Conversa Constitucional

A Suprema Corte de Israel resiste

Se o grande desafio do constitucionalismo no século XX foi fundar Supremas Cortes – e elas foram fundadas em todo o mundo como nunca antes –, o século XXI entrega a essas instituições outra tarefa: a de resistir.

3/1/2024

Se o grande desafio do constitucionalismo no século XX foi fundar Supremas Cortes – e elas foram fundadas em todo o mundo como nunca antes –, o século XXI entrega a essas instituições outra tarefa: a de resistir. Percorrendo esse caminho, a Suprema Corte de Israel acaba de vencer uma batalha, não estando vencida, ainda, a guerra contra ela patrocinada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seus aliados.

Para se conhecer as circunstâncias que ensejaram o já célebre precedente divulgado essa semana, vale incursionar, antes, nos muitos aspectos históricos que forjam a original jurisdição constitucional israelense.   

Em 14 de maio de 1948, poucas horas depois do fim do Mandato Britânico sobre a Palestina, David Ben-Gurion estabeleceu Israel, tornando-se o primeiro primeiro-ministro do país. Houve uma Declaração de Estabelecimento do Estado de Israel. Esta, há de ser lida em conjunto com a Resolução nº 181, da Assembleia Geral da ONU, de 29 de novembro de 1947, segundo a qual qualquer que fosse o caminho adotado pelo país ali fundado, ele jamais se daria sem a observância dos direitos fundamentais então estipulados e que nenhuma lei - incluindo a Constituição ou emendas constitucionais -, poderia entrar em conflito ou sequer interferir naqueles direitos, pois, caso isso ocorresse, os direitos fundamentais previstos na Resolução – “fundamental laws” -, prevaleceriam.

A Declaração, por sua vez, foi promulgada pelo Conselho do Povo, o parlamento dos Yishuv, que atribuiu a si a designação de Conselho de Estado Provisório e escolheu 13 dos seus membros para servir como Administração Popular. A primeira eleição se deu em 25 de janeiro de 1949. Os cidadãos escolheram uma Assembleia Constituinte de 120 membros, responsável por elaborar a Constituição. Contudo, uma vez reunida, a Assembleia resolveu mudar seu nome e suas responsabilidades. Virou Knesset, o Parlamento, e não aprovou Constituição alguma.

Um ano mais tarde, o Knesset promulgou a Resolução Hahari, que conferiu à Comissão de Constituição, Direito e Justiça do Knesset o dever de elaborar uma série de leis básicas as quais, juntas, formariam a Constituição. Acontece que essa compilação jamais aconteceu. Israel segue sem contar com um documento jurídico uno, sistematizado e aprovado de uma só vez, como costuma ocorrer com as Constituições escritas. O que existe são as chamadas leis básicas, muitas delas.

Em 1992, o Knesset aprovou a Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade.1 A sua Seção 2 diz: “Não deve haver violação da vida, corpo ou dignidade de qualquer pessoa como tal”. Já a Seção 4 dispõe: “Todas as pessoas têm direito à proteção de sua vida, corpo e dignidade”.

Em 1995, a Suprema Corte – o “Beit Mishpat Elyon” – apreciou um caso que reclamava a aplicação da Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade. Num julgamento emblemático (United Mizrahi Bank v. Migdal Cooperative Village), mesmo tendo sido, a referida Lei Básica, aprovada sem qualquer quórum especial, como costuma ocorrer com as emendas constitucionais, a Suprema Corte, pela liderança do seu presidente, Aharon Barak, a reconheceu como sendo materialmente constitucional e, deste modo, qualquer outra lei que a contrariasse deveria ser declarada inconstitucional.

Segundo o julgamento, “a Lei Básica não meramente declara ‘políticas’ ou ‘ideais’ (cf. art. 20(1) da Lei Básica da Alemanha). A Lei Básica não meramente delineia ‘um plano de operação’ ou um ‘propósito’ para os órgãos do governo (cf. art. 27(2) da Constituição da África do Sul; art. 39 da Constituição da Índia). Ela não meramente oferta um conceito guarda-chuva para guiar a interpretação..., as Seções 2 e 4 da Lei Básica trazem um direito - o direito que garante a dignidade humana. Esse direito impõe aos órgãos do governo o dever de respeitá-los (s. 11)”.2

A decisão correspondeu, para aquele país, a um Marbury v. Madison (1803). Ali nascia a jurisdição constitucional israelense. Nas palavras do então presidente Aharon Barak, foi uma “uma revolução constitucional”.3

Em razão do reconhecimento da materialidade constitucional da Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade, vários direitos implícitos passaram a ser assegurados: direitos da personalidade, a uma subsistência humana digna, à reputação, à vida familiar, à igualdade, à liberdade de expressão, à liberdade de consciência e religião, à liberdade de movimento, à educação, ao emprego e ao devido processo legal.4

Passando a exercitar, com desenvoltura, o controle de constitucionalidade de atos do poder público, a Suprema Corte também erigiu, em temas de Direito Administrativo, o chamado “padrão de razoabilidade”, elemento exegético viabilizador da aferição, pela Corte, da constitucionalidade de nomeações feitas pelo governo para o alto escalão da burocracia israelense. Esses juízos avaliavam se as nomeações atendiam aos parâmetros mínimos exigidos por uma democracia constitucional comprometida com a coisa pública. Caso reputasse a nomeação “irrazoável ao extremo”, a Suprema Corte a fulminaria.

