação de efeitos, enquanto outros nada dizem a respeito. E lá vamos nós explicar essa disfuncionalidade em audiências, pedindo que cada ministro perceba que há um voto – às vezes, já dentre vários – se antecipando a um pedido de modulação. Ou, ainda, votos que, em sede de embargos, apontam marcos temporais diversos quanto ao ponto de partida da modulação (se da data da publicação da ata, se da data do julgamento, se da data da publicação do acórdão...), sem que seja possível, em razão da assincronicidade da deliberação no PV, haver uma primeira (ou última) deliberação quanto a esse ponto para que, ao final, sejam contados os votos de cada corrente e, então, um resultado seja proclamado.

  Há ainda as hipóteses nas quais há correntes hermenêuticas com fundamentos tão distintos, e em tão grande quantidade, que é impossível haver a proclamação do resultado (por faltar seis votos para qualquer que seja a corrente), uma vez que não estão, os ministros e ministras, ao mesmo tempo, no mesmo local, dedicados a, juntos, equacionarem, sincronamente, aquele problema, às vezes migrando para um ou outro lado na decisão.

A ordem, rito e solenidade de manifestações durante uma deliberação jurisdicional da Suprema Corte não é mera perfumaria. Há uma lógica embutida em toda essa cerimônia. Ela ajuda na construção dos precedentes, imprimindo lógica, sequência e sentido aos debates e raciocínios empregados naquele ato solene e de profundas consequências nas vidas ou interesses das partes. Basta lembrar que a proclamação do resultado é um dos elementos constitutivos do próprio julgamento. Segundo o art. 941 do Código de Processo Civil, “proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor”. O § 2º do art. 135 do RISTF diz que, “encerrada a votação, o Presidente proclamará a decisão”.

Atualmente, passada a resistência, e a euforia, quanto ao PV, o bom senso e a prática começam a apontar problemas. Deliberando acerca da modulação de efeitos pleiteada em embargos de declaração na ADI 4411 (“taxa estadual de segurança pública”), verificou-se a impossibilidade de se alcançar um resultado, o que fez com que o caso fosse movido, pelo sistema (não por iniciativa dos ministros) para a deliberação presencial. O mesmo na ADC 49 (Rel. Min. Edson Fachin), que, em sede de embargos, também discutia modulação (“ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo titular”).

A situação se repetiu nas ADIs 6654 (Rel. Min. Alexandre de Moraes), 6688 (Rel. Min. Gilmar Mendes) e 6683 (Rel. Min. Nunes Marques) que discutiam as regras para reeleições nas Assembleias de Roraima, Paraná e Amapá, respectivamente; e, ainda, na ADI 6609 (redação para acórdão do ministro Gilmar Mendes), que fixou que “a remoção sempre precederá à promoção por antiguidade ou merecimento”.

Nessas hipóteses, o sistema, não tendo conseguido identificar qual o resultado do julgamento, remete automaticamente o caso para o plenário presencial.

Também tem acontecido de o presidente do STF, um ministro, ou ministra, ou até mesmo o próprio relator, fazer um “destaque” tentando salvar o esforço judicial empreendido até ali no PV. Pelo destaque, a deliberação no PV é interrompida e tudo retorna, do início (incluindo leitura de relatório e sustentação oral), presencialmente. O § 3º do art. 21-b do RISTF diz: “No caso de pedido de destaque feito por qualquer ministro, o relator encaminhará o processo ao órgão colegiado competente para julgamento presencial, com publicação de nova pauta”. Essa iniciativa costuma ser tomada quando cada julgador seguiu, no plano hermenêutico, por si, sendo impossível proclamar um resultado.