O caso “The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General” (HCJ 7367/97)5, apreciado em 2003, ilustra bem. O Movimento por um Governo de Qualidade em Israel havia levado o então primeiro-ministro, Ariel Sharon, à Suprema Corte, em razão de uma escolha para o Ministério da Segurança Pública.

Tzahi Hanebi havia sido o indicado. Em 1982, jovem, ele foi condenado por se envolver numa confusão na universidade. Posteriormente, já sendo uma figura pública, viu seu nome pululando em três investigações sem que tivesse sido condenado em nenhuma delas. O Movimento entendia que Hanebi não poderia servir ao Governo, pois apesar de não ter sido condenado, todos os rumores que seu nome minava a confiança pública no Ministério, gerando obstruções populares. Essas obstruções, somadas a toda a mídia que o indicado atraía e ao burburinho de que novas investigações poderiam surgir, atrapalhavam a continuidade do serviço público e pareciam limitar a capacidade do próprio Hanebi de executar legitimamente uma agenda ministerial.

A Suprema Corte concluiu, todavia, não haver razão para impedir que Ariel Sharon empossasse Tzahi Hanebi no Ministério da Segurança Pública. Vetar a assunção ao posto sem que houvesse taxativa previsão a respeito ou, pelo menos, que o conjunto dos fatos indicasse evidências mais robustas, poderia se tornar um hábito caprichoso de juízes. O critério da razoabilidade, apesar de tensionado, havia sido cumprido.

Esse padrão interpretativo voltou no caso “Israel Women’s Network v. Minister of Labor & Social Affairs”, (HCJ 2671/98).6  Nele, a Suprema Corte determinou que o governo garantisse representação razoavelmente suficiente para as mulheres nos conselhos de administração de empresas governamentais e outras instituições públicas.

Em 2016, a Suprema Corte apreciou o caso “Movement for Quality Government in Israel v. Prime Minister” (HCJ 232/16), no qual se questionava a indicação do membro do Knesset, Aryeh Machlouf Deri, para o posto de Ministro do Interior. Deri havia sido condenado por corrupção na década de 1980. Sua indicação, contudo, foi mantida, entendendo-se que, apesar de problemática, ela não era “irrazoável ao extremo”.7

A jurisprudência seguiu assim até que, em janeiro de 2023, a Suprema Corte se valeu uma vez mais desse critério hermenêutico para impedir o mesmo Aryeh Deri, julgado em 2016, de servir no gabinete do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.8

Deri havia sido condenado por suborno e fraude em 1999 e novamente por fraude fiscal em 2022. Chegou a cumprir pena na prisão. Ele então fez um acordo de delação premiada com o Procurador-Geral, posteriormente homologado pelo Judiciário. No acordo, Deri se comprometia a renunciar à sua vaga no Knesset, além de se afastar da vida pública. Graças à promessa, garantiu o acordo de confissão, encerrou seu julgamento criminal e assegurou que o Judiciário não decidiria sobre a questão de sua condenação ter ou não sido considerada como de torpeza moral, o que o inabilitaria para a vida pública por um período de sete anos.

A Suprema Corte destacou que o indicado havia feito uma promessa perante o Judiciário que terminou ensejando o perdão de penas criminais. A indicação era, portanto, “irrazoável ao extremo”. A Corte barrou a nomeação e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu teve de se livrar de Deri de uma vez por todas.

Mas o backlash veio quase imediatamente. Em julho de 2023, foi aprovada uma “Lei Básica”, ou seja, uma emenda constitucional, impedindo o uso do padrão da razoabilidade para fundamentar a nulidade de nomeações do Poder Executivo. Segundo a emenda, o Poder Judiciário não poderia mais aferir a razoabilidade das decisões do governo, uma vez que razoabilidade seria um conceito vago, jamais positivado no direito israelense, e que havia ganhado, dos juízes, uma aplicação subjetiva.  

A questão foi levada à Suprema Corte que, pela primeira vez, teria de definir se uma Lei Básica – formal e materialmente equivalente a uma emenda constitucional – poderia ser reputada, pela própria Suprema Corte, como sendo inconstitucional. Esse exercício hermenêutico jamais havia sido empregado pelos juízes e juízas da Corte. 

Essa semana, por 12 x 3, a Suprema Corte reconheceu a sua competência para aferir a constitucionalidade de uma emenda constitucional. Em seguida, por 8 x 7, declarou a inconstitucionalidade da referida lei básica. Segundo o julgamento, o governo, ao aprovar a emenda, “revogou completamente a possibilidade de realizar a revisão judicial da razoabilidade das decisões tomadas pelo governo, pelo primeiro-ministro e pelos ministros”, causando, assim, “danos graves e sem precedentes às características centrais de Israel como um estado democrático.”9

Há muitos elementos que, de tão raros, tornam esse precedente histórico. Primeiramente, a Suprema Corte de Israel, mesmo na análise da constitucionalidade de leis, não se reúne en banc, ou seja, com toda a sua composição. A Corte é dividida em turmas, com três ministros cada, e é possível haver uma declaração de inconstitucionalidade pela chamada Hight Court of Justice (“Bagatz”), que é a composição estendida, sem que o caso seja necessariamente apreciado pelos quinze ministros que formam o total do Tribunal. Mesmo em casos emblemáticos, basta cinco ministros e o quórum para o judicial review terá sido alcançado.

No caso apreciado essa semana, contudo, a Suprema Corte deliberou en banc, com todos os seus quinze integrantes. Foi a primeira vez que algo assim ocorreu.

Outro elemento histórico é que duas juízas que tiveram seus mandatos expirados em outubro do ano passado, - Esther Hayut, presidente da Suprema Corte, e Anat Baron - não participariam da decisão se ela tivesse sido proferida após meados de janeiro. Elas terminaram tendo o direito de participar do julgamento pelo fato de haver, em Israel, uma lei que estende por um período de três meses, após a aposentadoria na magistratura, a oportunidade de concluir julgamentos. Foi o que foi feito. Sem as duas juízas, tudo leva a crer que a lei teria sido mantida talvez por um apertado placar de 7 x 6.

A construção desse precedente chegou a considerar um apelo ao legislador, requerendo-se ao Knesset que reformulasse o texto de modo a não banir o uso da razoabilidade, estabelecendo, apenas, alguns requisitos para a sua adoção. Também se veiculou, num dos votos, a intenção de promover uma interpretação conforme de modo a restringir o escopo da emenda constitucional, mantendo-a no ordenamento jurídico, mas com um significado restrito. Essa foi a linha seguida por três dos juízes vencidos, tendo prevalecido, contudo, a declaração pura de simples de inconstitucionalidade da emenda.

Em 2023, dezenas de milhares de pessoas protestaram pelas ruas de Tel Aviv contra a proposta de Reforma Judicial que, além de proibir a Suprema Corte de anular nomeações do Poder Executivo “irrazoáveis ao extremo”, também retirava o seu poder de dar a última palavra em temas jurídicos, entregando-o ao Knesset. O tempo mostrou que essa luta não foi perdida. Na trajetória da jurisdição constitucional em todo o mundo, primeiro as Supremas Cortes foram criadas. Posteriormente, elas floresceram. Agora, muitas delas precisam resistir. A de Israel vem resistindo.  

Adotar posturas que possam conferir resiliência à jurisdição constitucional em tempos de crise não significa abdicar da sua função de guardiã de direitos fundamentais, especialmente aqueles pertencentes às futuras gerações. Dentre as muitas estratégias adotadas por uma Corte em perigo, agir com independência e bravura é uma delas.

Ninguém poderia imaginar que num país sem uma Constituição nasceria um exuberante campo de estudo sobre a jurisdição constitucional. Em Israel isso aconteceu.

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1 Também foi aprovada a Lei Básica da Liberdade Profissional.

2 CA 6821/93. A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui.

3 Barak, Aharon. A Constitutional Revolution: Israel's Basic Laws, pp. 83/84. Forum Constitutionnel. HeinOnline -- 4 Const. F. 84 1992-1993. Disponível aqui.

4 São muitos os precedentes que reconheceram direitos implícitos na cláusula geral da dignidade humana: HCJ 366/03 Commitment to Peace and Social Justice v. Minister of Finance, IsrLR 335, 347 (Barak J) (2005). CA 294/91, Jerusalem, Chevra Kadisha v. Kestenbaum, IsrSC 46(2) 464, 524 (1992). HCJ 6427/02 The Movement for Quality Government in Israel v. Knesset, IsrSC 61(1) 619, 681 (2006).

5 HCJ 3094/93. A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui.

6 HCJ 2671/98. A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui.

7 A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui.

8 Análise de Jeremy Sharon, em Deri v. High Court: What did he actually pledge in his 2022 plea bargain?, publicado em 24/01/2023

9 Isabel Kershner, Aaron Boxerman e Thomas Fuller. Israel’s Top Court Strikes Down Move to Curb Its Powers. Disponível aqui.

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Colunista

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.