No RE 1.276.977, os embargos de declaração contra o juízo meritório no Tema 1102 (“Revisão da Vida Toda”1), em razão de múltiplas correntes formadas, reclamaram, do relator, ministro Alexandre de Moraes, um destaque. Não foi diferente no Tema 1205 (RE 1266.095)2, no qual, após múltiplas correntes interpretativas terem se verificado, o ministro Dias Toffoli, relator, destacou o feito. Às vezes, o próprio autor do destaque (sendo relator ou não) desiste da iniciativa e permite que o julgamento prossiga no PV. Assim o faz quando, após estudo da disputa, percebe que não há complexidade bastante a justificar o deslocamento de um plenário (virtual) para o outro (presencial).3 O caso segue no PV.

Ou seja, o julgamento presencial, cuja votação se dá sincronamente, existe (e existia) sem o PV, mas o inverso não é verdadeiro. Não há PV sem que tenha, o STF, a oportunidade de, presencialmente, e ao mesmo tempo, prestar a jurisdição, muitas vezes conseguindo um tipo de deliberação impossível ao PV. Em resumo, jamais teremos (torço eu) uma Suprema Corte absolutamente sustentada no Plenário Virtual.  

Essa simbiose entre a deliberação assíncrona e síncrona, no PV e presencialmente, termina criando, pela prática, um modelo decisório híbrido, formado pela deliberação assíncrona e virtual, mas que se dá apenas até o ponto em que não haja, pela própria natureza do modelo, complexidade bastante a impedir a proclamação automática do resultado, providência essa que reclama discussões presenciais (e síncronas) na Corte.

Acontece que, quando se é feito um destaque, o rito se reinicia, agora presencialmente, com leitura do relatório e sustentações orais, mas, quando o sistema simplesmente não consegue proclamar o resultado no PV e, por essa razão, remete essa proclamação (e apenas ela), para o presencial, não há oportunidade da advocacia se fazer sentir, ficando, esse ato, circunscrito aos ministros e ministras. É mais uma disfuncionalidade.

Para que o PV exista – e é fundamental que ele exista -, é necessário fazer de conta que não sabemos das múltiplas violações regimentais que esse tipo de votação enseja. Ocorre que essa prática de deslocamento de casos para o PV, ainda que apenas para a proclamação de resultados, mostra ter, o PV, natureza acessória, complementar à deliberação síncrona e presencial. Prova, ainda, ser, ele, falho. Também mostra que há, em sua essência, problemas estruturais que reduzem a qualidade do processo deliberativo (e não necessariamente dos fundamentos dos votos), pela falta de sincronicidade do debate do qual se forja a prestação jurisdicional colegiada. Por fim, demonstra ser da natureza das Supremas Cortes a oportunidade de, atentas às regras regimentais, se dedicarem à construção, pelo debate (com seus contrapontos, evoluções, retificações e ratificações), ordenadamente, à luz de um rito e atenta a solenidades, de uma solução jurídica para a questão levada ao seu alto encargo.

Em conclusão, a deliberação no PV, embora essencial à prestação jurisdicional eficiente (e célere), não é imune a críticas, tampouco a aperfeiçoamentos, sendo necessário que a tecnologia cumpra o seu papel, motivada, também, pela ambição de permanente aprimoramento por parte dos ministros e ministras do STF, a quem assiste o grave dever de entregar ao país a melhor prestação jurisdicional que suas competências são capazes de propiciar. A deliberação no PV pode mais e nós queremos esse “mais”.    

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1 Tese: “O segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após a vigência da Lei 9.876/99, e antes da vigência das novas regras constitucionais, introduzidas pela EC 103/2019, tem o direito de optar pela regra definitiva, caso esta lhe seja mais favorável.”

2 Tema 1205: “Exclusividade da propriedade industrial em razão da demora na concessão do registro de marca pelo INPI concomitante ao surgimento de uso mundialmente consagrado da mesma marca por concorrente.”

3 Exemplo foi o destaque feito pelo ministro Alexandre de Moraes no ARE 1.222.655, mas que, em seguida, ensejou a desistência do destaque pelo próprio ministro, retomando, o caso, seu curso normal.

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Colunista

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.